sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Frederico Pernambucano

Sob a luz de “Lampião”
Por Margarete Azevedo




“Mestre de mestres em assuntos do cangaço”, segundo o antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre, o historiador Frederico Pernambucano analisa nesta entrevista as diferentes características dos bandos de cangaceiros. Oriundo do litoral, o movimento foi enxotado para o sertão muito antes de Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, o mais famoso deles, dar seus primeiros passos em Serra Talhada (PE). Lampião e Antônio Silvino, por exemplo, fizeram do cangaço um meio de vida; alguns se valeram dele como um instrumento de vingança, geralmente num contexto de luta entre famílias; enquanto outros o transformaram em um asilo nômade para criminosos jurados de morte.

“Os primeiros mostrando-se mais longevos e de abrangência geográfica mais espalhada, chegando a atingir quatro Estados, como aconteceu com o bando de Lampião, e varando os 20 anos de sobrevivência”, indica o historiador.

Há similaridades do cangaço com fenômenos criminais de outros países?
Em essência, o fenômeno do cangaço é universal. Corresponde àquele período cinzento da transição público-privado na história dos países, de modo particular em países de colonização tardia, onde se mostrou mais renitente. Mas ocorreu em todos os continentes, no instante em que o braço da administração da justiça criminal pública, começou timidamente a chamar a si os conflitos sociais, e foi lançando na marginalidade as práticas e os agentes da violência privada, no afã de monopolizar a coerção. 
Saindo do abstrato, diríamos estar tratando, com referência ao nordeste do Brasil, daquele momento dramático em que a figura histórica do valentão, instância privada de resolução de conflitos na ausência da justiça estatal, vai cedendo passo lentamente ao capitão-mor e ao juiz de paz, depois ao delegado, ao subdelegado, ao inspetor de quarteirão. E se transformando, sem o sentir, de justiceiro em criminoso. De figura socialmente exemplar em figura desvaliosa, perseguida da justiça pública em ascensão. 
Não devemos deixar de assinalar que o caráter universal do cangaço, em sua essência, foi proclamado por Luiz Câmara Cascudo há muito anos. Quanto à amplitude de espaço, de tempo, de engajamento de massa e de visibilidade pública alcançada por Lampião e seu bando, não há rival nos tempos modernos, sobretudo no Ocidente.

Qual o contexto histórico do Nordeste no período pré-surgimento do cangaço?
Diferentemente do que pensam muitos autores ilustres, que costumam datar do meado do século 19 o início da existência do cangaço no sertão – como se fosse um cometa surgido do infinito –, o fenômeno é velho, de cinco séculos. E não tem no sertão o seu berço. Há até quem crave um ano, tirado não se sabe de onde, 1870, como sendo o do surgimento do cangaço no Nordeste. O que o meado do Novecentos fez despontar, a partir do aumento da população do interior, foi a percepção daquela vida de aventuras pela opinião pública do litoral, na ocasião em que esta começava a cogitar sobre a presença de um lugar longínquo a que se dava o nome de sertão. Lá, além da violência, havia a seca como fenômeno natural recorrente, e uma poesia popular, cantada e escrita, que aliava à arte o sentido precioso da documentação dos fatos.

Como o cangaço pode ser definido?
Em seu sentido profundo, ele é a expressão de irredentismo que falta agregar à historiografia brasileira dos cinco séculos de colonização. Uma historiografia de longa data, sensível às recorrências irmãs desse irredentismo de chapéu de couro, representadas pela intermitência plural do levante indígena, de que é exemplo maior a chamada “Guerra dos Bárbaros”; do quilombo predominantemente negro, à frente Palmares, e da revolta social branca ou mestiça, encabeçada por Canudos. Não é o cangaço, na visão moderna que temos proposto, fenômeno surgido do nada, solto no tempo e no espaço, como se pensou até ontem, mas parte – e parte tão ilustre quanto as demais – do desvio de fogo que correu parelha com o leito central de nossa história, o de expressão majoritária, a impor, este último, os valores reinóis, no instante em que o índio e o negro baixaram finalmente a cabeça à subjugação pelo branco europeu. Não todos.

O que os movimentos de resistência popular têm em comum?
Os que reagiram, agremiados na corrente minoritária, deram vida a um irredentismo militante, que é a raiz comum de todas as insurgências vistas acima, sublimado, com o passar do tempo, numa tradição brasileira. Uma tradição guerreira de resistência popular. Deve ser notado que, enquanto o levante indígena, o quilombo e a revolta social possuíam caráter intermitente e uma identidade étnica definida pela predominância do contingente racial que recheava suas fileiras, o cangaço mostrou-se contínuo no tempo e absolutamente metarracial. Você podia ter sucesso no bando, ascendendo à chefia, fosse branco alourado, como Corisco; negro, como Zé Baiano; índio, como Gato; ou mestiço de diferentes matizes, como o caboclo Lampião, o mulato Sabino, o sarará Luiz Pedro, o cafuzo Jararaca, o cabo-verdiano Zé Sereno.

Quais as características mais marcantes de cada um dos tipos de cangaço?
Houve grupos que fizeram do cangaço predominantemente um meio de vida, como no caso de Lampião ou de Antônio Silvino. E outros, que dele se valeram como instrumento de vingança, geralmente num contexto de luta entre famílias, como se deu com Sinhô Pereira e Luiz Padre, de um lado, e Sindário, do outro, na guerra privada entre Pereiras e Carvalhos. Ou com Jesuíno Brilhante, na guerra contra a família Limão, encabeçada por um cangaceiro não menos valente: Honorato Limão. Outros, ainda, o transformaram em asilo nômade de criminosos jurados de morte, como Ângelo Roque, o Labareda. A cada propósito correspondendo um estilo de vida, uma contenção de gestos e até uma dimensão de espaço e de tempo.

Como foi trabalhar com Gilberto Freyre?
Integrei sua equipe de trabalho por 15 anos, cumprindo aquilo que o professor Nelson Aguilar, de São Paulo, caracterizou um dia como o mais longo doutorado já feito por um cristão. Trabalhar com Gilberto era aprender a cada minuto uma lição. Graças a ele, me dei conta de que a história deve ir muito além do fato saliente na política e do registro de fatos objetivos. Que deve alongar-se num romance verdadeiro, incorporando o dia a dia, o ordinário, o cotidiano, o aparentemente banal, o universo íntimo. Nisso, ele se antecipou a Braudel, a Lefèbvre, a Barthes, a Bastide, a Abelès, a Ginzburg. A Escola dos Anais, consagrada na França de 1930, proclamou o pioneirismo desse ilustre brasileiro do Nordeste. Ele antecipou o ganho que a história recebeu modernamente ao incorporar, com humildade digna de louvor, umas tantas lições da antropologia. Boas lições.

Qual a influência dele em sua obra?
O exemplo está no perfil que traçei de Lampião, revelador de que o guerreiro insuperável, o homem de violência indiscutível, qualidades conhecidas no passado, era, ao mesmo tempo, um costureiro exímio, em pano e em couro, além de bordador caprichoso. Um sujeito surpreendentemente preocupado com questões de representação simbólica no traje e no equipamento de seu grupo, e com a alimentação das mídias sobre os passos de seu bando. Que apreciava, incorporando o requinte de coronéis fidalgos com os quais privou, à frente Hercílio de Brito, de Propriá, Sergipe, o perfume francês e o uísque da Escócia. Que possuía cartões de visita e postal com a própria foto no anverso, já em 1936, confeccionados na Aba-Film, de Fortaleza, para evitar falsificações em sua correspondência surpreendentemente ativa. 
 Quando mostrei isso em livro, nos anos 80, o mundo quase desabou sobre minha cabeça. A menor acusação era de que estava efeminando o Rei do Cangaço. Hoje, não há quem ignore ou conteste que Lampião possuía dotes artísticos. Ao contrário; há livros recentes, escritos aqui e lá fora, para desenvolver essas revelações. É o salário moral de quem pesquisa. De quem come poeira e arranha os cotovelos sobre as fontes de primeira mão. O espaço de rebeldia do assistente ficou por conta da escolha do sertão como tema de estudos. Gilberto Freyre não gostava do Sertão. Algumas vezes nos abordou com a ciumeira: “Você anda conversando muito com Ariano Suassuna!”  
Mas não se privou de reconhecer a seriedade dos estudos que empreendia, prefaciando o livro de estreia e cravando na imprensa estar diante de um “mestre de mestres em assuntos de cangaço”. Está lá, no Diário de Pernambuco, de 28 de fevereiro de 1985. É muito bom para o aluno constatar que não decepcionou o professor.

Link para a reportagem: Revista Kalunga

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