quarta-feira, 26 de junho de 2019

Destinos diferentes

A família de Lampião em Juazeiro do Norte, CE

Por: Leandro Cardoso

Muita gente não sabe, mas a família de Lampião viveu em Juazeiro do período de 1923 a 1927, com a permissão do Padre Cícero. Na segunda década do século passado, por duas vezes, a família Ferreira teve que se mudar em razão dos entreveros com o vizinho José Alves de Barros, o Zé de Saturnino. Na primeira vez, obedecendo a um pacto de acomodação arbitrado pelo Coronel Cornélio Soares de Vila Bela, mudaram-se para a Vila de Nazaré (hoje Carqueja–PE).

Na segunda vez, demandaram à cidade alagoana de Mata Grande, ocasião em que morreram os genitores de Lampião, José Ferreira (vítima da volante de José Lucena Maranhão) e Dona Maria (vítima de um ataque cardíaco).

Em 1922, o jovem cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, já definitivamente com o pé fincado no cangaço, assume a chefia do bando do célebre Sinhô Pereira, que deixava o Nordeste em fuga para Goiás.

A família Ferreira, sem possibilidade de retornar para Vila Bela, procura abrigo em Juazeiro do Norte. Com a morte dos pais, João Ferreira (o único dos irmãos que não entrou para o cangaço), assume a chefia da família. Após conversa com o Padre Cícero, recebe permissão para se estabelecer em Juazeiro com as irmãs, cunhados, primos (os Paulo) e sobrinhos.


Lampião e familiares em Juazeiro do Norte

Na passagem de Lampião por Juazeiro do Norte, em 1926, foram tiradas várias fotografias da família. Na célebre foto da família reunida (que é vista acima), vemos na extrema esquerda sentado, Antônio Ferreira e na extrema direita, Lampião; a segunda sentada da direita para a esquerda é Dona Mocinha (tendo seu marido, Pedro Queiroz, atrás de si); ao lado direito de Pedro está João Ferreira; do lado esquerdo de João está Ezequiel (que depois entraria para o cangaço com o vulgo de Pente Fino); e, finalmente, o segundo da direita para a esquerda, em pé, é Virgínio (seria o futuro cangaceiro Moderno, chefe de grupo), casado com uma irmã de Lampião, que logo morreria de parto em Juazeiro.

Na ocasião da foto, Dona Mocinha (Maria Ferreira de Queiroz) estava recém-casada com Pedro e, nas várias ocasiões em que a entrevistei, ela sempre externou a enorme benevolência do Padre Cícero, e que todos da família se sentiam seguros em Juazeiro. Dona Mocinha, hoje com 96 anos, única remanescente viva dos irmãos e irmãs de Lampião, mora em São Paulo e foi diversas vezes entrevistada por mim. Contou-me que aprendeu a dançar com Virgulino tocando “harmônica” no terreiro da fazenda “Passagem das Pedras”, em Vila Bela, e que o irmão vivia na casa da avó, Dona Jacosa Lopes. Refere-se aos irmãos sempre com muito carinho, dizendo que o mais fechado era Antônio e o mais brincalhão era Livino Ferreira. E, em todas as vezes que conversamos, sempre externou a excelente acolhida que a família teve em Juazeiro, e gratidão de todos ao Padre Cícero. Tanto é que seu primogênito é afilhado do Padre Cícero.

Rememora com muita satisfação dos familiares de João Mendes de Oliveira, de quem se tornaram amigos. Dona Mocinha casou em Juazeiro com Pedro Queiroz e só deixou a Meca nordestina quando a polícia pernambucana intimou seu marido em Vila Bela, e o prendeu arbitrariamente. Então, Dona Mocinha (e parte da família), teve que deixar Juazeiro em 1927 para residir em Serra Talhada.

Para finalizar, deixo minhas homenagens à Dona Mocinha, que hoje, quase centenária e lúcida, é um repositório vivo da história recente do Brasil e de Juazeiro do Norte, uma vez que foi expectadora de camarote de um dos períodos mais interessantes e polêmicos da nossa história recente, além de ser testemunha inconteste do desprendimento e da bondade incondicionais do Padre Cícero Romão Batista.


 O autor com Dona Mocinha

O autor é médico, cordelista, escritor, residente em Teresina, PI – Foto

Palavra de um inimigo

Lampeão, segundo Optato Gueiros


Transcrição fiel à época, de Rubens Stone de trechos do texto introdutório ao livro "Lampeão - Memórias de um Oficial Ex-Comandante de Fôrças Volantes" (3ª edição - São Paulo - 1953), do Major da Polícia Militar de Pernambuco, Optato Gueiros.

*

Podemos considerar Lampeão enquadrado no rol das vítimas da política do seu tempo.

... Política dos "coronéis" armados que se degladiavam de quando em vez sob as vistas complacentes dos aulicos do tempo que interferiam quase sempre não para fazer justiça, mas para tirarem partido que falassem mais alto às conveniências pessoais.

Colocou-se Virgulino Ferreira ao lado da antiga família Pereira, do Pageú, que contendia, pelas armas, com a não menos tradicional família Carvalho.

Surgiram as primeiras desavenças entre a autoridade local e o futuro Lampeão que, vocacionado para as armas, crescia em meio aos bandos armados. Mui cedo deu provas de admirável capacidade tática e estratégica que assombravam os inimigos.

Todos os "coronéis-barões" foram humilhados por Lampeão e, quase todos, com o mesmo, firmaram acordos ditados pelo cangaceiro. Para que tivessem as suas propriedades em segurança, sujeitaram-se ao triste papel de moços-de-recados de Virgulino.

Podemos dizer também, sem errar: Lampeão foi um instrumento nas mãos de Deus para executar uma justiça que nem a polícia nem os juízes poderiam fazê-lo. Centenas de facínoras foram expulsos da terra natal por Lampeão, enquanto igual número era atraído para as fileiras lampeonescas, onde encontravam a morte ou a prisão. E assim é que, somente em Pernambuco, foram mortos e prêsos mais de mil cangaceiros pertencentes às hordas de Virgulino.



E, por esta forma, a destruição dos tarados existentes no Nordeste foi total. Lampeão matou mais indivíduos maus que já deveriam ter desaparecido do cenário dos vivos desde há muito, do que mesmo inocentes. Por outro lado, as fôrças-volantes abatiam impiedosamente elementos que se incorporavam aos grupos do rei do cangaço.

Somente os que perseguiram Lampeão podem dizer algo a respeito da refinada astúcia, inteligência, resistência física e bravura do mesmo. Pressentia a aproximação das fôrças como um cão de caça. Muitas tropas, ansiosas por um encontro, passavam às vezes, mais de um ano sem poderem fazer contato com o bando por Lampeão comandado.

O seu grupo oscilava de 60 a 100 bandoleiros, fracionado em pequenos bandos de 8 a 12 homens que agiam num raio de 50 léguas (...)

Lampeão era homem de uma índole cruel, verdadeiramente tigrina. Assassinou para mais de 1.000 pessoas, incendiou umas 500 propriedades, matou mais de 5.000 rezes; violentou mais de 200 mulheres e tomou parte em mais de 200 combates, aqui no Pernambuco e nos seis Estados nordestinos. Foi ferido seis vezes em Pernambuco. Em 1928, atravessou para a Bahia.


Com seis homens sòmente, chegou à Bahia extenuado e descarnado.

(...)

Foram muitos os atos de bravura que praticou, assim como inúmeros também os feitos de covardia e os de revoltantes vilezas e crueldades inomináveis. Revelava-se admirável no comando e com rara energia dominava as feras humanas que compunham os seus bandos, como se fossem tenros cordeiros.

Fisicamente era Lampeão insuperável. Esgotou centenas de perseguidores enquanto que ele aparecia, ao fim de cada jornada, sempre mais disposto.

Desvendou os segredos das caatingas desabitadas de seis Estados, a pé, e procurou devassar o imenso Raso da catarina, na Bahia, e por pouco não morreu de sêde com os seus cabras nesse Saara baiano.


Na intimidade da sua gente, nada tinha que se parecesse com a fera descoraçoada e bravia, tal como se apresentava em suas eternas rázias em busca de mais e mais dinheiro, que acumulava em suas bolsas e bornais.

Para Lampeão, a vida de um homem nada significava. Fez, entretanto, muitos prisioneiros - soldados, cabos e até mesmo um coronel da Polícia Militar de Pernambuco - e os soltou, deixando-os ir em paz.

Era Lampeão um mundo de contrastes, um complexo enigmático e um gênio ao repontar na vida.

Major Optato Gueiros, 1953.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Assombrações no cangaço

Xaxado na hora da morte

Por Wanessa Campos


Ilustração de João Astroboy


Dando sequência  "As Assombrações do Cangaço" vem agora  a segunda história  também repassada por João Jurubeba, em Serra Talhada, nos anos 70. Jurubeba foi um dos maiores perseguidores de Lampião. Ele contou para Amaury Correa como foi a morte de Dona Jacosa, a avó de Lampião. Ela, idosa, morava em Carqueja, hoje Nazaré, Floresta e com idade avançada quase não saia do quarto. Sempre recebia visitas da vizinhança.

João Jurubeba é o 3º a direita
Acervo Lampião Aceso


Certa noite, as mulheres passaram a escutar um barulho diferente, parecendo com baile. O barulho ia aumentando cada vez mais parecendo Xaxado. As batidas dos pés no chão iam cada vez mais se aproximando como quisesse entrar na casa. As mulheres assustadas correram apavoradas. Na porta, pessoas se juntavam, mas ninguém tinha coragem de entrar. Dentro do quarto, se ouvia o barulho do Xaxado invisível.

O volume da cantoria oscilava, bem como as batidas dos pés, mas não paravam. Alguém teve a ideia de chamar uma rezadeira para “puxar” o terço. Jogaram água benta na casa toda e a cantoria não cessava. Certo momento, se ouvia perfeitamente a cantoria com várias vozes:

Olé mulé rendeira

Olé Mulé renda,

Tu m ‘ensina a fazer renda

Qu’eu ten’sino a namorá


Dona Jacosa agonizava e a cantoria não parava. Isso demorou mais de um dia, até que certa noite, o Xaxado aumentou e ao mesmo tempo uma forte ventania apagou todas as lamparinas. Fez escuro total, a cantoria parou. Ouviu-se então um estrondo e com ele,  Dona Jacosa partiu. Ficou o relato contado pelos mais velhos.

Pescado no Mulheres do Cangaço

domingo, 16 de junho de 2019

Documentário

Lampião continua aceso

O Rei do Cangaço é o tema do documentário 'Lampião continua aceso', produzido pela TV Justiça. Virgulino Ferreira, trabalhador rural, deu lugar a Lampião, o cangaceiro que amedrontou o nordeste brasileiro por 16 anos. O que levou a essa transformação? Como era a vida fora da lei na Caatinga?

Os amores, os ódios, a morte. Esses sentimentos estão vivos 80 anos depois da emboscada que matou o bando cangaceiro. Lampião continua aceso.

Participação especial do pesquisador e escritor Sergio Dantas.

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Demarcando mais um sitio histórico

O combate das Caraíbas, 1926

Por Cristiano Ferraz

No último domingo, dia 09 de junho cumpri um compromisso assumido com o amigo Louro Teles em maio de 2017 quando visitamos o local do combate de Serra Grande em serra Talhada. O combinado era visitarmos juntos o local onde aconteceu o combate das Caraíbas em fevereiro de 1926 entre Floresta-PE e Betânia-PE.

Nos encontramos na manhã de domingo em Floresta, eu, Louro Teles que veio de Calumbi-PE com Sálvio Siqueira (vindo de São José do Egito-PE) e Richard Torres Pereira de Serra Talhada-PE.

Seguindo para o destino pouco depois onde chegamos por volta de dez horas da manhã na residência de seu Antônio Odilon dos Santos, 84 anos de idade e que há quatro anos atrás havia me mostrado o local quando o visitei com meu primo Manoel serafim durante os preparativos para o Cariri Cangaço em Floresta em 2016.

Aquela visita foi um dos fatos que motivaram a escrita do nosso livro As Cruzes do Cangaço – Os fatos e personagens de Floresta-PE, lançado durante na abertura do primeiro evento Cariri Cangaço em nossa cidade no dia 26/05/2016.
 


Após conversarmos um pouco com seu Antônio, sua esposa e alguns familiares (uma filha e uma neta), nos dirigimos ao local onde foram sepultados os volantes mortos no combate que fica a cerca de um e meio a dois quilômetros da casa. Não sem antes tomarmos um cafezinho com queijo de coalho, como é “de praxe” na casa de todo bom sertanejo.

Chegando ao local percebi a diferença de quatro anos atrás. O local havia sido desmatado e a cruz de madeira que não mais existia em 2016 havia sido refeita de forma improvisada e colocada no local. Rapidamente cavamos o solo e colocamos uma cruz de metal feita pelo amigo Louro Teles. Aproveitamos o momento para fazer alguns vídeos e fotografias registrando o fato.




Em seguida fomos ao serrote onde aconteceu o combate, que fica a dois quilômetros da sepultur junto ao leito do riacho da Maravilha. Hoje o local também está bastante modificado em relação à época do combate, pois antes não havia o açude que hoje forma uma represa no leito do riacho.

Seu Antônio, apesar da idade avançada nos acompanhou, tendo ficado numa sombra aguardando nosso retorno. O acesso ao local do combate no serrote, estava muito tomado pelo mato e ele preferiu ficar descansando. Com poucos minutos no local fizemos alguns vídeos e passamos a procurar vestígios do combate com o detector de metais manuseado por Louro Teles.

Rapidamente localizamos um projétil de rifle calibre .44 enterrado no solo por trás do serrote. Pouco tempo depois, foi encontrado um projétil de calibre .22 próximo ao local do primeiro. Com o rápido passar do tempo decidimos retornar para deixar seu Antônio em casa pois a hora do seu almoço já havia passado. Eram duas horas da tarde e acabamos demorando nos deslocamentos a pé indo e voltando para onde deixamos o carro.

Com os vestígios encontrados ficou a certeza de que aquele é mesmo o “palco” dos acontecimentos. Mesmo não tendo tempo para aprofundarmos as pesquisas no serrote e do lado oposto do riacho onde se encontravam as volantes, deduzimos que ainda ainda existem resquícios do acontecido e retornamos satisfeitos com o resultado. Firmamos assim o compromisso de retornarmos em breve para descobrir mais detalhes da dinâmica do combate.

O combate das Caraíbas, em Floresta foi travado entre Lampião e as forças volantes na quinta-feira dia 04 de fevereiro de 1926 às margens do riacho da maravilha, afluente do riacho do navio - nas divisas entre os municípios de Floresta e Betânia .

Participaram as volantes comandadas pelo Tenente Higino José Belarmino e Optato Gueiros contra o grupo de Lampião. Junto com Lampião encontrava-se entre outros o conhecido Manoel Pequeno (da fazenda Saco – na ribeira do riacho do navio) e seu grupo. Os cangaceiros se entrincheiraram no leito do riacho, em um serrote à margem deste e próximo a estrada por onde vieram os soldados, emboscando a força em campo aberto.

O confronto teve a participação da força de Nazaré composta por, Afonso de Sá Nogueira , Altino Gomes de Sá, Antônio Joaquim dos Santos (o famoso rastejador Batoque), Aureliano de Souza Nogueira (Lero), Aureliano Francisco de Souza (Lero Chico), Constantino Marcolino de Souza, David Gomes Jurubeba , Euclides de Souza Ferraz (Euclides Flor) , João Cavalcanti, João Domingos Ferraz, João Gomes Jurubeba, João Jurubeba de Sá Nogueira (João Gato), Joaquim Ferraz de Souza (Quinca Néo), Joaquim Francisco de Souza (Quinca Chico), Manoel de Souza Ferraz (Manoel Flor), Manoel Neto (Anspeçada), Pedro Gomes de Lira (irmão de João Gomes de Lira), Pedro Marcolino e Pedro Tomaz de Souza Nogueira.

O tiroteio durou até o final da tarde quando Lampião se retirou do local levando seus mortos (acredita-se que em número de cinco) sepultando-os na caatinga entre o local do combate e o poço do ferro (ou na fazenda São Brás, que fica a oeste do local) e deixando entre os volantes um saldo de pelo menos três baixas fatais, os soldados Aristides Panta da Silva (Este de Floresta), Benedito Bezerra de Vasconcelos e Antônio Benedito Mendes.

Os soldados mortos foram sepultados na margem esquerda do riacho da maravilha próximo ao local onde o riacho do Jacaré se une a este . O riacho da maravilha é a divisa entre os municípios de Floresta e Betânia.

No combate saíram feridos o Tenente Higino no braço, Manoel Neto no braço direito, Antônio Joaquim dos Santos (Batoque) na perna, João Cavalcanti, Altino Gomes de Sá (na “maçã” do rosto), João Pereira de Souza e João Pinheiro Costa.
 
 Tenente Higino Belarmino de Souza
Acervo Lampião Aceso

Na visita ao local tomamos conhecimento que durante o combate o fazendeiro/boiadeiro florestano Joaquim de Alencar Jardim (Quinca Jardim) retornava a Floresta após a venda de uma boiada. Antônio Ferreira, que brigava no serrote no momento, sabendo da passagem deste pelo local o esperou com mais dois cangaceiros na sombra de um umbuzeiro (conhecido como umbuzeiro do Marçá – ou Marçal) abordando-o para lhe pedir dinheiro.

Quinca Jardim naquele momento se acompanhava de Joaquim Serafim (conhecido como Joaquim Grande do Rancho dos Homens) e mais duas ou três pessoas. Joaquim Grande então disse a Antônio Ferreira que Quinca Jardim não tinha a quantia pedida pois vendera a boiada mas não recebera o pagamento. Antônio Ferreira se contentou com a resposta sem saber que o dinheiro do pagamento da boiada estava no bornal que Joaquim Grande carregava a tiracolo.

Dois dos outros acompanhantes de Quinca Jardim disseram a Antônio Ferreira que um dos cangaceiros que o acompanhava tomara o pouco dinheiro que estes carregavam. Antônio Ferreira então perguntou quem pegara o dinheiro e o mandou devolver. O cangaceiro o fez embora queixando-se do trabalho ingrato onde era obrigado a devolver o dinheiro ganho.

Menos de um ano após, no final do ano de 1926 Lampião mataria 129 reses de Quinca Jardim na Barra do Juá por não ter recebido dinheiro após um pedido (acredita-se que um bilhete). Isso, provavelmente aconteceu ao descobrir que fora enganado cerca de dez meses antes. Comenta-se que apenas uma rês escapou porque este fato se deu no dia da morte de Antônio Ferreira no Poço do Ferro. Na ocasião lampião se encontrava na região (Poço do Ferro – Pipocas – Rancho dos Homens) preparando-se para dar uma brigada com Ildefonso Ferraz do Curral Novo. Com a morte de Antônio Ferreira Lampião teve que ir às pressas ao Poço do Ferro para sepultar o irmão, morto pelo companheiro Luiz Pedro (do retiro) em um disparo acidental.

Há controvérsias quanto à quantidade exata de bois mortos por Lampião e seu grupo naquele dia. O certo é que no total a boiada era de 100 a 130 animais. Desses apenas uma rês escapou, sendo tratada por Pedro Ferreira, da fazenda Rancho dos Homens, tio de Antônio Odilon dos Santos, que nos mostrou o local do combate, a sepultura dos soldados e nos contou vários detalhes do que aconteceu ali naquela época.

Seu Antonio Odilon é neto de Antônio Pedro dos Santos, que foi inspetor de quarteirão na região onde poucos anos mais tarde viria a surgir a vila de Nazaré. Conta-se que por volta de 1910 em perseguição a Zé de Souza houve um tiroteio onde morreu uma criança. Os familiares da criança diziam que a morte deste só seria vingada com a morte de Pedro Ferreira, o filho primogênito de Antônio Pedro. Com isso Antônio Ferraz de Souza, padrinho de Pedro Ferreira o trouxe para Floresta na garupa de seu cavalo e procurou amenizar a questão tirando a família de Antônio Pedro para a região da Barra do Juá.

Estes então vieram para a Fazenda Rancho os Homens onde se estabeleceram e vivem até hoje, muitos dos seus descendentes morando na região entre Floresta, Betânia e Ibimirim. Entre os filhos de Antônio Pedro um deles se tornou muito conhecido por sua grande habilidade como vaqueiro. Chamava-se Joaquim Pedro dos Santos, o Quinca Pedro, da fazenda Urubu, vizinha ao Rancho dos Homens.

Maiores detalhes dessa história podem ser lidos em vários livros sobre o cangaço Lampiônico, entre os quais podemos indicar:

1) As Cruzes do Cangaço – Os fatos e personagens de Floresta-PE, de Cristiano Luiz Feitosa Ferraz e Marcos Antônio de Sá;

2) O Canto do Acauã, de Marilourdes Ferraz;

3) Lampião – Memórias de um soldado de volante, de João Gomes de Lira;

4) David Jurubeba Um herói nazareno, de José Malta de Sá Neto;


5) Lampião Seu Tempo e Seu Reinado, do padre Frederico Bezerra Maciel.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Jornal A Tarde, edição de 5 de Setembro de 1980

Cantando aboios morre em Serra Talhada o maior inimigo de Lampião

Por: Juarez Conrado

 José Saturnino Alves de Barros
Acervo Lampião Aceso


Impressionante o fato de um simples furto de bodes, tão comum nos longínquos anos de 1910 a 1920, haver se constituído no ponto de partida para uma das mais emocionantes histórias do banditismo em toda América Latina, fazendo com que um dos seus personagens, um tímido e bem comportado garoto, do interior de Pernambuco, se transformasse numa figura legendária, da qual ainda hoje se ocupam jornalistas, pesquisadores e, principalmente, sociólogos, todos eles interessados em conhecer de perto detalhes da vida desse homem que marcou época nos sertões brasileiros.

Lampião, já o sabemos, morreu há 42 anos, na Grota do Angico, no município, sergipano de Poço Redondo. Mas, quem era, e o que para ele significava José Alves de Barros, o José Saturnino, falecido a semana passada, aos 86 anos, em Serra Talhada?

Uma pergunta cuja resposta não poderá ser encontrada senão com o retorno ao ano de 1916, quando ambos, de bons e pacíficos vizinhos, acabaram por se transformar em ferozes e irreconciliáveis inimigos, que faziam do ódio suas vidas marcadas por tiroteios e emboscadas, tingindo de sangue a pequena região onde conviviam.

Uma situação que iria se transformar com o furto praticado por um dos empregados de José Saturnino, logo descoberto por um inspetor de quarteirão violento e autoritário, compadre e amigo do velho José Ferreira, que não hesitou em prender o ladrão, impondo-lhe uma série de impiedosos castigos. Era o começo de tudo.

Represálias

Saturnino irritado, iniciou uma série de represália contra os Ferreira, mutilando, quando não matando, suas criações, criando uma situação tão tensa entre eles que exigia a medição de autoridades locais, como o juiz de direito, Adolfo Cardoso, e o coronel e chefe político Cornélio Soares, ambos prevendo acontecimentos de extrema gravidade, a persistirem os desentendimentos. Os fatos que se sucederam são do conhecimento geral e deles muitos já se ocuparam, narrando-os, nem sempre, com muita fidelidade. José Saturnino não aceitava as acusações que lhe eram feitas como responsável pela transformação de Virgulino no cangaceiro que todos nós conhecemos.

Marilourdes Ferraz

Tanto não aceitava que, pouco antes de sua morte, em carta dirigida à jornalista pernambucana Marilourdes Ferraz, dizia que, na “realidade dos fatos, os sertanejos viviam em época de grande atraso...Quando a minha pessoa, fui criado pelos meus pais na Fazenda Pedreira e baixa de São Domingos, e que me ensinaram a respeitar os direitos alheios, o que posso provar com os meus vizinhos, especialmente, alguns que ainda restam com suas idades avançadas. Os Ferreira, certos ou errados, queriam superar aos demais; quando não gostavam de uma pessoas, tratavam de hostilizar, assim aconteceu com a minha pessoa.

Retiraram-se para um distrito de Floresta: dentro de dois anos, saíram por motivo de questões com os filhos da terra e a polícia do destacamento. Venderam o que tinham e foram para Matinha de Água Branca, Alagoas, onde, muito cedo, desinquetaram os irmãos Porcino Cavalcanti Lacerda... em consequência da vida turbulenta dos Ferreira, vieram a perder a mãe, D. Maria Ferreira Lopes, que faleceu traumatizada pelos vexames que passara vendo seus filhos perseguidos pela polícia alagoana, e depois, o próprio pai... motivo da conduta dos seus filhos”.


Retrato falado dos pais de Virgulino José Ferreira e Maria Sulena
segundo o padre Frederico Bezerra Maciel.


A revolta de Saturnino, ente tantas acusações, estendia-se aos seus filhos Aureliano e João Alves Barros, que, na mesma oportunidade, há cerca de um mês, escreveram o seguinte comentário, publicado pela imprensa pernambucana:

“Se algum cangaceiro destrata meu pai, está certo, está no papel dele. Agora, o que nos revolta, como sempre revoltou meu pai, é o fato de homens que tiveram a oportunidade de maiores estudos viverem perseguindo meu pai com acusações injustas, só para dar uma explicação para vida de cangaceiro de Virgulino Ferreira”.

 João Alves de Barros em foto de 2013.
Créditos Kiko Monteiro



E ressaltou João:

“Meu pai sempre viveu nesta região (Serra Vermelha); trabalhou no campo toda a vida; a vida dele como militar foi uma fase. Só entrou nas Forças Volantes depois que Lampião veio de Alagoas, diversas vezes queimar nossas propriedades e roubar o nosso gado. Nunca meu pai matou ninguém, nem dos Ferreira. Lampião, ao contrário, matou muitos dos nossos parentes, inclusive José Nogueira, com frieza, à traição, roubando-lhe até as alpargatas dos pés, tendo Antonio Ferreira calçado e saído com elas.

Nas “Volantes”

Em um dos muitos livros publicados sobre a vida de “Lampião”, e de autoria de pesquisadora Aglae, José Saturnino fala das lutas, das emboscadas, dos “homens machos” que lutavam ao seu lado, como Zé Caboclo, Zé Batoque, Paisinho, Cassimiro e Nego Tibúrcio. Refeiru-se aos insultos que trocavam quando se encontrava com os membros da família Ferreira, da troca de tiros com Virgulino, Antonio, Livino, Antonio Matilde e Luiz da Gameleira. Do cavalo que vendeu a Zé Ciprino, de Nazaré, da emboscada que lhe foi preparada por Virgulino, quando, no dia da feira, foi receber o dinheiro correspondente à transação com o animal.

Uma narrativa simples e que vale a pena ser descrita para mostrar o clima que reinava entre eles:

- Pru vorta das treis hora da tarde arrecebi o dinheiro du cavalo. Cem mil réis. Selei meu burro. Quando andei meia légua, fui envolvido numa emboscada. Eu e João Fuló brigamo cinco hora. Quando cheguei in casa era 9 da noite. Naquele tempo a puliça era pouca e quando a gente quebrava as acomodação do Juiz e do Coroné tinha tiroteio de novo. Eu e os vizinho sabia aqui os Ferreira irá cercar minha casa antes do dia quilariá. E viero. Brigamo desde 1 da manhã às 6. Eu tinha 23 homes. João Flor, Zé Caboclo, Zé Batoque, Cassimiro e Tibúrcio era cabra muito home, muito macho. A munição dos Ferreira se acabou-se. Se arretiraro chamando nomes feio”.

José Saturnino foi integrante das forças Volantes durante alguns anos e conviveu com cangaceiros famosos como: Cassimiro Honório e Antonio Matilde. Foi fazendeiro e sobretudo, vaqueiro. Lutou contra secas, inclementes e amou sua terra tanto quanto amou sua família.

Na noite em que morreu, José Saturnino cantou aboios como nunca o fizera em sua acidentada vida no campo, tangendo as reses.


Diz a crença popular que as pessoas antes de morrerem, revivem o passado. Se assim é, certamente naquela noite, o velho Saturnino deve se ter sentido, novamente de mosquetão, em punho.

Ao lado dos velhos e corajosos companheiros, fugindo das emboscadas armadas pelos Ferreira, com eles lutando com aquela coragem que guardou até os últimos momentos da vida.


Deveria ter-se visto vestido de gibão, chapéu e alpargatas de couro cru cavalgando por toda aquela região onde, quando não estava lutando, aboiava como um autêntico vaqueiro que era. Saturnino, afinal, está descansando.

Está sepultado, há cerca de 15 dias, na terra pela qual sempre viveu e lutou, porque a amava como a sua própria família. E com sua morte, com poucos registros na imprensa, desaparece uma figura da maior importância na história do cangaço brasileiro.

Apagava-se a figura de um homem que, durante toda a sua existência, dedicou-se a combater bandidos e bandoleiros, expondo-se à balas dos inimigos, num verdadeiro desafio à morte.

A morte que afinal, o levou de vencido em Serra Talhada, fazendo desaparecer um dos últimos remanescentes, e certamente de todos... da era de “Lampião”.

Adendo Lampião Aceso:

José Saturnino Alves de Barros, faleceu em sua fazenda, Maniçoba da Pedreira em 5 de Agosto de 1980, com a idade de 86 anos e já sem lucidez. A matéria foi ilustrada por nós.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Caravana funesta

Cabeças dos cangaceiros chegam a Maceió em 1938

Com a morte de Lampião e de parte do seu bando na madrugada do dia 28 de julho de 1938, na grota de Angicos, em Sergipe, os cangaceiros foram decapitados e suas cabeças transportadas para Maceió onde foram necropsiadas.

Antes de chegar à capital, um verdadeiro cortejo macabro foi realizado com as cabeças, que percorreram cidades e vilarejos, sendo expostas para visitação pública. Em Santana do Ipanema, por exemplo, as cabeças foram colocadas na calçada da igreja.


Muita gente foi para Santana do Ipanema 
esperar a chegada das cabeças dos cangaceiros.



Segundo o perito criminal Ailton Vilanova, o guardião das cabeças foi um militar conhecido como 'Azogado'. Foi ele quem pôs sal nas cabeças para mantê-las conservadas durante todo tempo em que foram exibidas como troféus.

Em Maceió, as cabeças foram levadas para a Praça da Cadeia, em frente ao Quartel da Polícia Militar. Uma verdadeira multidão ocorreu ao local nos dias 30 e 31 de julho.

Milhares de pessoas de todas as classes sociais viram o espetáculo grotesco de cabeças de cangaceiros em decomposição. Mesmo quando as cabeças foram levadas para o necrotério da Santa Casa de Misericórdia de Maceió, às 22 horas do dia 31 de julho, a multidão insistiu em acompanhar de perto os trabalhos dos legistas. Toda a área teve que ser isolada pela polícia diante das ameaças de invasão.

 Multidão tenta invadir a Santa Casa de Misericórdia 
de Maceió para ver as cabeças dos cangaceiros.


A necropsia ficou a encargo do médico-legista da Polícia, Dr. José Lages Filho auxiliado por José Aristeu, que acumulava a função de necropsista com a de motorista do veiculo que transportava cadáveres, segundo informações de Ailton Vilanova.

Devido ao péssimo estado de conservação após cinco dias de exposições, somente a cabeça de Lampião pôde ser aproveitada para os estudos científicos.

Sobre a cabeça do Rei do Cangaço, o Dr. José Lages Filho informou que ela havia perdido toda a massa encefálica em virtude das extensas e múltiplas perda de material ósseo. Isso impossibilitava os estudos sobre possíveis anomalias cerebrais do cangaceiro.

Sobre o estudo antropológico, necessário para identificar o criminoso nato segundo as teorias de Lombroso – muito em voga na época –, o legista disse que os únicos sinais de degenerescência eram a assimetria das orelhas, microdontia e a forma ogival da abóbada palatina.


Praça da Cadeia, local onde as cabeças foram expostas 
em Maceió.


Para Lampião ser um criminoso nato faltavam, ainda segundo o legista, os indícios de pragmatismo maxilar, deformações cranianas e outras características do perfil da Escola Lombrosiana.

A conclusão do laudo foi: “Todavia, nem por isso os dados anatômicos e antropométricos assinalados perdem sua valia pelas sugestões que oferecem na apreciação da natureza delinquencial do famoso cangaceiro nordestino. – (a.) Dr. José Lages Filho, médico-legista da Polícia”.

Estes estudos eram tão importantes na época, que o governo de Alagoas recebeu um pedido do professor F. A. Nóbrega, de Curitiba, que pretendia enviar as cabeças dos cangaceiros para estudos no Instituto Guilherme II em Berlim. O governo negou.


 Professor Ezechias da Rocha, chefe da Clínica da Santa Casa, 
jornalista Melchiades da Rocha e Dr. Lages Filho.


Depois dos estudos em Maceió, os restos mortais dos cangaceiros foram levados para Salvador, onde ficaram expostos do Museu Antropológico Estácio de Lima, localizado no prédio do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues.

Foi Dadá, companheira de Corisco – que passou a viver em Salvador -, que exigiu o sepultamento dos restos mortais dos cangaceiros, em cumprimento da legislação que assegura o respeito aos mortos.

Somente no dia 6 de fevereiro de 1969, no governo Luiz Viana Filho, foi que os restos mortais dos cangaceiros puderam ser inumados definitivamente. Antes, o Museu fez moldes para reproduzir as cabeças e continuar a expô-las como provas materiais da morte destes homens e mulheres.

Fonte: Livro Bandoleiros das Catingas, de Melchiades da Rocha.

Pescado em História de Alagoas

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Tu sabe quem foi Inácio?

O homem que tapeou Antônio Silvino?
Era uma vez... Dois primos, Inácio e Severino, brejeiros dos bons, que viajavam semanas a fio, de vinte a trinta quilômetros por dias com os burros carregados, só parando para alimentação frugal e à noite para o cochilo mal acomodado, sempre debaixo de árvores que dessem uma boa sombra, e os protegessem do sereno da noite, como os Juazeiros, Mulungus, Trapiazeiros, Umbuzeiros e Craibeiras pelo Agreste Nordestino: Brejo, Curimataú, Seridó, Cariri e Sertão com uma tropa de burros: dois de sela e doze animais de carga, com seus arreios aonde dependurados iam à malotagem, bruacas ou os sacos com as mercadorias, sempre cobertas com lonas, fora a burra madrinha, velha e sabida que encabeçava e escolhia os caminhos melhores, sempre enfeitada com fitas e um sininho característico ou mesmo um chocalho com um som bem peculiar, onde os outros animais a seguiam quer de dia ou à noite; desses burros, dois eram animais com a troçada do dia a dia: comida, redes, água, capote feito de algodão grosso, onde matava o frio e os protegias da chuvas (poncho),  panelas, fumo de corda, cachaça, trempe de ferro para cozinhar, lona, sabão e o diabo a sete. A comida se resumia, quase que carne de charque, ou carne seca (chamada de sol) farinha de mandioca, queijo de coalho, toucinho, sal, café, açúcar, arroz, temperos, feijão dos dois tipos: o mulatinho e o de corda, xerém de milho e um tipo mais fino para fazer cuscuz.

Saiam sempre de Riacho Fundo, fazenda localizada entre Esperança e Areial na Paraíba, Próxima da fazenda Arara do meu avô Manoel Henriques (Virgolino) da Silva.
 
 Inácio

Viviam nas propriedades de seus familiares, onde há muito se produzia feijão de arranca (mulatinho), fumo, que era transformado em “fumo de rolo”, pronto para ser usado, erva doce, batatinha inglesa, agave, café e mais uma finidade de alimentos para sua sobrevivência e para a comercialização.

Muitos tropeiros também partiam do Brejo Paraibano, levando estas mercadorias como também o açúcar mascavo, a cachaça e a rapadura, produzida nos engenhos do Brejo.

No entanto, esses dois meus parentes, há muito tempo só negociavam com feijão, café e fumo, lá pras bandas de Parelhas, Ouro Branco, Macaíba e adjacências no Rio Grande do Norte. Numa dessas viagens, levaram apenas feijão e fumo de corda, não conseguiram vender o feijão, pois naquele ano o inverno fora bom e quase todo mundo tinha de sobra para comer e vender. Venderam o fumo ligeiro e Severino se decidiu tentar vender os sacos de feijão mulatinho na cidade de Natal,RN.

Disse para o Inácio – Vá levar os burros descarregados pra casa, avise a família meu destino e venha se encontrar comigo por lá.

Assim o fez. Um seguiu com seis burros carregados e o outro desceu em direção a Esperança para fazer o que haviam combinado.

Inácio logo que pode, empreendeu viagem, num burro bom, meeiro que o cabra chegava a cochilar em cima da sela. Num dia e meio espirrou na capital Rio-grandense, foi direto para o local marcado. Ficou meio contrariado por não encontrá-lo, danou-se a procurar pelos arrabaldes: locais onde sempre se reuniam os tropeiros, depois de desocupados, como ainda se ver hoje nos dias de feiras nas cidades do interior, (sempre um campo de futebol, em terreno abandonado). Bares, bodegas, lupanares, casas de jogos, pensões baratas, currais onde sempre os animais esperavam, pacientemente, pelos donos, a um preço módico, com direito apenas a água e a garantia de que de lá ninguém os roubariam.

Passou-se um dia e nada do primo. Tirou onda de detetive. Começou a fazer perguntas e nada de notícias, já aperreado, passado quase uma semana, mandou avisar pra família do acontecido e que iria continuar nas buscas. Era um mistério medonho. O homem desaparecera sem deixar rastros. Como o primo tinha vontade de conhecer o norte, ele logo pensou que esse seria o rumo que tomara, para vender o danado do feijão, achando que por ali não havia encontrado negócio, seguiu viagem, e na primeira cidade, teve finalmente notícias de um tropeiro com seus burros. Era só esta notícia que tivera, podia ser mentira mais também verdade, resolveu tirar suas dúvidas, pois já faziam mais de duas semanas da separação dos dois. Seguiu em frente e nada de alcançá-lo.

Notícia aqui e notícia acolá, depois de três meses chegou à cidade de Sena Madureira no Acre, local onde estava havendo migração de nordestinos para trabalhar com a extração da borracha, ficou por lá, sempre procurando o primo e trabalhando juntamente com aquela multidão de desgarrados da sorte. Lutou durante uns três a quatro anos até que resolveu voltar sem o parente, - o mato havia aberto e fechado e engolido o homem – e, como já havia amealhado um bom dinheiro. Fez finca pé de lá e em pouco tempo chegava ao seu velho Brejo, com o coração partido com o sumiço do amigo. Não sabia como se apresentar e narrar aos familiares do desaparecido. Havia de fato enviado cartas, mas falar de cara a cara era outra coisa, olhar nos olhos dos pais matutos e dizer que seu filho não existia era outra coisa mais dura de enfrentar.

Trazia consigo bastante dinheiro e muitas armas, frutos do seu trabalho como seringueiro.

A fama de “rico” logo chegou aos ouvidos de muita gente, inclusive de grupos de cangaceiros, que naquela época perambulavam entre o Brejo e o Cariri Paraibano como: Antonio Silvino, João de Banda, Nêgo Zé Luiz de Queimadas, João Pichaco e tantos outros desocupados.

Um dia lhe contaram que Antônio Silvino e João de Banda vinham tomar o dinheiro e as armas que possuía. Mudou-se da propriedade onde vivia e foi pra bandas de Pocinhos numa fazenda chamada Amaro. Enterrou as referidas armas e escondeu o dinheiro suado que havia conseguindo na luta do ouro branco e contra a malária (impaludismo), no Norte do País, na cidade de Sena Madureira no Acre. Dormia de dia e vigiava de noite, uma bela noite chegou Silvino com sua tropa, cutucaram tudo, reviraram todos os caixotes da casa fizeram ameaças a uns moradores velhos, mataram de tiros várias galinhas e nada de dinheiro e armas.

O danado do bicho também era sabido e jurou que Antônio Silvino não tomaria seus anos de trabalho.

Mudou-se para outra propriedade de nome Algodão perto de Soledade PB; a velha raposa logo descobriu o seu paradeiro e foi bater lá, mas o cabra dizia que “seguro morreu de velho e prevenido ainda estava vivo”, procurou ainda mais se esconder e despistar os cabras que viviam envenenados por dinheiro e armas.

Cada vez mais os cangaceiros ficavam com raiva, por não achar o que não era dele e desta vez, Antonio Silvino, fez o que não era seu costume. Inácio havia ido a fazenda Arara providenciar um enxoval de um sobrinho que havia nascido deixando um menino tomando conta da casa.        
Antonio Silvino emboscou-se com sua tropa atrás de umas pedras, esperando uma oportunidade; nisso viu o menino botar a cabeça fora de casa e aí pegou o molecote, vendo mais uma vez que havia dado o bote perdido, com raiva, deu uns riscos de punhal nos couros do pequeno vigia para que servissem de recado, matando dessa vez umas vacas que estavam no curral atrás da casa.

Inácio fugiu novamente, desta vez foi se embrenhar no lugar chamado Lajedo Vermelho, onde moravam outros parentes, perto da cidade de Soledade. Dizendo sempre que o que era dele ninguém botava a mão. Dessa vez quase que os cabras o pegavam, escapou por um triz. Aprendeu a lição e parou de se gabar e contar lorotas sobre quem era e o que tinha.

Nesse ínterim havia conhecido uma moça de nome Mônica do Município de Santa Luzia, formosa e rica, namorou, noivaram e casaram. Nunca mais Antônio Silvino teve notícias dele. Comprou duas fazendas: Canoa e Poço Salgado, juntamente com seu cunhado (Anysio) e com o dinheiro que tinha guardado montaram uma desencaroçadeira (bolandeira) e prensa de algodão, comprava e vendia gado, negociava com peles de animais num pequeno curtume que tinha na fazenda, possuía caminhões e um automóvel tornando-se um dos mais importantes chefes político e poderoso do lugar. (Ribinha). Antônio Silvino levou a breca, mas não pegou o seu dinheiro nem suas armas.

Muito tempo depois, voltava da feira, montado numa burra branca e pequena, mas que voavam pelas estradas pedregosas da região, enquanto seus filhos e meu tio vinham no caminhão com as mercadorias negociadas na feira, quando - já velho – subiu os degraus da casa e sua esposa abriu a porta contente e satisfeita, se surpreendeu com um cabra, que já o vinha seguindo, o atacando pelas costas, dando-lhe uma gravata com um punhal na mão, era um monstro de forte, dominando-o totalmente, a esposa tentou socorrê-lo, mas o satanás plantou-lhe um pontapé que a deixou desmaiada, nisso entra meu tio com seus dois primos e vendo aquela cena horrível, pegou uma trave de miolo de Aroeira que estava atrás da porta, danou na nuca do assaltante derrubando-o, o bicho ainda ficou ciscando no chão e imediatamente os outros tiraram suas facas e fizeram o resto do serviço. Mas, como era dia claro, engancharam o negrão pela gola da camisa no armador e esperaram que anoitecesse, para no silêncio e no escuro da madrugada, sem que ninguém visse, pudessem carregá-lo numa rede e jogá-lo num serrote que havia distante dali uma meia légua, num lugar quase inacessível.

Conto essa história dos meus parentes, hoje, porque já se passaram mais de cem anos e os personagens já não existem mais e nunca souberam quem era o bandido que tentou roubar o velho e cansado Brejeiro Inácio.




             Túmulo de Antonio Silvino no Cemitério Monte Santo em Campina Grande PB, reformado por iniciativa própria de Sulamita de Souza Buriti (Foto).

Pescado em Grijalva Maracajá

sábado, 1 de junho de 2019

A Santa e o cabra da peste

Com sanfona, Irmã Dulce visitou cangaceiro e intercedeu por ele

Por Nelson Cadena


Volta Seca era do bando de Lampião 
e foi preso aos 15 anos.

Numa manhã setembrina de 1939, a Irmã Dulce - de hábito prestava assistência espiritual e material aos presos - bateu nas portas do velho presídio da Engenho da Conceição, denominado Coreia, localizado no fundo da Igreja dos Mares, pediu para ver “Volta Seca”, cabra de Lampião; cumpria pena de 119 anos por supostos crimes cometidos no Cangaço.

Era um encontro marcado. Antes, Antônio dos Santos, nome de batismo do cangaceiro, relutara em receber a freira, queria saber quem era. Fazia sete anos que estava preso com precária assistência judiciária e carregava o estigma de ter participado do morticínio de Queimadas, 1929, onde sete soldados foram massacrados pelos homens de Virgulino.

Irmã Dulce puxando o fole.

Irmã Dulce compareceu ao presídio portando uma sanfona, a música os aproximou. O cangaceiro sabia de cor várias músicas, era analfabeto, porém, bom de ouvido. Tinham quase a mesma idade, a religiosa 25, ele 23.

Desde então, a Irmã Dulce passou a visitar Antônio com frequência, intercedeu junto às autoridades a seu favor, é claro, dentro de suas limitações - a Justiça lhe negava os direitos previstos em lei, apesar de seu bom comportamento - como contou o presidiário ao jornalista Berliet Junior do Diário da Noite do Rio de Janeiro em 17/1/1950.

“Eu por não saber fazer a petição... pedi ao Dr. Tourinho que me fez a caridade, escreveu por mim e até o momento não tive decisão nenhuma. Quatro meses e nada ainda de parte do juiz. Nem que sim, nem que não... Já pedi a todo mundo. Do governo ao secretário... E só me prometem... Nem todos são assim. Há uma figura nobre que tem olhado esse meu caso. É a Irma Dulce, freira do Círculo dos Operários. É a santa criatura que constantemente intercede por nós aqui na penitenciária. Prometem a ela, mas nada cumprem. O senhor vê que nem a figura dos santos consegue ajeitar a boa vontade dos homens”. 

Nos idos da entrevista ao repórter carioca, “Volta Seca” já cumprira 18 anos da pena prescrita, 11 deles assistidos pela Irmã Dulce, numa situação de irregularidade que chocava os meios jurídicos, a começar pela sua prisão aos 15 anos, aumentaram a idade do preso no inquérito para ser julgado como adulto.

Pela legislação, a pena máxima de 119 anos teria um teto de 20 anos. A lei determinava que cumprida metade da pena, em condições de boa conduta, o preso poderia requerer  a liberdade condicional. E assim foi feito e “concedido”. O juiz de execuções criminais, porém, prendeu a guia, dizem que sob pressão de chefes políticos e coronéis  dos sertões.

De nada valeram os atestados do célebre legista Arthur Ramos e do eminente Dr. Estácio de Lima, este, não apenas confirmou que o preso estava apto para retornar à sociedade como intercedeu a seu favor e lhe prometeu emprego no Instituto Nina Rodrigues:

“Deveria a sociedade se envergonhar de seu comportamento cruel com relação a esse presidiário... O processo foi muito mal orientado... não teve a mínima defesa”, declarou na ocasião. Por quatro vezes, o ilustre médico solicitou o indulto, finalmente concedido pelo presidente Getúlio Vargas em 24/3/1952, transcorridos 20  anos atrás das grades. O famoso fotógrafo baiano Gervásio Batista, junto com os cinegrafistas da TV Tupy, documentou a entrega do telegrama do presidente da República ao ex-cangaceiro.

Antônio dos Santos viveu dias amargos após a sua liberdade. Passou fome, era temido e execrado pela sua biografia.  A despeito disso tudo levou a vida adiante, teve e criou seis filhos. Morreu idoso em 1997, exatos 80 anos de uma agitada existência.



Pescado em Correio 24h