sexta-feira, 5 de julho de 2019

Claude Eylan

A jornalista francesa que desejou encontrar Lampião

Transcrito do “Diário de Pernambuco” – 23/01/1938 por Antonio Correia Sobrinho


Henri KAUFFMANN
(Para os “Diários Associados”)




- Como foi a viagem?

Ao formularmos a pergunta banal, quando a poucos dias, Claude Eylan desembarcou de Pernambuco, esperávamos, de certo, alguns detalhes pitorescos, observações justas e profundas palavras amáveis.
Nossas previsões, porém, foram de muito ultrapassadas e verificamos mais uma vez que ver e ouvir não são apenas sentidos. São dons, e dons raros. Todo mundo registra uma vista ou um som; somente os privilegiados recebem das visões e dos sons a emoção que, segundo os casos, se transforma em obra de arte, página de literatura ou “impressões” no sentido mais completo e mais elevado da palavra.

Claude Eylan manifesta sua alegria.

- Tenho tantas coisas para lhe contar – dia a jornalista e escritora francesa. – Pensava até telefonar-lhe, não que eu julgasse ter novidades para contar sobre uma terra já muito visitada, mas porque quero agradecer publicamente a fidalguia com que me trataram no Recife e no sertão, todas as atenções que recebi de todos, desde o governador até o mais humilde dos caboclos.
A escritora da “Revue des Deux Mondes” pronuncia com amor essa palavra “caboclo”, e um ligeiro sotaque, a par da ternura da voz, dão a essa palavra nossa o sabor inesperado e raro d’uma fruta da selva num ambiente de luxo.

Havíamos preparado algumas perguntas mas deixamo-las de lado.
O entusiasmo da Baronesa de Boccop (verdadeiro nome da escritora) externa-se de tal forma – calor e sinceridade – que toda tentativa no sentido de canalizá-lo entre os paredões dum questionário lhe prejudicaria a espontaneidade.

A GENTE PERNAMBUCANA

Holandesa, pelo seu casamento, Claude Eylan não podia deixar de ligar a visão de Pernambuco a certo período de seu passado:

- Compreendendo – assevera – porque os holandeses sentiram a atração dessa região que recorda suas paisagens: os canais, frequentemente o próprio céu, lembram o ambiente dos Países Baixos. Não falarei, porém, da paisagem tantas vezes descrita, mas sim da gente pernambucana, pouco conhecida, ao que me parece, e injustamente mal apreciada. Disseram-me, quando preparava minha viagem, que o Norte não progredia e que faltava ao nortista o espírito empreendedor e o gosto do trabalho. É absolutamente falso, pois, somente encontrei em Pernambuco, gente ativa e trabalhadora.
- Conheci as cidades e percorri o interior; estive em contato com intelectuais e operários, homens políticos e gente do sertão, ricos usineiros e modestos empregados, e encontrei em todos as mesmas características que revelam uma civilização várias vezes centenária; uma atividade que não é febril nem espalhafatosa, mas que repousa na vontade de vencer e encontra motivo de satisfação nas realizações do passado, nos empreendimentos do presente e nos planos para o futuro.
Outra característica de Pernambuco, e isso também se aplica a todas as classes, é a educação. Mesmo em pleno sertão, entre três caboclos e a natureza ainda rebelde, a gente se sente num ambiente de fidalguia. O pernambucano é um “gentleman”.

EXCURSÃO À CACHOEIRA DE PAULO AFONSO

Claude Eylan, a todo momento, fazia referência ao sertão e aos sertanejos. Visivelmente, nosso interior impressionou-a, e seu entusiasmo desperta nossa curiosidade. Perguntamos onde foi, quando e como.

- Por iniciativa de um grupo de amigos, foi organizada uma excursão à cachoeira de Paulo Afonso. Acompanhou-me o escritor pernambucano Mario Melo, grande conhecedor do sertão e dos índios da região.

Partimos de automóvel, com um itinerário que incluía uma visita a várias vilas do interior e a diversos acampamentos de índios. Passamos a primeira noite em Caruaru, uma cidadezinha que achei muito interessante, mais pitoresca, para nós, que as do Sul, porque conservou seu caráter e dela emana a tradição do passado e da civilização pernambucana.

A escritora continua:

- Daí fomos a Garanhuns, onde tivemos a sorte de chegar num dia de feira, espetáculo curioso em que aparecem ao olho do estrangeiro muitos detalhes que são outras tantas revelações sobre os usos e costumes.

Que vida e que cores! Como teria gostado de ser pintora e poder fixar essa visão. Bem entendido, não fugi às praxes turísticas; comprei uma porção de coisas que achei curiosa e também, por uma espécie de pressentimento (podemos ter uma pane – disse ao doutor Mario Melo) adquiri uma rede.

- Seguindo viagem, paramos em Águas Belas, onde fica um acampamento de índios. O que o governo faz para adaptar os silvícolas à nossa civilização é admirável. É uma grande obra, mas não esconderei que o espetáculo desses índios, na fase transitória em que se encontram, me deixou uma impressão de tristeza, já não são mais índios e ainda não são nossos iguais, quanto à civilização. Perderam sua personalidade, estão se desfazendo de suas características, mas não são assimilados; deixaram seus costumes e não adquiriram outros. Não podem ser defendidos, porque ainda não se definiram.

A escritora francesa teve visivelmente a sensibilidade despertada, e sua admiração pelo esforço gigantesco e pelas realizações tinge-se de piedade. Mas a narrativa é como a viagem: uma pequena pausa e, novamente, a marcha rumo a outros horizontes.

A SOMBRA DO FACÍNORA

Passaram a segunda noite da excursão ao sertão num pequeno hotel, cuja dona, segundo a expressão de Claude Eylan, a recebeu “como uma dama”.

No dia seguinte, chegaram à Cachoeira de PAULO Afonso. Espetáculo grandioso, em que a escritora se esforçou por não ver a usina.

- Aprecio demasiadamente a natureza – explica.
O regresso foi cheio de peripécias.

- A estrada não era das melhores – diz Claude Eylan com indulgencia – e, durante a noite, veio a inevitável “pane”. Estávamos em pleno sertão, e nas povoações que havíamos atravessado disseram-nos que Lampião estava nas proximidades. Que perspectiva, mas que bela reportagem. Aliás tudo bem pensado, esse “bandido” não deve ser muito perigoso: a gente sertaneja é tão amável.

- Mesmo assim, eu e minha rede abandonamos o carro e depois de uma hora de marcha, ao luar, encontramos uma choupana. Estendi a rede e dormi uma das minhas noites mais belas. O luar sobre o sertão, as carícias do ar. Mesmo assim, a ideia de Lampião voltava por vezes a me preocupar, tanto mais que havia um pássaro, ou uma ave (cujo nome esqueci), que, de vez em quando, fazia “hou.. hou... hou...” com uma vez igual a das pessoas quando se chamam umas às outras. Com certeza era pessoal de Lampião – pensava eu – mas não fazia mal, não; a gente do Norte é gente tão boa. Aliás que venha o Lampião. Tenho na bolsa o recorte duma entrevista que dei a O JORNAL. Ele a lerá.

Compreenderá que sou uma jornalista estrangeira e não deixará de me tratar bem. É capaz até de me pedir para publicar sua fotografia na “Revue des Deux Mondes”.

Creio que será difícil; eles lá são muito conservadores. “Hou... hou...” dizia a ave; a lua projetava, em feitios estranhos, a sombra dos cactos sobre o deserto; os passos do chofer, que chegava do carro à busca de ferramentas, ressoavam no silêncio da noite sertaneja. Mas Lampião não apareceu. É pena teria gostado de encontra-lo; não deve ser tão ruim quanto dizem. Não há gente ruim no Brasil. E com esse pensamento consolador e reconfortante, tornei a dormir até o romper do dia.

OUTRA PARADA INVOLUNTÁRIA

- Mal tínhamos começado a nova etapa, houve outra pane. Mas uma vez abandonamos o carro e caminhamos à procura de uma habitação. Dessa vez a casa era de um rico caboclo, casa de luxo para o lugar. Ofereceram-me tudo quanto havia e foram procurar tudo quanto podia ser encontrado de frutas e verduras para não me fazer infringir meu regímen vegetarinário.

Claude Eylan percebe nosso sorriso.
- Sei, vegetarianismo no sertão...

E sem transição:

- Vivi pensando no Portinari. Não podia ver caboclo algum ou negro sem pensar no retrato que Portinari teria feito dele. Aprendi muita cousa com Portinari, principalmente a ver. Assim como há escritores que nos fazem descobrir nossos próprios sentimentos, assim os pintores como Portinari abrem literalmente nossos olhos sobre o mundo. Conheci-o em Ouro Preto; foi uma revelação: entendi, então, as formas e as cores.

RECIFE

Indagamos das impressões da escritora quanto à cidade do Recife.

- Uma capital em pleno desenvolvimento – respondeu – grande centro de atividade, com exata noção dos valores, inclusive da do tempo. Notei, com prazer, que a cultura francesa era ali muito de perto acompanhada. O pernambucano, aliás, ficou muito latino; a civilização americana não o atingiu tanto quanto ao brasileiro de outras regiões. Admirei, sem dúvida, os belos edifícios modernos, os parques e os jardins, as usinas com seus aperfeiçoamentos, o “Hospital de Crianças” grande realização médico-social. A curiosidade de viajante fez, porém, com que me detivesse mais nas velhas construções, nas casas-grandes e nos mocambos. Já conhecia umas e outras através da literatura brasileira e da pintura. Os mocambos surpreenderam-me pelo seu asseio e pela satisfação de seus moradores por ali residirem: água bem pertinho, peixes à vontade. Visitei, também, muitas igrejas que contêm tesouros de arte, e muito apreciei as casas revestidas de azulejos, que transportam a gente três séculos atrás, embora frequentemente estejam entre dois prédios modernos.

Nome quase masculino, uma vida ativa de jornalista como poucos homens a têm, Claude Eylan não deixa, por isso, de ser mulher.

Assim concluiu nossa conversação e suas impressões do Recife:
- E isso, hein? (apontava o elegante tailleur de linho azul, que trajava com chique). Pois foi feito no Recife, meu caro senhor. Mandei fazer três outros. E vou usá-los em Paris, sabe?

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