sábado, 13 de março de 2010

Cabra de Silvino

Entrevista com o cangaceiro "Cobra Verde" 
O "cangaço" em reminiscências no depoimento de “Cobra Verde”, do bando de Antônio Silvino
Silvino
Mora e trabalha em Taperoá/PB, no sítio "Serra do Saco", de Adalício Andrade, um dos poucos remanescentes do cangacei-rismo nordestino. É o velho Odilon Sebastião da Silva, o "Cobra Verde", do grupo de Antônio Silvino. Contando 87 anos, está lúcido e ainda trabalha de manhã à noite, no cabo da enxada. Queixa-se apenas da vista curta. Pelo que relata, deve estar com catarata em evolução. Alvo, de fala mansa, sem expansões, feições finas, respeitador, goza da estima do patrão e de quantos o conhecem. Avisado de que iria contar alguma coisa do "cangaço", pediu licença para se sentar e acender um cigarro.

– Onde nasceu o senhor, seu Odilon?
Nasci ali na Umburana, hoje Itapetim, Estado de Pernambuco. Meu pai era da família Garapa, de Teixeira, e minha mãe dos Cunha, das Cacimbas, hoje no município de Desterro. Mas eu fui batizado em Soledade.
 
– E por que isso, seu Odilon?
Meu pai se meteu em briga e teve que fugir às pressas. Eu era novinho e fui levado dentro de um saco para Soledade, onde meu pai foi morar, na fazenda Santa Teresa, do Coronel Claudino Alves da Nóbrega, conhecido como Dino Perna-de -Pau, porque tinha uma perna postiça de madeira. Naquele tempo, brigavam entre eles mesmos, de Teixeira para sair em Umburana, os Garapa, os Guabiraba, os Dantas e os Pereira. Isso desde o fim do século passado.

– E como o senhor se incorporou ao bando de Antônio Silvino?
– Eu tinha dez anos de idade, quando ele apareceu em Santa Teresa. Procurava um menino para recados e mandados.


FOTO: Cortesia pesquisador/escritor, Dr. Sérgio Augusto Sousa Dantas.


Interessou-se por mim, porque eu era muito ligeiro. Mandava buscar um cavalo, longe, e eu chegava em cima dos pés, com o animal. Meu pai e minha mãe não queriam se separar de mim, mas o Capitão garantiu que me trazia em casa de vez em quando. No bando de Lampião tinha "Sabonete", que carregava os "troços" de Maria Bonita, quando ele era menino.

– E por que o apelido de Cobra Verde?
– As cobras verdes são muito ligeiras e, além disso, eu acho que foi porque eu tinha cor meio esverdeada. Mas quero dizer ao senhor que houve outros cabras com o nome de Cobra Verde, tanto no bando de Lampião, como no de Antônio Silvino. Eu fui o segundo Cobra Verde do grupo dele. Muita gente pensa que eu fui homem dos dois, mas não senhor, eu só servi ao Capitão Antônio Silvino.


PRIMEIRA VIAGEM

Naquele tempo – prossegue Cobra Verde – o grupo do Capitão era pequeno. Tinha somente sete homens. Eu não conheci os outros que andaram com ele antes de 1910, mas me lembro bem que quando entrei, estavam no grupo: João de Banda, Passarinho, Zé Bernardo, Cajarana, João Polia, o Negro Geraldo e Gato, que é daqui do Cariri, e estava vivo até um tempo desse, morando aí entre Livramento e Cordeiro.
 
– Da fazenda Santa Teresa, o Capitão tirou direto para a fazenda do finado Benedito Queiroga, em Pombal, chamada Várzea do Saco. Quando chegamos lá, ele me mandou de volta, para devolver os cavalos. Ainda me lembro que dois animais eram daqui de Taperoá, um deles do coronel Deusdedit Vilar, o outro do doutor José Queiroga, que foi dono da fazenda "Colme Pinto", que depois foi de Sabino Pinto e hoje é do Dr. José Madruga.


Faz uma pausa, puxa uma baforada e diz: – O Capitão era assim. Quando tomava uma coisa empres¬tada fazia questão de devolver. Também, quando tinha precisão, ninguém lhe negava o que pedia.

MAIS NA PARAÍBA

O Capitão Antônio Silvinocontinua Cobra Verdegostava mais da Paraíba, embora andasse pelo Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Não teve lugar para a gente não ir, a cavalo ou a pé, tanto nos sertões como no Cariri e nos brejos. Andava-se sempre a pé. Estivemos bem perto da Capital e o Capitão tinha vontade de chegar lá. Em todo canto ele tinha amigos e s6 era perseguido pelos "macacos".

— E o senhor continuou fazendo mandados?
— Muito bem, distinto. Eu, sendo menino, não dava para ninguém desconfiar que era gente do "cangaço". Ia nas cidades fazer compras, especialmente charutos para o Capitão, que gostava muito, dar recados a fazendeiros, trazer animais, água e comida.

— E ele mandava dinheiro?
— Não senhor. Eu levava a ordem de um fazendeiro para ser despachado no comércio.

— E Antônio Silvino dormia com vocês, no mato?
— Sim, senhor. Nunca dormia fora do grupo. Às vezes, deixava a gente e ia na casa do fazendeiro, sozinho, para conversa entre eles. Voltava logo. Se acontecesse que levasse um cabra, acompanhado, deixava ele do lado de fora.

OS COMBATES

— Quando foi que o senhor começou a participar de tiroteios?
— Até os doze anos, seu moço, eu ajudava durante os "fogos". Ligeiro como era, eu carregava os rifles dos cabras. As armas esquentavam muito. Muitas vezes, quando tinha água, era preciso até molhar os canos para esfriar. Dava recados do chefe a uns e outros. Sabia atirar direitinho e era doido para entrar no serviço. O Capitão estava esperando que eu ficasse maior. Mas, um dia, aqui bem perto, abaixo de Santo André, num lugar chamado Lagoa de Pedras, quando o dia estava amanhecendo, o Capitão foi dizendo: "espia meninos, como está o aceiro da lagoa, cheio de macacos".

— Era a polícia, seu Odilon?
- Ora se era! Era o alferes Maurício, homem valente, com vinte e cinco "macacos". Ele vinha rastejando o grupo. O Capitão já tinha sabido que esse alferes estava lhe perseguindo. Quem avisou a ele foi o fazendeiro Raulino Maracajá, no anoitecer do dia anterior. 

O Capitão pediu a ele que fizesse ver ao alferes que desistisse de nos perseguir porque ninguém ia se entregar e a parada ia ser muito dura. Mas o alferes queria fita enão atendeu ao aviso. Amanheceu o dia na beira da lagoa, seguindo os rastros da gente.

- E quantos homens tinha o Capitão, naquela ocasião?
- Eram somente uns dez homens, mas eram umas feras. Valiam por cem, porque não tinham medo de nada e atiravam até no vento.

Prossegue Cobra Verde:

- Ia começar o tiroteio. Os "macacos" ainda não tinham nos avistado e nós ficamos esperando o primeiro tiro, que só podia ser disparado pelo Capitão.

- E ele atirava bem, seu Odilon?
- Era capaz de acertar num mosquito!

- E aí, o que aconteceu seu Odilon?
- Ele escalou o rifle e ficou mirando. Quando o alferes ia baixando a cabeça para olhar rastros no chão, do outro lado da lagoa, o Capitão mandou-lhe fogo na testa, de longe. O bicho caiu, os "macacos" se assanharam e aí fechou-se o tempo. Foi fogo grande, meu doutor! Perto do meio-dia, serenou um pouco. Os "macacos" pensavam que a gente tinha saído. Então, um -macaco- pretão subiu num pereiro para nos avistar. O Capitão disse para nós: "deixa, menino, que eu vou botar aquele porco abaixo—. Meteu-lhe bala e o bicho caiu como um cevado! Quando fomos vê-lo, de tarde, ainda foi sangrado.

- Como terminou, seu Odilon?
- Eu estava acostumado a ver "fogos" maneiros e pesados, com meia hora, uma hora, duas ou três de duração. Mas o de Lagoa da Pedra foi brabo. Deu dez horas, meio-dia, e o fumaceiro estava fazendo nuvem. E foi naquele dia que entrei. O Capitão viu que o aperto era grande e disse: "pegue o pau furado e mande bala nesses cachorros". De tarde, ainda se lutava. Com o sol já se pondo, foi parando. Os "macacos" correram e nós ficamos atirando neles pelas costas, embora recebendo resposta aqui e ali. Com pouco tempo, o Capitão saiu e foi dar um "corta-lourenço" .

- E o que era "corta-lourenço", seu Odilon?
- Era fiscalizar as redondezas para saber se ainda havia "macaco" que pudesse mandar algum besouro doido.

- E o que era besouro?
- Era bala, meu patrão!

Narra ele que, encerrado o tiroteio, Antônio Silvino foi direto ao local onde estava o cadáver do alferes. Pegou uma pedra grande e meteu-a na cabeça do morto.  

Voou miolo de juízo para toda parte. Nessa hora, ele disse assim: "quando se mata cobra a gente esmaga a cabeça dela". Morreram muitos "macacos". Contamos até nove. Dos que escaparam, um deles foi parar ferido na fazenda "Barrocas". de Terto Marques, muitas léguas p'rá baixo.

REVÉS

– Houve combate ruim para vocês, seu Odilon?
– Ora se houve! Ali numa lagoa, perto de Patos, a gente vinha andando por dentro da caatinga, vindo de Catolé do Rocha, onde houve um fogo maneiro. O rumo era a fazenda Malhada da Onça, no Desterro. De surpresa, foi o encontro com os "macacos". Apesar de se andar prevenido, quase não houve tempo para repicar. 

Fechou-se o tempo e a bala zuniu no meio do mundo. Fizemos estrepulias'de toda qualidade, mas corremos com os tiros nas costas, por dentro da jurema, em busca do sertão. Morreram muitos, tanto "macacos" como homens do bando. Mataram Criança, que era homem de toda confiança do Capitão. Pois bem, ele ferido e amarrado e com a cara coberta com um pano, foi fuzilado. Mas era de uma coragem fora do comum. Pediu que tirassem o pano da cara e o soltassem, para morrer brigando com os "cachorros". O oficial disse que era um perigo soltar um cabra daquele. Foi fuzilado na hora. Perdemos outros camaradas e não morremos porque conseguimos fugir.

– E quando acontecia isso, como se encontravam depois?
– Era tudo combinado antes. Quando se partia para algum lugar, o Capitão dizia onde deveriam se encontrar com ele, se caíssem num "imbé" e escapassem.
 
– E o que era "'imbé", seu Odilon?
– Era emboscada, seu moço.

Continua a narração:

– Desta vez, o encontro era na fazenda Várzea do Saco, do finado Benedito Queiroga, que era lugar onde o Capitão descansava. Estavam todos estropiados. Depois que chegou o derradeiro, foi que se ficou sabendo que cinco morreram. O Capitão chorava como menino, lamentando a perda de homens de confiança.

O BANDO

– E como ele reconstituía o bando?
– Não faltava quem quisesse entrar. Mas o Capitão testava o cabra para ver se era valente. Muitas vezes, travavam-se no punhal, ele e o freguês que queria entrar. Uma vez, ali em São José da Lagoa Tapada, ele "esprementou um caboco" novo que se apresentou para entrar no grupo. Foi uma meia hora de briga e o cabra era bom mesmo e terminou entrando. Nesses sertões velhos e também aqui no Cariri, não faltava homem valente. E ali no Brejo era a mesma coisa. Eu fui na fazenda "Geraldo", perto de Campina, nas encostas de Alagoa Nova, para trazer dois cabras bons. No Ceará, no Rio Grande do Norte, no Pernambuco, tinha homem valente em todo canto.

– Do bando, quem mais Antônio Silvino considerava?
– Era doido por Criança, Chico Sabiá, Zé Bernardo e Jararaca, valentes e perversos demais. Tinham coragem de onça. Ele dizia que estando com eles não tinha medo de "macaco" nenhum. Vez por outra, era preciso que o Capitão os "chamasse às ordens".

– E os outros mais que estiveram no bando?
– Antônio Sobral, que depois chegou a formar um grupo para ele mesmo, mas que durou pouco; Cícero Azevedo, Zé Coruja (este por pouco tempo) e mais outros que agora não me lembro.

– E o grupo era grande?
– Não senhor. Quando eu entrei eram sete, como eu já dis¬se. Depois, foi aumentando, mas nunca passou de quatorze, quinze ou dezesseis homens. Quem tinha bando grande danado era o Lampião! Esse era bandido de verdade. O Capitão Antônio Silvino era cangaceiro, sim senhor, mas bom e justiceiro. Matava quando não tinha outro jeito.

– E quando um ficava ferido, o que fazia o Capitão?
– Se o ferimento era grave, ele procurava um fazendeiro para tomar conta do homem. E ia embora.

– E se o cabra melhorava, voltava?
Não senhor. O Capitão não queria mais não.
 
– E por que, seu Odilon?
– O senhor sabe, um balaço pesado deixa o homem fraco.

– E se o ferimento era menor?
O cabra tinha que se tratar andando, tomando garrafada do mato e botando raspa de pau nas feridas. Se não tivesse condições de andar, ficava. Depois, podia procurar os companheiros.


FOTO: cortesia do escritor/pesquisador, Dr. Sérgio Augusto Sousa Dantas

MUITOS COMBATES

Cobra Verde dá os lugares e até as datas dos tiroteios. Recorda os nomes dos coiteiros e das fazendas, tanto na Paraíba, como no rio Grande do Norte, no Ceará e Pernambuco. Repete que havia "fogos" maneiros e pesados. Em Catolé do Rocha tiveram arregaço ligeiro. Quando entraram na cidade, até as mulheres ofereciam dinheiro ao Capitão, que conheceu que o povo gostava dele. Mas lá o negócio era quente. Nem Lampião aguentou.

Os tiroteios pesados e maneiros foram muitos – adiantou. Ali no Rio Grande, brigamos um bocado, e aqui na Paraíba foi de Conceição até o Brejo, nas barbas do Governo.

O REVÉS FINAL

Seu Odilon diz que o Capitão gostava de todo mundo, mas ficava com raiva de quem o denunciava à Polícia. Por isso tanto brigava com os "macacos" como ajustava contas com os que facilitavam para ele cair nos "imbés".

– E por que foi derrotado?
– Porque buliu com quem não devia.

– Como assim, seu Odilon?
– Em Soledade, soube que o vigário, padre José Betâmio, parente do coronel Dino Perna-de-Pau, estava falando contra ele. Foi lá e deu uns empurrões no padre velho e ainda esfregou a macaca (açoite de animais) nas ventas dele. Logo que saiu, foi dizendo que tinha começado a se atrapalhar porque tinha mexido com um padre.

– E ele era católico, seu Odilon?
– Era, sim senhor. Fazia as orações dele.

– E o que aconteceu então, Cobra Verde?
– Mal deu as costas, o padre mandou bater os sinos e celebrou uma missa forte contra ele, como se fosse de corpo presente.

- E daí para a frente, o que aconteceu?
- Ele ia para a Serra de Taquaretinga, no Pernambuco, mas resolveu passar antes em Pocinhos, onde tinha acertos de coisas com fazendeiros. Em Pocinhos, o vigário não deu atenção a ele, de certo porque sabia o que tinha acontecido com o colega de Soledade. Esse outro padre também recebeu uns empurrões. Quando o Capitão deu as costas, chegou Frei Maninho, a quem o vigário, de joelhos, contou o sucedido.

Frei Martinho, botando a mão na cabeça do padre, disse-lhe: "fique certo de que aquele bandido não fará mais isso com ninguém".

E continua Cobra Verde a narração:

Saindo no rumo de Taquaretinga, o Capitão disse mais uma vez a todos nós que estava mesmo atrapalhado. Logo adiante, ali perto da fazenda "Cabeça de Boi", encontrou uma boiada, que se soube pertencer ao coronel Cristiano Lauritzen, que tinha arranjado o alferes Mauricio para persegui-lo. Atirou em um boi e a bala varou o animal de um lado para outro. Mesmo com o sangue esguichando, o boi saiu acompanhando o Capitão, urrando forte, como se estivesse agourando ele. Aí, ele disse novamente: "conheço que estou atrapalhado".

PRISÃO DO CAPITÃO

Parecia que o Capitão estava "ispritado" – conta Cobra Verde. Logo que entrou em Taquaretinga, mandou invadir as casas de Comércio e tomou os dinheiros dos apurados e jogou na rua para o povo apanhar. Um fazendeiro convidou o Capitão para ficar na propriedade dele. Debaixo de um juazeiro grande, a gente jogava sueca. Um menino vinha trazendo comida para nós, quando o comandante de uma força policial o apertou num interrogatório e acabou sabendo onde estava o bando. Fomos pegados de surpresa. O Capitão Antônio Silvino recebeu logo o primeiro balaço na coxa e deu ordens para que a gente corresse. Ele ficou sozinho. Um soldado quis sangrá-lo, mas o oficial – um homem educado – não deixou. O "macaco" insistiu e foi expulso na hora.

O Capitão foi levado numa rede. Recebeu tratamento, ficou preso, condenado a 32 anos de cadeia. Tirou os trinta. Nós fugimos para a Várzea do Saco, em Pombal. Levamos muitos dias para chegar. E acabou-se. Cada um foi morar e trabalhar com algum patrão. Eu fiquei lá, ainda muito novo, trabalhando em tudo, com o finado Zé Queiroga, durante 18 anos. Passei a me chamar Armando. Com o tempo, também me chamavam "Leão" e depois que a idade aumentou, uns me chamavam "Velho do Bisaco", porque eu sempre andei com um bisaco a tiracolo.

– E nunca mais viram o Capitão?
– Nós voltamos para visitá-lo em Taquaretinga; depois esteve nas prisões de Recife, João Pessoa é Campina Grande. A gente levava charutos para ele e a conversa era recordação das coisas passadas. Ele trabalhava na prisão, fazendo uns chicotes, com um punhal embutido no cabo.

E remata saudoso:

— Era homem de conversa boa!

— E quando soltou-se, o que fazia?
— Ainda andou muito por aí. Sei que foi ao sertão receber até dinheiro que tinha emprestado a fazendeiros.


FOTO: Cortesia do escritor/pesquisador, Dr. Sérgio Augusto Sousa Dantas

BALAÇOS

Perguntado se foi ferido, pediu licença, tirou a camisa e mostrou as cicatrizes no ventre e nas costas. E acrescentou:

— O primeiro foi em Alexandria, Rio Grande do Norte, e o segundo foi em Lastro, na Paraíba, todos em tiroteios com os "macacos". No Lastro o homem forte era o coronel Manuel Gonçalves.


 Manoel Gonçalves de Abrantes (1889 - 1973) 

OUTROS FATOS

Conta Cobra Verde que Antônio Silvino tomava as dores dos outros. Em Taperoá mesmo, um homenzinho o procurou para dizer que o major Jocelino Vilar, que era chefe político, proibiu que ele vendesse rapadura no mercado velho. Ele foi ao "major" e disse-lhe que a ordem não ia ser cumprida. Como o velho não gostou, o Capitão o chamou de "major de merda". Certo é que, quando ele passava por aqui, procurava saber se o homenzinho estava negociando. E estava... Ainda dando informações sobre o Capitão, disse que ele tanto tomava dinheiro emprestado, como recebia por doação, mas também emprestava dinheiro a fazendeiros amigos. Muitos foram lhe pagar na prisão. Depois de solto, ainda recebeu dinheiro que tinha emprestado.

— E como comprava arma e munição, seu Odilon?
— Nunca comprou nada disso. E nunca deixou de ter rifle bom e bala. Os fazendeiros lhe davam, porque precisavam de amparo dele contra perseguições de inimigos e dos "macacos".

— E os apetrechos do bando, quem os dava?
— Era tudo feito ali em São Mamede, pelos Caroca: os chapéus de couro, cartucheiras, "alpercatas" e "bornais". Os punhais eram verdadeiros espetos. Também eram dados.

– E vocês se divertiam?
– Pouco. Quando a gente estava numa fazenda segura, o Capitão mandava preparar um baile. Arranjavam tocador bom e cavaleiras. Dançava-se até a barra aparecer. Dois ou três homens se revesavam na vigilância, do lado de fora, para evitar surpresa. O Capitão era dançador.

– E vocês bebiam?
– Não senhor. O Capitão não permitia, porque dizia que o homem que bebia ficava inconveniente e podia "botar as coisas a perder". Se algum bebesse, era pouco, com ordem e fiscalização. Ele mesmo nunca bebia. Quando muito um "goipe" de vinho.

– Contam que os cangaceiros faziam violências com as moças. É verdade?
– No bando do Capitão Antônio Silvino, isso não acontecia. Era uma coisa que ele avisava: "se fizerem safadeza com moça, eu mato".

– E algum cabra se revoltava contra ele?
– Quem era que tinha coragem para isso? Ele dava ordem e todo mundo respeitava!

– Dizem que ele mandou uma mulher se abraçar com um mandacaru?
Não foi bem assim. A mulher, dona de casa, tinha falado umas besteiras. Ele soube e foi lá. Mandou que ela se abraçasse três vezes com o pé de mandacaru. Mas disse aquilo só para fazer medo. Uma filha da mulher se abraçou com ele, chorando, e pediu para não fazer aquilo, ele atendeu logo.

Cobra Verde diz ainda que devem estar vivos outros companheiros do bando. No curso da conversa, lembrou-se de Zé Renovato e de outro "da cara miúda que só espiava p'rá baixo", cujo nome não recordou.
Esses doisdiz eleestavam morando em Catolé do Rocha até um tempo desse. Se vivo for, Renovato deve estar caducando.

Adianta que numa viagem que fez para Goiás, passou por Brasília, e lá encontrou o negro Isac, que ele chama "Isac dos Pés de Paiêta". Estava trabalhando numa firma construtora. O outro, ainda possivelmente vivo, seria o Gato, já falado.

O MAIS VALENTE

– Todos eram valentes. Mas eu acho que Zé Bernardo, caboclo baixote, tamboeira mesmo, de braço curto e grosso, era muito corajoso. Tinha força de animal. Muitos anos depois, ele morava na "Taba", outra fazenda dos Queiroga, quando eu tive aviso de que cinco sujeitos arrebanhados por Zé Coruja, que tinha sido do bando, estavam vindo de Lagoa do Catolé para matá-lo. Fui avisar a ele, de noite, a pé. Era distante. 

E como sabia que ele tinha rifle cano-de-mamão, fraco, deixei com ele o meu, um papo amarelo. Ele botou os filhos e a mulher debaixo da cama e esperou os cabras, que arrombaram as portas da casinha. Mas não ficou um para contara história. Matou todos. Fez uma ruma dos corpos e amanheceu no pátio da fazenda, avisando ao patrão para mandar buscá-los.

MAIS FATOS

Antônio Silvino era ligeiro como um gato, e era andador. Cobra Verde narra que estavam vindo do Ceará e entrando na Paraíba. No lugar conhecido como Boqueirão dos Gatos, que deve ficar nas encostas de São José de Piranhas (antigo Jatobá), o Capitão travou combate com uma onça pintada, usando o chapéu de couro como escudo. Matou-a com uma punhalada. Mas Zé Bernardo agarrou-se com uma, no braço. Ela já estava ferida pelos cachorros que a acuavam. Os outros cabras ajudaram a matá-la de arrocho. O mulato fez mais do que o Capitão, porque dominou a fera. Isso aconteceu quando a gente estava voltando de um jogo de sueca e de uma buchada preparada na casa de um sujeito chamado João Sessenta, num vão de serra distante de Pombal.

Na sede da fazenda velha Várzea do Saco, havia, como ainda deve haver, túneis com saída para açude e outros pontos – adianta Cobra Verde.

E continua:

– Subindo a Serra dos Anís, vindo de passagem para Desterro, uns caçadores estavam atirando. Imaginando que eram "macacos", Antônio Silvino mandou fazer fogo contra eles. Os homens gritavam: "É caçador, Capitão, é caçador, Capitão"! Um deles encostou-se numa imburana e o Capitão atirava arrancando as cascas do pau. Foi medo grande! Safa rindo às custas do medo que fez a eles.



ÚLTIMA ENCRENCA

E tudo ficou em paz como senhor, seu Odilon?,
– Muitos anos depois, um cachaceiro quis desfeitas uma filha minha. Eu estava até sem arma na ocasião. Peguei uma pedra e lasquei-lhe a cabeça. Ele morreu e eu fui preso. Mas o tenente Osório Queiroga me soltou e mandou que eu ficasse fora de Pombal, longe, durante quinze anos. E assim eu fiz, cumprindo suas ordens. Andei por Misericórdia onde tinha um irmão, por Teixeira, São José do Egito, Taperoá, Soledade. Estive até em Brasília, quando ía em busca de dois irmãos que moravam no Goiás. Foi dessa vez que encontrei Isac dos Pés de Paiêta.

TRISTEZA

Cobra Verde anda muito triste. Faz pouco tempo que um bêbado matou um filho dele, do segundo matrimônio, um rapaz calmo e trabalhador, segundo todo mundo informa. Foi esfaqueado sem ter havido sequer uma discussão. O criminoso fugiu. Diz ele que tudo é como Deus quer, mas ressalva:

– Ah! seu moço, se eu ainda tivesse pelo menos a vista boa!... Ia cortar Lourenço para encontrar aquele perverso. E se aparecerem com ele, não precisa me entregar arma de fogo; basta um pau para eu enfrentara covardia dele.

Ainda hoje não se aparta de uma bolsa. Diz que nunca deixou de andar com um bisaco, onde conduz documentos, cigarros e pequenas coisas, e uma arma, quando necessário.

Após um dia de conversa e de recordações, Cobra Verde conclui:

– Pois é, tudo isso se passou. Foi coisa do destino. Pergunta e ele mesmo responde:

– Piá que? Prá nada!


Fonte: Jornal: "O Norte" • João Pessoa: 15/11/97

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Um abraço a todos
IVANILDO ALVES SILVEIRA
Colecionador do cangaço
Membro da SBEC

6 comentários:

Narciso disse...

Postagem sensacional,incrível a memória de Cobra Verde riquíssima em detalhes...Ô BLOG arretado.

Kiko Monteiro disse...

Todos os envolvidos nestas sagas que tanto admiramos viveram e vivenciaram momentos que perduraram em suas memórias com detalhes e alguns lapsos por décadas e décadas a frente e com o Cabra de Silvino não foi diferente! Assim a história foi sendo construida

Confrade Narciso obrigado pela atenção de sempre!

Kiko Monteiro

BISMARCK MARTINS DE OLIVEIRA disse...

Prezado KIKO,

Há mais de 30 anos que pesquiso o CANGAÇO (O Cangaceirismo no Nordeste - 1988/2002 e Histórias do Cangaço: O Saque de Sousa(PB) - 2010, e, infelizmente, de vez em quando topamos com um mentiroso deste.

Se, em março de 2010, o "Cobra Verde" tinha 87 anos, então, ele nasceu em 1923.

Ora, basta o amigo olhar a biografia de ANTONIO SILVINO, para ver que ele foi PRESO EM 1914.

Daí, IMPOSSÍVEL, que esta "cobrinha mentirosa" tenha-o sequer conhecido.

No mais, prontifico-me ao Vosso dispor,

Abraços,

BISMARCK MARTINS DE OLIVEIRA

Kiko Monteiro disse...

Saudações Sr Bismarck
Muito bem vindo seu comentário e observação. Mas observe no final da matéria a fonte da mesma "JORNAL O NORTE 15 DE NOVEMBRO DE 1997". Março de 2010 foi a transcrição feita por nosso colaborador Ivanildo Silveira. Mesmo assim ele só teria 4 aninhos na ocãsião em que Silvino foi preso, só um bebê.

Há não ser que o jornal tenha repostado uma noticia histórica naquela data concorda?

Havia muitos falastrões entre os ex cangaceiros e volantes, sem contar os farsantesa pelo sertão afora entulhando a história pela qual somos apaixonados.

Um dia destes me apresentaram um senhor que dizia ter sido da volante que aniquilou Lampião, fiquei interessado porque ele era de Poço das trincheiras, AL. (alí vizinho a Santana do Ipanema terra do Major Lucena). Preparei meu gravador e ao perguntar a idade dele (isto foi no final do ano passado) ele me respondeu "70 anos" rsrsrsrs ai minha entrevista se encerrou alí mesmo.

Eu possuo seu livro visse? Foi um presente do nosso amigo Professor Pereira de Cajazeiras.

Abraçando, obrigado pela visita e atenção à matéria. Fique a vontade para observações, correções etc.

Unknown disse...

Olá,eu estou fazendo a genealogia de minha família e descobri que este homen que o Senhor repórter entrevistou se dizendo ser Cobra Verde é irmão de meu avô,gostaria de saber mais detalhes sobre ele por favor se puder entrar em conntato comigo pelo email tsubotaanjos@hotmail.com
Obrigada

Unknown disse...

Eu sou bisneto do Coronel Claudino Alves da Nóbrega, Dino Perna-de-Pau. Já ouvi histórias que relacionam meu bisavô com o cangaço, só não me lembro com exatidão. Acredito que essa história havida entre Antonio Silvino e Padre José Betamio tenha ocorrido na presença do Coronel.
Parabéns pela matéria.