Reportagem de André Dib
(Publicado originalmente no Diário de Pernambuco, edição de 26/08/2010)
Livro essencial para interessados em cultura nordestina, Estrelas de couro: a estética do cangaço (Escrituras Editora, R$ 150), de Frederico Pernambucano de Mello, investiga em detalhes a vida no cangaço, a partir de objetos, fotografias e relatos acumulados em mais de 25 anos de pesquisa. O projeto gráfico, em capa dura com detalhes em tecido e miolo em papel couché ricamente ilustrado com mais de 300 fotos, foi supervisionado pessoalmente pelo autor.
"Todo texto é efetivamente abonado pela imagem veraz, histórica", diz Mello, que quando começou a se dedicar ao estudo que hoje vem a público, o cangaço era visto como um "fenômeno à parte, pairando como um cometa no céu ou nos jornais como um bezerro de duas cabeças". Ao colocar a história de Lampião e seu grupo de guerreiros em perspectiva social e esquadrinhar sua herança estética, Mello oferece uma contribuição à altura da importância do cangaço no imaginário nacional.
O homem que filmou Lampião
Com o lançamento de Estrelas de couro, Frederico Pernambucano encerraria sua trilogia sobre o cangaço, da qual fazem parte os títulos Quem foi Lampião e Guerreiros do Sol. No entanto, esse parece ser um tema inesgotável para ele, que pretende lançar o livro Benjamin Abrahão: entre anjos e cangaceiros, biografia do fotógrafo sírio que conseguiu filmar Lampião e seu bando. De acordo com o autor, o livro trará informações inéditas, obtidas a partir de anotações feitas Abrahão em sua caderneta, traduzidas diretamente do árabe. "Do ponto de vista da fabulação romanesca e épica, é uma história de riqueza extraordinária e serve de pretexto para mergulhar no Interior do Nordeste dos anos 1910-30".
Através da caderneta, Mello pode estabelecer a "conversa" que nunca pôde ter com Lampião. "Nesse momento eu tenho a emoção de vestir os sapatos de Benjamin e ouvir Lampião. Ela permite penetrar no universo mental não só no universo de Benjamin como no de Lampião através de Benjamin. Isso é um exercício fantástico, de história íntima, do imaginário". Outro projeto é um livro sobre a morte de Lampião. "Tive acesso a uma testemunha privilegiada e soube que a história não é exatamente como tem sido contada".
Ao Diário, ele diz que sua próxima missão é organizar o futuro Museu do Cangaço. "É um compromisso que assumi com os protagonistas e testemunhas que me confiaram tantas informações, para que um dia eu mostre que esse mundo estranho existiu".
Entrevista // Frederico Pernambucano de Mello: "O cinema não mostrou o verdadeiro Lampião"
Ao contrário de outros levantes, por que o cangaço não foi suprimido da história oficial?
- Porque o cangaço gerou conteúdo de permanência. Foi derrotado militarmente, mas se vinga através de sua estética, que oferece ao Nordeste sua marca mais característica: a meia-lua com estrela. E se perpetuará por ter criado uma linguagem que até hoje se expressa na dança, na música, na poesia do cordel, do repente. E no visual, gerando um guarda-roupa sem comparação no Brasil, que vai rivalizar apenas com o samurai japonês ou o cavaleiro medieval europeu.
Deixou valores simbólicos impossíveis de controlar...
- Sim, eles não tiveram como impedir. Como Ariano (Suassuna) escreve no prefácio do livro, o tema é um dos mais fortes para projeção da cultura do Nordeste no Brasil e no mundo. Como a figura de Robin Hood, que a Inglaterra usa como ícone. No último capítulo do livro, eu revelo uma batalha simbólica nunca antes mostrada, das autoridades, para impedir que a estética do cangaço "contaminasse" seus subordinados. Há um documento do comandante da força militar de Pernambuco dizendo que havia um destacamento de polícia de Buíque trajado como cangaceiro.
Essa estética torna o cangaceiro algo mais do que um bandido comum?
- Nesse caso, o conceito de bandidagem se torna insuficiente. A estética do cangaço é tão imponente, o traje é tão carnavalesco que é exatamente o oposto da característica do criminoso, que é se mimetizar até como condição de êxito de sua ação, como o pistoleiro, o capanga. Mais importante do que criminalizar aquela atitude é situá-la no que chamo de mito primordial brasileiro, que está na base do levante indígena, do quilombo negro e na revolta social branca ou mestiça, que não se dobraram aos valores coloniais.
Você planeja um Museu do Cangaço. Qual seria seu papel, já que há outros projetos com a mesma finalidade no Nordeste?
- Criaremos um museu central, que dialogaria com acervos que não configuram a ideia de museu, pois são coleções de peças, desprovidas de biblioteca, arquivos especializados ou massa crítica de pesquisa. Além das peças históricas, teríamos um acervo de reconstituição rigoroso, etnográfico, com manequins com reproduções fiéis ao traje completo do cangaceiro, do coronel, dos tipos humanos do cangaço. A sede seria no Recife, com uma subsede rural, no Interior. Assim, as pessoas estudariam o fenômeno na capital para depois vivenciar uma recomposição integral do universo do cangaço em trilhas na caatinga.
O que você acha do Lampião que o cinema brasileiro tem mostrado?
- O cinema ainda não mostrou o verdadeiro Lampião. Depoimentos de quem esteve com ele apontam para um homem alto, moreno, calmo, agradável e sedutor. Que pensava em bases positivas, nunca emocionais. E que assim conquistou a confiança dos coronéis, com quem conversava de igual para igual. Isso não está no Lampião composto por Milton Ribeiro no filme O cangaceiro (1953), que fez escola e arrastou o Luis Carlos Vasconcelos em Baile perfumado (1997). No cinema, ele aparece como o cafajeste em tempo integral. Ele estava mais para o Don Corleone de Marlon Brando, sussurrante e perigosíssimo.
Reportagem de André Dib
(Publicado originalmente no Diário de Pernambuco, edição de 26/08/2010)
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