sábado, 26 de junho de 2010

A educação pela pedra

Memórias da infância de Celso Furtado, no sertão, entre os perigos do cangaço, da política e da natureza


Por Roberto Pompeu de Toledo

Para o menino Celso Furtado a vida era uma sucessão de perigos. O perigo dos cangaceiros que vez por outra invadiam Pombal, sua cidade natal, no sertão da Paraíba, por exemplo. "Lá vêm os cangaceiros", avisavam, e todo mundo saía correndo. Os cangaceiros avançavam pelas ruas em cavalgadas que espalhavam poeira e terror. Uns queriam bancar os bem-educados e sentavam-se no bar, pediam café, respeitavam as senhoras.

Outros agiam como brutamontes. Ameaçavam, atiravam, agrediam, intimidavam, barbarizavam. Numa dessas ocasiões o pai de Celso agarrou-o e levou-o a um esconderijo, onde ficaram até os cangaceiros irem embora. "Tantas vezes vi pessoas mortas na rua", lembraria ele, muitos e muitos anos depois. Convocado para o serviço militar no período da II Guerra, Celso integrou-se à Força Expedicionária Brasileira, na Itália – mas dizia que viu mais mortos na Paraíba, na infância, do que nas frentes de batalha.

Havia a violência política, em acréscimo à dos fazendeiros. Todo mundo estava envolvido na "política", mas não se pense que essa "política" tenha a ver com o debate dos problemas do município, do estado ou das grandes questões nacionais. A "política" se traduzia em escaramuças entre famílias rivais. Eram particularmente agudas em épocas eleitorais, e podiam degenerar em pequenas guerras civis.

Num dia de 1930 alguém chegou correndo à casa de Celso: "Mataram João Pessoa!". Não era um dia qualquer para o menino. Era o dia em que completava 10 anos, 26 de julho. Quem trazia a notícia era um empregado. Eram sempre os empregados que traziam as notícias. E não podia haver notícia mais terrível – Pessoa, o popular governador (ou presidente, como se dizia então) da Paraíba, fora emboscado por um inimigo numa confeitaria do Recife. Entre as pessoas simples do estado, João Pessoa gozava de mística que tangenciava o sobrenatural. Celso ouvia da empregada da casa histórias como a de que o governador se disfarçava de pessoa comum e saía "para fazer o bem" nos bairros pobres. Era a mesma legenda que acompanhava os "reis bons" da Idade Média. À noite, a empregada o levou a uma procissão encabeçada por um andor onde ia o retrato de João Pessoa, venerado como santo.


 Celso Furtado, 
(Pombal, 26 / 07 /1920 — Rio de Janeiro, 20/ 11 / 2004)

Seguiu-se um período em que os adversários políticos do líder assassinado, em cada cidade paraibana, eram atacados como se cada um deles fosse o assassino. Agrediam-nos nas ruas, incendiavam-lhes as casas, feriam, matavam. Na manhã seguinte, ao sair de casa, a primeira coisa com que Celso deparou foi o cadáver de um homem estendido na rua. Ali perto ficava a usina de propriedade de um notório adversário de João Pessoa. Um alvo fácil para os vingadores do governador, portanto, tanto assim que soldados do Exército foram destacados para protegê-lo. A família Furtado, pelo sim, pelo não, achou prudente afastar-se do bairro. Refugiou-se na casa da avó de Celso, até o ambiente se acalmar.

Quando não vinha dos homens, o perigo vinha da natureza. Celso tinha 4 anos na época da grande cheia de 1924. As águas, em fúria, invadiram sua casa, destruindo-lhe a parte da frente. A casa só não veio abaixo por milagre. Vários de seus compartimentos ficaram inutilizados, inclusive a cozinha. Tiveram de trazer o fogão para a sala, por causa disso. Temerária decisão. Celso, numa hora em que brincava sozinho na sala, jogou uma bola para cima e ela foi cair bem no caldeirão que ardia no fogo. O caldeirão tombou nas costas do menino. "Ah, sofri muito", recordaria. Uma marca da queimadura ficou-lhe nas costas pelo resto da vida.

E havia os perigos do fanatismo religioso. Celso Furtado cresceu num tempo em que a Guerra de Canudos ainda estava fresca na memória dos povos do sertão. Um tio-avô seu participou da guerra, do lado das forças que combatiam os beatos de Antônio Conselheiro. Muitas histórias do período se contavam na família. Depois veio o padre Cícero, ainda vivo quando Celso despertava para o mundo. Para o menino, João Pessoa e padre Cícero eram figuras da mesma extração. Pertenciam ambos ao mesmo universo popular e místico.

Celso Furtado, que morreu no sábado, dia 20, tinha um olhar triste. Ele foi ministro, embaixador, conselheiro de presidentes, membro da Academia Brasileira de Letras. Notabilizou-se como professor nos melhores centros universitários do mundo, escreveu livros e artigos traduzidos em múltiplos idiomas. Conheceu os grandes deste mundo. Era reconhecido como um dos mais destacados intelectuais brasileiros. No entanto, o olhar triste denunciava a eterna presença, lá no fundo, do menino assustado entre os cangaceiros, a violência política e a fúria da natureza. Era um nordestino educado pela pedra, para usar a expressão de outro filho da região, o poeta João Cabral de Melo Neto.

Nota: As recordações de infância aqui alinhadas foram relatadas por Celso Furtado ao autor destas linhas em duas longas séries de entrevistas, uma em 1993, outra em 1999.
Publicado originalmente na coluna Ensaio da Revista Veja, Edição 1882 . 1° de dezembro de 2004.

Link para a matéria: Revista Veja
Foto: Portal da imprensa

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