terça-feira, 13 de outubro de 2009

Capitulo de livro

Os Cabras de Lampião;
Por Ranulfo Prata

Ante um tema tão curioso, impossível esconder a curiosidade que é despertada pelos tipos humanos que faziam o cangaço existir. Aqueles que conhecem o povo nordestino, mais de perto o sertanejo, ficam a imaginar como um povo tão trabalhador, tão tímido e consciente do dever do cumprimento das leis, humana e divina, foi responsável por páginas e páginas de uma história de saques, estupros, homicídios.

Quem conviveu com muitos deles, entrevistou parentes, conheceu-os pessoalmente, por certo que está habilitado a descrevê-los. É o caso de Ranulfo Prata:


- Quando o cabra se candidata à caterva, "Lampião" encara-o fixamente, como a prescrutar-lhe no olhar, no gesto, no todo, a sua lealdade e bravura.

Não raro pede credenciais, indaga do que já fez, se tem proezas apresentáveis, se anda "corrido da justiça". Quando percebe que no coração do novo companheiro lavra o ódio aos macacos, alegra-se e o acolhe com mais simpatia. E avisa gracejador.
- De duas coisas eu lhe garanto no meu bando, camarada, é você não morrê de quéda de rêde, nem de indigestão.
Compreende-se: de rede não cairá porque cangaceiro não experimenta jamais o seu conforto, dorme sempre no chão da mata dos terreiros e das veredas; indigestão não sofrerá porque o seu regime passará a ser o mais sóbrio possível, pouquíssimo alimento deglutido sempre às pressas.

Volta-Seca

Foi lugar-tenente de mais dilatada fama que já teve "Lampião". (Foi o que ele contou aos pesquisadores e jornalistas. Quando estes depoimentos foram confrontados com outros cabras percebeu-se que Volta Seca não passou de um fanfarrão)

Acompanhou-o durante 4 anos, deixando-o um dia, quisilado, para ser preso logo em seguida, por civis.

Vejamos os seus perfis traçados, com mão segura de mestre, pelo Dr. Artur Ramos, legista do Instituto Nina Rodrigues, da Bahia, que o estudou cuidadosamente na prisão.

Perfil Antropológico

A primeira impressão que se tem ao defrontar o bandido Volta-Seca, é de um grande "desapontamento", são encontrados neste jagunço do Norbrosianas – cabeça disforme, face prognata, malares salientes, sobrecenho carregado, olhar "duro" e mau, orelhas malformadas, que sei mais? – nenhum destes caracteres que fizeram a celebridade do "criminoso nato", são encontradas neste jagunço do Nordeste . Não se diferencia em nada do inculto caboclo do mato. Antes cafuzo do que caboclo propriamente dito, Volta-Seca é o tipo do adolescente mal saído da época puberal. Dezesseis anos. De estatura um pouco abaixo do normal: 1,58 e 5. Franzino, parece contudo tender para o tipo constitucional leptosomático.

Como a maioria de seu grupo étnico é branquicéfalo: índice cefálico: 88,60. Índice facial: 63,00. Nenhuma anomalia, nenhum estigma antropológico de degenerescência. Sistema muscular pouco desenvolvido. Tem a cor brônzea escuro do caboclo sertanejo. Não é tatuado. O seu corpo está crivado de cicatrizes de sucessivos ferimentos por arma de fogo e arma e arma branca.

Cabelos encaracolados, castanhos. Raros pelos de implantação normal. Boa conformação corpórea. Não lhe pratiquei, neste primeiro sumaríssimo exame, outras medidas antropométricas. Não parece haver disendocrinia apreciável. Em suma: constituição leptosomática, branquicéfalo, leptopresepe, mesorino.

Perfil Psicológico

Outro desapontamento. É o menino aparentemente ingênuo dos sertões. Crivado de perguntas, responde com humildade, fala arrastada, com precisão. Não parece haver lacunas apreciáveis do seu fundo mental, o que só se poderá saber com rigor em provas subsequentes.

Esta impressão de ingenuidade vai desaparecendo progressivamente, à medida que vamos mergulhando nos abismos desconhecidos da sua psique criminal. Deixemo-lo narrar a série negregada de suas tropelias malditas nos sertões nordestinos. Temos então o tipo integrado ao seu habitual. Isoladamente, é o caboclo humilde, o adolescente inofensivo que temos diante de nós. Socialmente, porém, é o membro temível de uma coletividade anormal. Em Volta-Seca, o fator intrínseco da criminalidade cede de muito o passo aos fatores extrínsecos, mesológicos, que o caracterizam como um dos elementos mais perversos, mais criminosos, mais ferozes, do grupo de "Lampião".

O diagrama da sua vida é um subsídio importantíssimo para a sociologia criminal. A sua iniciação no crime, quero dizer, a motivação aparente do seu ingresso no banditismo, não conhece aquelas causas apontadas como as mais comuns entre outros membros da horda: sentimentos de vindita de família, e causas mais complexas, econômicas, mesocósmicas, etc. Volta-Seca não chegou a conhecer estas motivações. Ingressou no crime "não sabe porquê". Trabalhava no povoado de Guloso, onde vivia, quando "Lampião" surgiu em seu caminho e o carregou consigo, para os serviços menores da tropa.

Antonio dos Santos (é esse o seu nome) não opôs resistência. Foi. Para ele, era um achado. Deixaria de vender queimados, e de viver sob o guante paterno. E passou a agir como os outros. Simples fenô menos de imitação, sugestão e contágio mental. Começou a sua "aprendizagem" do mal. Aquela criança que ainda não sabia o que era a vida, tornava-se agora o mais criminoso dentre os criminosos, o mais perverso, o mais temível. Havia de conquistar as graças do compadre "Lampião". E conquistou. Sabe Deus como. Diga-o a sua crônica apavorante. Este relato, ele próprio o faz, com indiferença, às vezes ligeiramente irônico e vaidoso. Erostratismo criminal.

Volta-Seca é um débil moral. A um exame, mesmo perfunctório como este, nota-se, claramente, um pronunciado grau de analgesia moral.

Parece indiferente com a sorte que o aguarda. Um espécime como este merece ser estudado profundamente. Quais as determinantes intrínsecas do seu comportamento criminal? É uma questão que só a análise dos degraus mais remotos do seu psiquismo pode resolver. Que "complexos" inconscientes se ocultam nos bastidores da sua alma? Até que ponto influiu para a formação do temperamento criminal a sua história familiar, "aquele romance neurótico de família", de que falava Otto Bank? Será a sua vida criminal uma "evasão" de uma antiga situação hostil? Ou procurará antes nela uma auto-punição para algum crime inconsciente num "mecanismo de repetição" este "self-repeating-process" dos fenômenos do bandistismo?

Estas perquirições, pela psicanálise, merecem ser feitas nesse bizarro filho do crime, cuja concepção da vida se formou na visada do seu fuzil, instrumento de agressão, símbolo da sua hostilidade ao ambiente, expressão de uma inadaptabilidade social, porventura anterior à sua "história" criminal no grupo de "Lampião".

Do resultado destas pesquisas depende um mais perfeito conhecimento das determinantes da criminalidade do nordeste brasileiro, fenômeno bio-psíco-sociológico aqui, como alhures, para todas as formas criminais, na larga e feliz expressão de Ferri.

Corisco

É filho de Salgado do Melão e, depois de Volta-Seca, o principal assecla de "Lampião".

Conta 32 anos, é alto, musculoso, alourado, de traços finos de branco. Além do apelido de Corisco, pela maneira de fulminar o inimigo com a rapidez de um raio, tem ainda a alcunha de "Diabo Louro". Capitaneia um dos numerosos subgrupos que vivem como satélites em torno do núcleo principal. Quando o chefe e compadre mente.

Não ama, porém, estar sempre sob a sua disciplina. Finda a necessidade, afasta-se de novo, e vai, com uns poucos companheiros, correr o sertão por sua própria conta e risco. É o mais cavalheiresco de todos e mais bravo do que "Lampião", precisa de reforço para ataques ou defesa, ele corre a servi-lo lealmente. Ao lado de crimes brutais, tem gestos de piedade, salva e protege muitas vezes.

Na fazenda Prazeres, estrada de Geremoabo, estava o velho José de Tal montado em uma bestinha, quando se lhe depara a malta com "Lampião" e Corisco à frente. Corisco quer logo ficar com a besta, ao que o velho se opõe valentemente, pois era o seu único possuído. Discutem. E o velho, num arrojo maluco investe contra o bandido, tracam-se e rolam ambos na poeira do caminho. "Lampião" intervém conciliador:

Deixe o home, compadre...

E Corisco, a sacudir-se: - Póde ir meu véio, leve a sua besta; você é dos bom, a um bicho, assim não se ofende sem quê nem p’rá quê...

Zé Baiano

Negro grosso e malvado. De cabeça disforme, grande nariz esparramado na face bestia, boca rasgada de sapo cururu, é de horripilante feiura. É talvez por isto, o mais perverso, sobretudo com as mulheres. É o ferrador da horda. Traz consigo, a pender-lhe junto aos embornais e cartucheiras, o instrumento inquisitorial, feito com as suas iniciais, e com ele, vermelho rubro, marca as suas vítimas na face, no pubis, nas nádegas e nas coxas. Em Canindé, vila sergipana, ferrou várias, dando como motivo para a atrocidade cabelos cortados e vestidos curtos.

Antonio da Ingracia (de)

Outra figura de relevo. Era natural da Feira do Pau, onde praticou o primeiro crime, assassinando João Carpina. Antes de ingressar na malta já possuía grande acervo de crimes, inclusive o assassínio, em plena feira de Chorrochó, de dois irmãos do coronel José Ribeiro da Jacoca, ex-deputado estadual em Sergipe.

Perseguido, buscou a proteção de Gregório da Pedra, famoso coiteiro do município de Belém, Pernambuco. Ao entrar Lampião na Bahia juntou-se-lhe em companhia de dois irmãos, Cyrillo e Luiz, e de um sobrinho, Antonio Sionaro. Tio e sobrinho, porém não tiveram vida longa.

Certa noite, entre Chorrochó e Riacho da Várzea, chocou-se com o pequeno grupo chefiado por um tal Hermógenes. No desenrolar do tiroteio, na noite sem claridade, um dos cabras de Hermógenes aproxima-se dele, Antonio, que o chama, baixinho, dizendo-se amigo. Na negrura da noite, espichado no chão, de punhal erguido, aguarda, como um jararacussú, que o inimigo se avizinhe para dar-lhe o bote fatal. Não tardou que o outro, pensando que quem o chamava era, de fato, um dos seus, se chegasse. Antonio salta-lhe em cima.

Trava-se um feroz corpo a corpo dentro da escuridade da noite de breu. E apunhalam-se mutuamente, rolando cada um para o seu lado. Ali estertoram e morrem, com os corpos enrolados na mortalha da treva espessa. "O seu esqueleto enfeita o hospital da Força Pública de Geremoabo".

Angelo Roque

Tornou-se criminoso pela primeira vez no termo de Santo Antonio da Glória, escondendo-se muito tempo na fazenda do coronel Sá, distante de Geremoabo 4 léguas. Ali residiu anos, vivendo do produto da venda de couro de gato do mato, que caçava e mandava vender nas feiras. Ao chegar, Lampião nele encontrou um adepto que lhe engrossou as fileiras, passando Angelo a matar gente, em lugar de matar gatos. A semelhança de Corisco, de quando em quando desgarra-se do grupo e assume a chefia de pequeno sub-grupo, cobiçoso de mando e autoridade.

Xixabeira (Quixabeira)

Cabo verde espigado, de músculos ágeis. Granjeou renome. Era, como Corisco, de Salgado de Melão, (Salgado do Melão) município de Santo Antonio da Glória, região das mais férteis em facínoras, viveiro de criminosos. Formava ao lado de Volta-Seca e de Zé Baiano, na crueldade fria. No raso da Catarina, sangrou 6 pobres caçadores profissionais que ali andavam atrás de peles de animais selvagens. Notabilizou-se também no horrendo massacre da família Salina, vindo a morrer, depois, às mãos do único sobrevivente.

Pai Velho

Rijo homem de 70 anos, encorreado de sol e duro que nem amago de aroeira. Possui missão freudiana na súcia: raptar raparigas para gozo dos camaradas. Foi preso próximo à Cachoeira Paulo Afonso, em companhia de Maria da Conceição, cabrocha de 17 anos, forte e vistosa, raptada por ele. Confessou ela ser a namorada de Meia-Noite e que dera a luz, na caatinga, um filho, fugindo à aproximação da força. Três crianças de meses já foram encontradas pelas volantes, abandonadas na precipitação da fuga. Uma delas está sendo criada pelo coletor estadual de Geremoabo, Antonio Socorro.

Moderno (Virgínio)

É o cunhado e compadre de Lampião. É seu homem de maior confiança. Toda a afeição que o chefe tinha aos irmãos parece dedicar agora ao parente e companheiro fiel. Serve-lhe de secretário, confiando-lhe todos os negócios de importância. Nas vilas, quando lhe entregam o tributo de dinheiro exigido, ele vira-se e diz, satisfeito, como qualquer homem de negócios. - Procure o meu secretário, o Moderno.

Mariano

Negro sanhudo, de torso hercúleo e sobrecenho carregado. Tem como especialidade dar bolos, trazendo pendente do cinto grossa e pesada palmatória, com a qual, a mando do chefe, castiga homens, mulheres e crianças.

Em Sergipe, em uma usina nas proximidades de Capela, aplicou alguns em velha e respeitável senhora e em uma sua neta de poucos anos. Quando esta lhe estendeu a mão pequenina e rosada, o negro apiedou-se, sentindo irromper de dentro do peito, todo instintividade, um sentimento bom. Mas Lampião fiscalizava e exigiu o cumprimento da pena. E ele obedeceu. Mas finge que emprega força e aplica os bolinhos suaves que já foram dados pelo braço poderoso.

A estes deve-se acrescentar as figuras de: Medalha, Gato, Beija-Flor, Cajueiro, Fortaleza, Pó Corante, Bem-te-vi, Avião, Jurema, Criança, Revoltoso, Azulão, Luiz Pedro, José de Lydia, * Portugal, etc. (Portugal seria Português)

Mulheres que os acompanham: Maria Déa, Lydia, Lió, Ignacinha, Anna, etc. São personagens às dezenas para a representação do drama infindável...

Texto da obra: Lampião /Ranulfo Prata/Traço Editora, transcrito por Luiz Alberto, 
Fonte: Luiz Alberto

Observações:Lampião Aceso

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