quarta-feira, 23 de junho de 2010

Pra semear a alegria

Cabras de Lampião voltam à caatinga 

Por Paulo Gonçalves 
Publicado originalmente no Jornal A nova democracia, Ano VII, nº 48, Dezembro de 2008. 

Karl Marx faz o papel de Lampião nas apresentações do Grupo

Karl Marx nasceu no ano de 1990 e vive em Serra Talhada, município do sertão pernambucano. Ator e dançarino, é irmão de Sandino Lamarca. Os dois fazem parte do Grupo de Xaxado Cabras de Lampião, uma das muitas atividades desenvolvidas pela Fundação Cultural Cabras de Lampião, fundada em 1995 e idealizada por seu pai, Anildomá Willams de Souza — pesquisador, escritor do cangaço e "marxista por convicção" — por sua mãe, Cleonice Maria, pesquisadora da cultura regional e professora de danças populares, além do pesquisador Gilvan Santos, entre outros. Karl Marx sempre participou de atividades culturais, já que a cultura e a arte sempre estiveram presentes na sua casa. Começou logo cedo a dançar e fazer teatro. 

No grupo Cabras de Lampião aprimorou a sua técnica, já que todos os integrantes participam de oficinas de interpretação, expressão corporal e danças populares.
— Claro que o nosso espetáculo é original, de raiz, mas não podemos perder de vista a valorização técnica, estética e artística — diz Karl Marx.
O grupo Cabras de Lampião reúne pessoas nascidas em Serra Talhada, a antiga Villa Bella, onde nasceu Virgulino Ferreira da Silva, que entrou para a história com o apelido de Lampião.

— Nasci, fui criança e adolescente ouvindo histórias de antigos cangaceiros e de volantes (nome dado aos policiais que se moviam de cidade em cidade à procura de cangaceiros), me envolvi naquelas aventuras de Lampião, na sua coragem em desafiar os coronéis e fazendeiros, saqueando vilas e cidades, se autodenominando "governador do sertão", fazendo poesias, dançando xaxado, tocando sanfona e violão e, mesmo com pouco estudo e nenhuma noção ideológica, dizendo que "homem nenhum nasceu pra ser pisado" — diz e emenda.
— A região sertaneja costuma homenagear tudo quanto é coronel, os piores facínoras, que combateram nossos avós, que expulsaram os índios desta parte do Brasil, e que hoje são nomes de avenidas, estátuas em praças, nomes de escolas e até de cidades. E Lampião com sua gente, os que desafiaram a estrutura reacionária do poder, não merecem serem lembrados? Merecem! — afirma — Os descendentes dos coronéis não vão fazer isto. Eles fazem de tudo para imortalizar seus pais e avós, mas nós, descendentes dos que foram massacrados, não podemos deixar que tudo se perca nas brumas do tempo, temos que dizer ao mundo que no passado houve luta, se espelhar na coragem de Lampião, de Antonio Conselheiro, de Zumbi dos Palmares, Corisco e muitos outros, para lutarmos hoje, sem medo, com a história na mão. Foi agarrado nesse argumento que nasceu esse movimento, com um punhado de artistas, para resgatar e manter nossa história — acentua Karl Marx.

Anildomá de Souza reforça as palavras do filho, lembrando que:

— Em Serra Talhada só havia homenagens para os membros das oligarquias, os coronéis, os grandes fazendeiros, empresários e membros dessas dinastias. Então resolvemos homenagear um filho da terra e gente do povo. Além disso, apesar de Lampião ter nascido aqui, notamos que não se falava mais dele, as oligarquias faziam questão de apagar a sua história. Decidimos então recomeçar o debate sobre o cangaço e mostrar que ele não é apenas folclore, pois o que motivou o cangaço ainda está presente na vida do povo: é a seca, a exploração do latifúndio, a concentração de terra e das riquezas e os currais eleitorais que sustentam essa exploração.

Anildomá acrescenta:

— Engana-se quem pensar que os coronéis da política são coisas do passado. Uma prova está no resultado das eleições do dia 5 de outubro, quando a maioria dos prefeitos eleitos na região carrega nos sobrenomes as linhagens dos antigos coronéis, são membros das mesmas dinastias. Essas oligarquias que geraram o cangaço ainda estão presentes na vida do povo sertanejo, ainda são muito fortes e não agem de forma muito diferente do que faziam naquele período. Por isso resolvemos abrir esse debate contras as injustiças sociais à luz do cangaço, esse é o nosso principal propósito, sem perder de vista a cultura popular, as tradições, a literatura, a música, a dança e todo legado dos cangaceiros.

Acervo popular

Antes mesmo de começar a estudar a cultura do cangaço, Karl Marx diz que a sua família conheceu alguns cangaceiros e volantes, além de pessoas que testemunharam episódios da época.

— Conhecemos os cangaceiros Sila, Candeeiro, Zabelê, Cajarana, Gitirana, e pessoas que combateram como o tenente Davi Jurubeba, João Gomes de Lira e alguns outros. Temos um razoável acervo com depoimentos em vídeo e DVD de mais de trinta cangaceiros, documentários, filmes, livros, cordéis, etc.

Este acervo que resgata a memória de um período histórico que contribuiu para a construção da identidade do povo pernambucano, encontra-se no Centro de Estudos e Pesquisa do Cangaço — EPEC, também criado pela Fundação Cultural Cabras de Lampião. Boa parte do material foi colecionado por Anildomá que começou a nutrir paixão pelo tema ainda menino.

— Desde pequeno coleciono livros, documentos, tudo que pudesse encontrar sobre aquela época, quando o banditismo social era uma forma de reação à miséria e repressão dos latifundiários.

A Fundação Cultural Cabras de Lampião é responsável também pela criação e produção de eventos culturais, como as diversas mostras de Teatro; a Celebração do Cangaço — um tributo a Virgulino que desde o ano de 1994 é realizado no último domingo de julho; apresentações artísticas regionais conhecidas como No Terreiro da Fazenda; O Julgamento de Lampião — o que não aconteceu no século XX e Encontro Nordestino de Xaxado, evento anual realizado sempre no primeiro final de semana de junho; também criou e mantém a Escola de Xaxado Virgulino Ferreira; coordena o Programa de Passeio Turístico Ecológico "Nas Pegadas de Lampião"; criou, no ano de 2001, e administra o Museu do Cangaço, de Serra Talhada, no Sítio Passagem das Pedras, onde nasceu Lampião e reestruturado pelo Programa BNB de Cultura / 2006; criou, em 2007, e administra o Museu do Cangaço/Centro de Estudos e Pesquisas do Cangaço (CEPEC); foi contemplada com o "Prêmio Culturas Populares — Maestro Duda 100 Anos de Frevo", pelo MINC, em 2007; foi transformada em Ponto de Cultura Artes do Cangaço — Programa Cultura Viva / Ministério da Cultura, desde janeiro de 2008; participou da programação da 2ª Semana Nacional de Museus, pelo IPHAN/MINC, em maio/2008.


O reconhecimento pelo trabalho já resultou em mostras, documentários e especiais para TV, a exemplo dos programas Identidade Brasileira, pelo Jornal Nacional (Rede Globo); Clip Cangaceiros, produção Provídeo Natal, direção Tony Maciel; Lampião, uma história de amor e sangue. Globo News, 2006; Matéria/documentário Casa de Lampião e Xaxado, TV Asa Branca/Rede Globo; Lampião — Diário Repórter, da TV Diário; Lampião, Mort ou Vif da TV Hibou Production — TV Rennes — França em 2006; A Moda no Cangaço, produção pernambucana; Alpercata de Rabicho, produção e direção de Petrônio Lorena; I Encontro Nordestino de Xaxado. Especial no Globo Comunidade; Cangaceiros invadem cidades, especial para TV Senac (São Paulo — SP); O Rei do Cangaço, especial para TV Cultura (Rio de Janeiro); A Chegada de Lampião em Olinda, especial para TV Guararapes. O Rei do Cangaço, especial para TV Pernambuco; Diversas matérias e especiais para TV Asa Branca (Rede Globo — Caruaru) e TV Grande Rio (Rede Globo, Petrolina) e o documentário da Rede Globo de Televisão — Regional TV Asa Branca: Virgolino: do Homem ao Mito — 70 Anos da Morte de Lampião.

— Essa valorização de nossas atividades — analisa Karl Marx — é fruto do papel histórico do próprio cangaço. Nenhum outro movimento no Brasil tem a força cultural do cangaço. Temos roupa e indumentária próprias, dança e música próprias, gastronomia, linguagem, expressões, o ambiente é próprio, e por aí vai. Quando lutamos em defesa da cultura do cangaço, não é para falarmos de folclore como uma brincadeira para agosto, mês do folclore, falamos do cangaço denunciando que as feridas sociais que geraram as revoltas sociais no final do Século XIX são as mesmas que ainda hoje, em pleno Século XXI, continuam ardendo, supurando, doendo. É preciso restaurar a história de Lampião na ótica social. Debater o cangaço é discutir nossa identidade cultural, a seca, a falta de terra para quem nela trabalha.

— A situação atual do povo de Serra Talhada não é muito diferente da época de Lampião. Um exemplo são os retirantes que antes fugiam da seca e iam para o Sudeste tentar a sorte e buscar meios de sobrevivência. Hoje, na época da safra da cana-de-açúcar no Sul e Sudeste, diariamente saem ônibus lotados de pessoas que vão trabalhar no corte da cana, e todos sabemos que em situação de escravidão. Ou seja, é mão-de-obra escrava que continua sendo gerada pela concentração de terra e pelo latifúndio. Por isso fortalecemos a identidade cultural do nosso povo para chegarmos à transformação social, que é urgente — completa Anildomá.

Resistência cultural

Quanto à cultura hegemônica e do interesse das classes dominantes e do imperialismo propagada através dos meios de comunicação de massa, Karl Marx diz que sua predominância é um crime contra o povo.

— Essa cultura que aliena e que não diz coisa com coisa, que explora a mulher, a vulgaridade, as deficiências, são altamente prejudiciais ao povo brasileiro. Admiramos as outras culturas — cultura, no sentido verdadeiro — mas primamos pela nossa. É claro que os capitalistas da indústria fonográfica exploram e enganam as massas com uma música vulgar, que impede de se pensar, que afasta da realidade. Os meios de comunicação, em geral, estão a serviço da classe dominante. O pior é que não é um problema de uma determinada região do Brasil, a crise cultural é geral. Porém, não podemos esquecer dos focos de resistência, que se proliferam em cada cidade. Aqui em Serra Talhada fomos nós quem criamos o slogan "capital do Xaxado" e a população assumiu, por que vêem nisso a cara dos cangaceiros, que eram gente do povo. Provocamos um debate acirrado. A elite do sertão — descendentes dos antigos coronéis — continua a estalar o chicote, tentando esconder o nome do Comandante das Caatingas, dizendo que estamos fazendo apologia ao crime e ao banditismo, mas conseguimos derrubar mourões e eles são obrigados a engolir nosso trabalho quando anunciamos, em desafio, dizendo "Lampião é o filho mais ilustre de Serra Talhada". Eles querem que seja o deputado Inocêncio Oliveira! Ficam irados conosco! E ainda provocamos com mais um jargão que soa como um berrante no juízo deles, que diz assim: "quem acha ser loucura investir em cultura, é por que não sabe o preço da ignorância". Aqui em Pernambuco existem vários fóruns de debates acerca da cultura, e isso já é um sinal de esperança.

Mas isso não basta, diz Marx:

— É necessário agir, é urgente a criação de políticas públicas para cultura no município, no estado, é preciso começar a debater nas salas de aula, nos grupos de jovens, nos sindicatos, nas associações de amigos, nos assentamentos dos trabalhadores sem-terra, a cultura deve estar em todo lugar, o tempo todo. Costumamos dizer por aí que a cultura jamais morre porque é povo. Ela renasce a cada ação e atitude do homem — e finaliza:

— Considero fundamental o papel da cultura popular para fortalecer o conhecimento da história e a transformação da sociedade. O nosso trabalho é fazer uma análise crítica do presente tendo o passado como referência, além de trabalhar com a identidade cultural como barreira de defesa contra o imediatismo que o imperialismo utiliza para impor uma "cultura" de vulgaridades. É contra essa falsa cultura de modismos que lutamos. É também contra a apresentação do sertanejo de forma caricatural e deformada, como vemos nesses meios de comunicação que fazem o jogo do imperialismo.

Distante 412 km da capital, com uma população que tem origem entre os camponeses, Serra Talhada, além da pressão das metrópoles, sofre com a opressão das velhas oligarquias latifundiárias que se eternizam no poder e se utilizam do chicote, em todas as formas como ele se apresenta, para oprimir o povo. É nesse cenário que a Fundação Cultural Cabras de Lampião faz prevalecer um legado de muitas gerações, com raízes fortes e profundas. Através da música, das vestimentas, da dança, da linguagem, da gastronomia e dos gestos usados nas suas apresentações, a família comunista e seus companheiros prestam um inestimável papel a todo o povo brasileiro, que resiste e avança, apesar de tantas dificuldades e dos velhos e novos coronéis.

Contatos com o grupo: www.cabrasdelampiao.com.br

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