De articulador à articulado
por Alexandre Santos
Quem já conhece o maravilhoso teatro feito pela Cia. PeQuod, do diretor Miguel Vellinho, já sabe o que esperar de sua nova montagem, A chegada de Lampião no inferno: muita criatividade, soluções cênicas inventivas, visual inesquecível, referências culturais diversas, bonecos e elementos de cena que dão vontade de levar para casa e uma encenação com a consistência de quem pesquisa e experimenta bastante antes de oferecer o resultado final ao público.
Tem sido sempre assim: os bonecos usados em cena são lindos; a cenografia de Carlos Alberto Nunes é marcante e cheia de surpresas, indispensável para a história; a luz de Renato Machado é complexa, dramática, refinada e digna de prêmios; e o diretor Miguel Vellinho se mostra um verdadeiro maestro na arte de reger e dar unidade à enorme quantidade de elementos em jogo. É um tipo positivo de mesmice, digamos assim.
Na primeira parte de A chegada de Lampião no inferno, é contada a trajetória do famoso cangaceiro, de forma bastante breve, mas inventiva, com o teatro de animação dialogando o tempo todo com o ofício dos artesãos nordestinos que eternizam a imagem de Lampião em pequenas esculturas de argila pintadas em cores chamativas. Na verdade, o verdadeiro homenageado da peça não é Virgulino Ferreira, mas Mestre Vitalino, ceramista pernambucano cuja obra é um grande tesouro brasileiro.
Para contar essa história, a Cia. PeQuod se utiliza de toda uma nova leva de encantadores truques cênicos – uma de suas marcas registradas – e também da soberba voz do ator Othon Bastos, que gravou narrações e poemas especialmente para a peça. A narrativa ganha tom mais documental quando se ouve o depoimento histórico de uma sobrevivente do massacre ao bando de Lampião, momento de realidade que só faz abrilhantar o espetáculo.
A segunda parte da peça é a propriamente dita chegada de Lampião ao inferno, fantasia inspirada nos tantos cordéis que abordam esse tema. Curiosamente, é nesse ponto, quando a história ganha ares de fábula, que os bonecos cedem espaço aos atores. Aqui, o elenco fica em foco e mostra de forma mais clara que são atores de verdade, não apenas manipuladores e contrarregras, como pode parecer aos olhos menos atentos.
A trilha sonora, feita por André Abujamra especialmente para A chegada de Lampião no inferno, é ótima, com personalidade, forte, de sonoridade moderna, ainda que tenha as tradições nordestinas em seu DNA. Talvez a música mais marcante seja a que invoca o zumbido de moscas e gritos, para pontuar a cena que mostra um menino encontrando os cadáveres de sua família. Em paralelo, há a direção musical de Thiago Picchi, muito hábil em transformar o trabalho dos artesãos pernambucanos em música, tendo apenas os elementos de cena como instrumentos, à exceção de um acordeon e de uma flauta – tocada por ele mesmo enquanto ator.
Como em todas as peças da Cia. PeQuod, o público sai de A chegada de Lampião no inferno com várias imagens na cabeça. Há grandes chances de você nunca se esquecer do monstro de três cabeças (o Cérbero da mitologia), do Diabo sentado em seu trono, do momento em que a oficina de cerâmica se transforma no inferno, da figura do Porteiro (guardião da chave das profundezas, interpretado pela sempre ótima Liliane Xavier) e de Lampião (Gustavo Barros, maior destaque do elenco nesta montagem) sendo engolido pelo barro.
São tantos detalhes dignos de nota, que é impossível lembrar agora de todos. Melhor você assistir. A Cia PeQuod faz teatro do melhor sem ser convencional.
Fonte: Freak Show Business
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