domingo, 23 de setembro de 2018

Um estado e seus capítulos totalmente situados na saga

“Lampião na Paraíba – Notas para a História” é a mais nova e impecável contribuição de Sérgio Dantas


O livro ‘Lampião na Paraíba – Notas para a História’ não foi concebido com a intenção de se tornar uma obra revolucionária. O objetivo do autor foi apenas elaborar um registro perene e confiável sobre a atuação do célebre cangaceiro em terras paraibanas. Com 363 páginas e cerca de 90 fotografias de personagens envolvidas na trama - e lugares onde os episódios ocorreram -, o trabalho certamente será de grande utilidade aos estudiosos de hoje e de amanhã.

Dividido em 19 capítulos, com amplas referências e notas explicativas, tenta-se recontar, entre outros, os seguintes episódios:

“A invasão a Jericó; fazendas Dois Riachos e Curralinho; o fogo da fazenda Tabuleiro; os primeiros ferimentos sofridos por Lampião; as lutas com Clementino Furtado, o ‘Quelé’; combate em Lagoa do Vieira; Sousa: histórico do assalto e breve discussão sobre as possíveis razões políticas para a invasão da cidade; a expulsão dos cangaceiros do município de Princesa; combates em Pau Ferrado, Areias de Pelo Sinal, Cachoeira de Minas e Tataíra; o cangaceiro Meia Noite; Os ataques às fazendas do coronel José Pereira Lima; morte de Luiz Leão e seus comparsas em Piancó; confronto em Serrote Preto; Suassuna e Costa Rego; a criação do segundo batalhão de polícia; Tenório e a morte de Levino Ferreira; ataque a Santa Inês; combates nos sítios Gavião e São Bento; chacina nos sítios Caboré e Alagoa do Serrote; Lagoa do Cruz; assassinatos de João Cirino Nunes e Aristides Ramalho; Mortes no sítio Cipó; fuga de paraibanos da fronteira para o Ceará; confronto em Barreiros; invasão ao povoado Monte Horebe; combates em Conceição; sequestro do coronel Zuza Lacerda; o assalto de Sabino a Triunfo(PE) e Cajazeiras (PB); mortes dos soldados contratados Raimundo e Chiquito em Princesa; Luiz do Triângulo; ataques a Belém do Rio do Peixe e Barra do Juá; Pilões, Canto do Feijão e os assassinatos de Raimundo Luiz e Eliziário; sítios Vaquejador e Caiçara; Quelé e João Costa no Rio Grande do Norte; combates com a polícia da Paraíba em solo cearense; o caso Chico Pereira sob uma nova ótica; Virgínio Fortunato na Paraíba: São Sebastião do Umbuzeiro e sítios Balança, Angico e Riacho Fundo; sítio Rejeitado: as nuances sobre a morte do cangaceiro Virgínio”.

A obra certamente não abrangerá o relato de todas as façanhas protagonizadas pelo célebre cangaceiro no estado da Paraíba. Muito se perdeu com o passar dos anos. Os historiadores de ontem, em sua maioria, não tiveram grande interesse em dissecar os episódios por ele protagonizados no território do estado.

A presente obra busca resgatar o que não se dissipou totalmente na bruma do tempo.

LAMPIÃO NA PARAÍBA – NOTAS PARA A HISTÓRIA, Polyprint, 2018, 363 pgs. Disponível em outubro de 2018.

 Aguardemos!

Sobre o autor: Sérgio Augusto de Souza Dantas é magistrado em Natal. Publicou os livros Lampião e o Rio Grande do Norte – A História da Grande Jornada (2005), Antônio Silvino – O Cangaceiro, O Homem, O Mito (2006), Lampião Entre a Espada e a Lei (2008) e Corisco – A Sombra de Lampião (2015).

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Revista Fatos & Fotos, Nº 90, 20 de Outubro de 1962

A aventura sangrenta do Cangaço - ABC de Lampião

Reportagem de Nonnato Masson
Reproduções fotográficas de Nelson Santos e Juvenil de Sousa.

Como sabemos, algumas estórias sobre Lampião são desencontradas dos fatos reais. Nessa reportagem de Nonato Masson encontramos algumas disparidades com historiadores e pesquisadores do cangaço lampiônico. De qualquer forma, mesmo com algumas colocações diferentes, não deixa de ser literatura histórica mesmo tendo sido escrita muito depois da morte de Lampião. Aqui trago mais uma dessas matérias para os que gostam de estórias do cangaço.
 

ATÉ 1912, o cangaço era um fato normal nos sertões do Nordeste. As façanhas de Lucas da Feira, Cabeleira, Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino corriam de boca em boca, com sabor de lenda, a par de histórias que falavam dos jagunços do Bom Jesus Conselheiro e do padre Cícero Romão Batista, o santo de Juazeiro. 

Foi nesse ano que o Governador Castro Pinto, da Paraíba, tomou a iniciativa de uma convenção, para combater o banditismo entre os governos dos Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. 

Além da ajuda mútua, foram eliminadas as fronteiras entre os estados, podendo a fôrça policial de um penetrar em outro, sem qualquer pedido de autorização. Dessa convenção participariam depois os governos da Bahia, Alagoas e Sergipe. Assim, com o Nordeste sem fronteiras, as tropas volantes, que não seguiam um plano de combate pré-estabelecido, e sem um comando único, enfrentaram-se várias vêzes na suposição de estarem lutando contra os cangaceiros. 

No ano de 1914, após uma luta feroz em Taquaretinga, Manuel Batista de Morais, conhecido por Né Batista e por Antônio Silvino, e que há cérea de 20 anos era o rei do sertão, foi baleado e entregou-se ao Alferes Teofanes Tôrres. Prêso Antônio Silvino, os cangaceiros Casemiro llonório e Né Pereira refugiaram-se na ribeira do Pajeú das Flores, de onde passaram a comandar o cangaço em toda a extensão que vai de Pernambuco à zona baiana do rio São Francisco.

BALEADO em Inhamuns, Ceará, por questões de terras, Antônio Alves Feitosa fugiu com o seu filho José Feitosa depois de ter morto um fazendeiro. Foi para Pernambuco, onde passou a viver como lavrador em Passagem, Distrito de Carqueijo. Morrendo o velho Feitosa, José, para se ,livrar definitivamente da polícia cearense, trocou o nome para José Ferreira da Silva, casou-se com Maria José Lopes e comprou uma fazenda em Ingazeira, às margens do riacho São Domingos, em Serra Vermelha, no Município de Vila Bela, hoje Serra Talhada. 

Da união de José com Maria, nasceram Antônio, Livino, Virgulino, João, Anália, Ezequiel, Virtuosa, Maria e Angélica. Virgulino Ferreira da Silva nasceu a 12 de fevereiro do ano de 1900, depois de Antônio e Livino. 

COUBE à avó de Virgulino, de nome Jocosa, mãe de Maria, criá-lo dos cinco aos doze anos de idade. Ela morava em Poço do Negro, onde, a seu pedido, o seu filho Manuel Lopes matriculou Virgulino na escola particular de Domingos Soriano e Justino Nenéu. Quando tinha doze anos e estava no terceiro ano primário, Virgulino abandonou a escola e passou a domar potros bravos, amansar animais no campo, ganhando logo a fama de ser um dos melhores vaqueiros do Pajeú. 

Aprendeu a fazer selas, gibões, arreios, perneiras, chapéus de couro, alforjes e embornais, que vendia nas feiras de Nazaré, São Francisco (atual Pajeú), Triunfo, Custódia e Salgueiro. Aprendeu com o pai a tocar sanfona de oito baixos. Tinha boa voz para cantar e muita inspiração para tirar toadas, repentes, baiões e xaxados. Uma das suas músicas, a toada "Muié Rendera", seria, tempos depois, o canto de guerra das suas guerrilhas pelos serrotes e pelas caatingas. 

DUAS famílias — a dos Pereiras e a dos Carvalhos, esta tendo os Nogueiras como aliados — travavam entre si uma luta fratricida, desde a revolução pernambucana de 1817, em torno da liderança política da região do Pajeú. O pai de Virgulino foi agregado dos Pereiras e por eles combateu. Um dia, depois de um combate com os Carvalhos, com Antônio e Livino feridos, teve de fugir de Serra Ver-melha, levando tôda a família, passando a morar perto da Vila de Nazaré, no Município de Floresta. Em Nazaré, Virgulino despontou para a aventura sangrenta do cangaço. 

Aconteceu assim: o filho do inspetor de quarteirão José Saturnino inventou que Virgulino lhe havia roubado uns chocalhos de bode. Preso por José Saturnino, de nada adiantaram os pedidos do velho José Ferreira e as declarações de inocência do acusado, que era então um menino de 16 anos. Seu pai e seus irmãos não tiveram outra alternativa: foram soltá-lo a bala. Era a lei do sertão. E dias depois, Virgulino, Antônio, Ezequiel e Livino surpreenderam o filho do inspetor e o mataram. Depois de morto, ainda foi sangrado no pescoço por Virgulino Ferreira, com uma faca pajeú. 

EM Mata Grande, para onde os Ferreiras se mudaram, alguns meses depois, unia tropa de cachimbos (nome dado aos civis contratados para perseguir criminosos) cercou, de surpresa, a casa do velho Ferreira, sob o comando do Cabo José Lucena — que era o delegado volante —, a pedido do inspetor José Saturnino, para prender Virgulino e seus irmãos. 

No ataque foi morto o velho Ferreira, quando debulhava, na cozinha, uma espiga de milho, e preso o seu filho João. Os outros escaparam porque tinham ido à feira vender bodes. [A mulher de José Ferreira, vendo-o morto, caiu fulminada por um ataque do coração.]

FEITO o sepultamento do pai e da mãe, no cemitério de Mata Grande, Virgulino reuniu os irmãos e as irmãs e foi para Vila da Pedra, onde passou a trabalhar como comboieiro para o Coronel Delmiro Gouveia. Corria o ano de 1917. O Coronel Delmiro, que havia construído a primeira usina hidrelétrica no Nordeste, com a energia da cachoeira de Paulo Afonso, e montado a primeira fábrica de linhas da América do Sul, foi misteriosamente assassinado nesse ano, sendo o crime atribuído a elementos ligados aos trustes ingleses que moviam uma guerra sem quartel ao pioneiro alagoano. 

Sentindo-se inseguro em Vila da Pedra depois da morte do Coronel Delmiro, Virgulino deixou as irmãs e João — que não era bom da cabeça — aos cuidados da família de Raimundo Peba, operário da fábrica de linhas. E retornou à Floresta, com os irmãos, à procura do bando de Sinhô Pereira e Luís Padre.

GRANDE foi a surpresa de Sinhô Pereira ao ver, já homenzinhos e afoitos, os filhos do velho José Ferreira, que lutara ao seu lado contra os Carvalhos. Virgulino era quem liderava os irmãos e, por isso, passou a merecer mais atenção de Sinhô Pereira, que lhe deu logo uma espingarda papo-amarelo, novinha. Dias depois, após um choque com uma volante comandada pelo Sargento Optato Gueiros, Virgulino, todo cheio de si, disse a Sinhô Pereira que, no tiroteio com a volante, a sua espingarda não deixou de ter clarão, tal qual um lampião. 

Os cabras acharam muita graça e Luís Padre disse que não seria mais à falta de lampião, para iluminar os caminhos, que eles cairiam na tocaia das volantes. Desde esse dia Virgulino Ferreira da Silva passou a ser chamado de Lampião. E, da bôca da sua espingarda, trocada, anos depois, por um fuzil do Exército, que lhe foi oferecido por autoridades federais, jorrou um clarão, cuja luz, lívida e sinistra, iluminou por mais IS anos os sertões do Nordeste. 

HOUVE, porém, o seguinte: Sinhô Pereira e Luís Padre foram a Juazeiro do Norte, no Ceará, pagar uma promessa a padre Cícero Romão Batista e ali o velho taumaturgo os convenceu a abandonar o cangaço. Eles atenderam e seguiram, com recomendações do padre, para o interior de Goiás, deixando Virgulino e seus irmãos.

INDO a uma festa em Juazeiro, Lampião foi avisado por um beato do padre Cícero que o Deputado Floro Bartolomeu havia prometido ao governador de Pernambuco que o entregaria à policia. Disse-lhe o devoto não acreditar que o padre Cícero concordasse com a prisão, porque quem chegasse Juazeiro ficava garantido com a santidade mas que era bom tomar cuidado, porque "doutor Floro é homem capaz de tudo". 

JUNTANDO seus teréns, Lampião deixou Juazeiro, atravessou Pernambuco e chegou Alagoas, onde encontrou o bando dos irmãos Porcino, Antônio e Manuel, juntando--se a eles. Ficou com os Porcino, até junho de 1922. Nesse ano, os Porcinos decidiram abandonar o cangaço e, dos seus trinta cabras, vinte e um debandaram e nove ficaram com Lampião, que passou a chefia-los. Começou assim Lampião a sua carreira de chefe de bando, comandando doze cabras, inclusive seus três irmãos Antônio, Livino e Ezequiel. 

"LAMPIÃO é rapaz moço, pode ter vinte e dois ano. Tem cartucheira de prata e um rife americano."

MATINHA de Agua Branca, em Alagoas, foi a primeira cidade que Lampião saqueou como chefe de bando. A frente de cinqüenta cabras e com cerca de oitocentos soldados da polícia de três estados no seu rastro, entrou em Matinha de Água Branca sem dar um tiro. Distribuiu seus homens pelos pontos estratégicos da cidade e mandou Cravo Roxo intimar o delegado a fazer uma coleta de dinheiro entre o povo. A seguir, entrou numa igreja e foi rezar para o padre Cícero. 

Depois da reza, seguido pelas crianças que viam nele um herói, foi ao palacete da viúva Joana Vieira da Siqueira Tôrres, Baronesa de Água Branca, de onde levou todas as jóias que ela guardava em três grandes baús de cedro. Não molestou ninguém e saiu de Matinha de Agua Branca debaixo dos gritos das crianças: "Viva Lampião, Viva Lampião." Isso a 22 de junho de 1922. 

NO dia 6 de julho do mesmo ano, Lampião assaltou em Olhos d'Agua a fazenda do Coronel José Rodrigues, levando cinco contos de réis para deixá-lo vivo. Invadiu, a seguir, a Vila do Espírito Santo, e, após essas três investidas, foi-se acoitar numa grota em Tacaratu, onde passou cerca de seis meses sem dar sinal de vida.

"Ô muié rendá. ô muié rendá. Chorô por mim não fica, soluçô vai no borná. O Ceará tá de luto, Pernambuco de sentimento, Alagoa de porta aberta, Lampião xaxando dento." 


PARA fugir à ação das volantes, que passaram a não lhe dar trégua, Lampião permanecia durante meses num esconderijo, onde eram promovidos bailes em que a cachaça corria à solta. Ele mesmo animava os forrós, tocando sua sanfona de oito baixos e tirando toadas que se transformavam em cantos de guerra, como essa "Muié Rendera". Nos bailes, à falta de mulheres, os cabras dançavam uns com os outros, dias e noites seguidos. Lampião fumava pouco e bebia menos. Não gostava muito de cachaça: preferia vinho ou conhaque.

QUANDO pressentia ter-se afrouxado o cerco policial, mandava um dos seus cabras às feiras para assuntar o ambiente. Esses cabras eram os chamados pombeiros e muitos deles foram afastados do bando por Lampião, que lhes dava casa e sustento, mantendo-os como coiteiros, que eram os seus informantes sobre todas os movimentos da polícia. 

RECAIU sôbre os coiteiros, tempos depois, o segredo do terrível domínio de Lampião nos sertões do Nordeste. Em pouco tempo, ele conseguiu organizar e manter, do Ceará à Bahia, uma poderosa rede de espionagem, e até padres, juízes, comerciantes, coronéis de barranco, e mesmo soldados da polícia, uns por temor e a maioria por interesse, passaram a dar o serviço a Lampião. 

SOFRENDO de um glaucoma no olho direito desde que nasceu, Lampião passou a usar óculos a partir dos 22 anos. A cegueira total desse olho, que se manifestaria quatro anos depois, foi uma consequência natural do glaucoma. Segundo depoimento de seus cabras, alguns ainda vivos, ele costumava dizer que "dois óio é luxo", porque para fazer pontaria "basta só um; o outro inté atrapaia"

As ordens de Lampião eram cumpridas à risca. Não falava duas vezes, porque não era de conversa. Lampião gostava de romance de capa e espada, mas não largava o rifle, que era sua bengala.


TINHA 1 metro e 80 de altura, cabelos pretos e escorridos, dentadura perfeita, braços finos e mãos compridas, cheias de veias intumescidas. Era amulatado e magro. 

UM punhal de 73 centímetros de lâmina, atravessado na cartucheira do cinturão, duas outras cartucheiras cruzando o tórax, dois embornais, onde carregava iodo, algodão, sabonete, pasta e escova, um prato de alumínio, duas pistolas "parabellum", um rifle com a bandoleira enfeitada de libras esterlina e antigas moedas de ouro portuguesas, e enrodilhado na cintura o cofre papo-de-ema, a sua burra portátil, cheia de cédulas — esse equipamento, pesando cerca de quarenta quilos, era o de Lampião, que vestia invariavelmente paletó de brim caqui e calça de riscado,  lenço vermelho ao pescoço e calçava alpercatas de couro cru e meias de cores vistosas. 

Usava óculos de de aros de ouro, vários anéis nos dedos, sendo um deles de médico, medalhas do Padre Cícero e Nossa Senhora das Dores e rezas fortes costuradas em panos bentos. Na cabeça, um grande chapéu de couro de viado, batido na frente e atrás, destacando-se, na testeira, um signo-de-salomão colorido de ilhoses. 

VENTANIA, Cobra Verde, Cravo Roxo, Azulão, Criança, Pancada, Maria, mulher de Pancada, Carrapicho, Cobra de Cipó, Asa Branca, Pinto Cego, Come Cru, Patorí, Marreco, Graúna e Mergulhão fo-
ram os cabras que formaram o primeiro bando de Lampião.

XEXÉU, Chá Preto, Besta Fera, Canjica, Jurema e Beija-Flor entraram a seguir. Era ele que os apelidava, com o objetivo de lhes esconder a verdadeira identidade, a fim de livrar a família de cada um das represálias da polícia. Ezequiel, seu irmão, apelidou de Ponto Fino, porque ele era mesmo o fino na pontaria.

ZABELE entrou para o bando de Lampião em 1923. Era um caboclo que vivia repinicando a sua viola nas feiras dos sertões de Alagoas. Um dia, tirou um repente criticando arbitrariedades do delegado de Santana de Ipanema. Foi preso, espancado a chicote de umbigo de boi e marcado a ferro em brasa, pelos soldados, como novilho em curral. 
Conseguiu fugir da prisão e foi juntar-se ao bando de Lampião. Era sempre assim. Para os injustiçados nos sertões do Nordeste, Lampião era a última instância.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

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Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas


O livro divide-se em três capítulos, sendo o primeiro “O despertar dos pobres do campo”, o segundo “Canudos e conselheiros” e o último “Juazeiro e Padre Cícero”. Nesses capítulos, Rui Facó, a partir de uma leitura marxista, faz uma análise histórica dos fenômenos que ficaram conhecidos como “fanatismo” e “banditismo”, ocorridos do último cartel do século XIX e início do século XX no interior brasileiro. O autor analisa principalmente os acontecimentos de Canudos (1896-1897) e Juazeiro, duas rebeliões que, segundo ele, teriam um forte cunho religioso, mas não podem ser explicadas e entendidas somente por esse traço característico.

Para o autor, foi a luta de classes entre os homens pobres do campo e os fazendeiros a maior motivação desses movimentos; era, segundo ele, “uma luta aguerrida contra o latifúndio, contra a miséria e contra a exploração”. Ele caracteriza Contestado (1912-1916), Caldeirão (1936-1938), Pau de Colher, Pedra Bonita e o cangaceirismo — fenômeno que se prolongou até a década de 1930 — também como expressões de conflitos no interior do país. Para Facó, o latifúndio geraria lutas de classe desde sua origem. De início, com fazendeiros tentando salvaguardar suas propriedades de ataques de índios; depois contra as incursões de posseiros; mais tarde contra cangaceiros e fanáticos; e naquele momento contra o proletário rural sem terra.

Rui Facó, em Cangaceiros e fanáticos, faz uma análise da conjuntura que propiciou os acontecimentos de Canudos e Juazeiro. Para ele, esses movimentos aconteceram num período de crise de ordem econômica, ideológica e de autoridade. Era época em que findava o Império e a escravidão era abolida. Esses acontecimentos teriam abalado os critérios de mando da sociedade brasileira, principalmente no Nordeste. Contudo, nada disso permitiu que relações de produção de tipo superior, à base do trabalho livre, surgissem. As relações no campo, principalmente no Nordeste, continuavam a ser majoritariamente servis.

Além da crise do instituto escravista, o Brasil vivia também a crise do latifúndio pré-capitalista e o arruinamento dos antigos engenhos banguês do Nordeste. Os antigos engenhos de açúcar ruíam e eram substituídos pelas usinas de açúcar, sem que acontecesse, segundo Facó, uma revolução na Zona Canavieira. Uma nova estrutura mecânica foi implantada com as usinas de açúcar, mas os arcabouços do velho latifúndio permaneceram intactos. A usina intensificou, segundo ele, o processo de monopolização da terra. A renovação técnica preservou a situação de miséria das massas sem terra e agravou a concentração de terras no Nordeste.

Deste modo, Rui Facó considera que os “cangaceiros” e “fanáticos” eram o fruto da decadência de um sistema socioeconômico que tinha o latifúndio semifeudal como nexo fundamental. Essa situação de crise teria se agravado sobremaneira quando o centro da gravidade econômica se transferiu do Nordeste para o Sul, por conta do café. O latifúndio continuaria a entravar brutalmente o crescimento das forças produtivas, a mecanização da agricultura e o crescimento das indústrias. O monopólio da terra continuava a promover uma divisão de classes sumária: o senhor de grandes extensões de terras e o homem sem terra, o semisservo.

O Nordeste, do final do século XIX e início do século XX, é caracterizado pelo autor como uma sociedade em estágio econômico seminatural, na qual o capitalismo e as cidades tinham pouca influência e repercussão sobre o latifúndio semifeudal. As relações entre usineiro e homens pobres eram semisservis, pré-capitalistas.

Para Facó, o latifúndio reduzia as populações do interior ao mais brutal isolamento, ao analfabetismo quase generalizado, e deixava como única forma de consciência do mundo exterior a religião ou as seitas nascidas nas próprias comunidades rurais — vertentes do catolicismo. Os homens sem terra, ao formarem grupos de cangaceiros e seitas de “fanáticos”, como ficaram conhecidos Juazeiro e Canudos, organizaram-se e rebelaram-se por uma melhor condição de vida. Esses movimentos teriam sido rebeliões inconscientes contra a servidão da gleba, contra o latifúndio. Tiveram boa dosagem de misticismo religioso — o autor não nega —, mas eram mobilizados fundamentalmente pela dinâmica da luta de classes.

Com esse argumento, Rui Facó contrariava os historiadores que exageraram o misticismo religioso dos habitantes de Canudos e Juazeiro. Atribuindo-lhes a classificação de “fanáticos”, esses estudiosos retiravam o conteúdo progressista e reformador desses fenômenos, dando-lhes um sentido pejorativo.

O autor enumera ainda como uma das causas para o “banditismo” e do “fanatismo” o fato de o latifúndio criar em seu entorno um excedente de mão de obra capaz de assegurar a quase gratuidade da força de trabalho. Isso possibilitava a imposição de relações semisservis aos pobres do campo. Deste modo, criava-se no Nordeste dos fins do século XIX e início do XX um contingente de pessoas pobres, sem bens e sem terra, nômade, que fugia da seca e não era absorvida pelo latifúndio, mas tinha algo a reivindicar, ainda que não soubesse formular claramente essa reivindicação. Segundo Facó, a reação à miséria e à fome teria vindo com a formação de grupos de cangaceiros e de seitas místicas.

Facó aponta ainda que a ruptura da estagnação no campo se iniciou com o êxodo em massa de nordestinos para a Amazônia e para o Sul, por causa do surto da borracha e do cultivo do café, respectivamente. A fuga teria sido ocasionada também pelas constantes secas do Nordeste. Para ele, a emigração era o primeiro passo na busca de outras condições de vida e permitia que os homens pobres do campo se evadissem da imobilidade multissecular em que viviam. Graças ao contato com outras formas de vida social, estes migrantes, quando retornavam ao Nordeste, voltavam diferentes, menos conformados com a vida de miséria e de fome que levavam.

Não só o monopólio da terra explicaria o cangaço e o “fanatismo”. O atraso econômico, o isolamento do interior, o imobilismo social também seriam fatores geradores do cangaço e do “fanatismo”. Por essa razão, para o autor, a penetração do capitalismo no meio rural seria de suma importância, já que possibilitaria a existência de novas relações de produção e de troca, permitindo que o semisservo saísse da estagnação do meio rural e abrindo novos caminhos para os bandos de cangaceiros e para os místicos itinerários dos beatos e conselheiros.

Deste modo, com essa argumentação, Rui Facó contrariava as explicações, como as formuladas por Euclides da Cunha, que viam o cangaço com o resultado da má eugenia, de atavismos étnicos. Contrariava também aquelas que afirmavam que as condições biológicas geravam o fenômeno do cangaço. Assim, Rui Facó explicava o cangaceirismo e o fanatismo pelas circunstâncias sociais e econômicas, pela extrema desigualdade social provocada pela grande concentração de terras, acentuada pelo débil desenvolvimento do capitalismo no interior do país, local onde se constituiriam, de acordo com a sua leitura marxista, relações de produção pré-capitalistas, semifeudais, e que era marcado pelo pouco incremento das forças produtivas.

Longe de considerá-los como criminosos, como fez a historiografia do início do século XX, Rui Facó considerou os pobres do campo envolvidos nessas rebeliões como o resultado do atraso econômico. O “banditismo” e o “fanatismo” seriam movimentos subversivos, “elementos ativos geradores de mudança social” e “contestadores da pasmaceira imposta pelo latifúndio”. Esses homens eram consequência dos choques de classe e das lutas armadas. Seriam, assim, o prólogo de uma revolução social que estaria por vir. Segundo ele, “banditismo” e “fanatismo” eram “elementos regeneradores de uma sociedade estagnada”, preparadores de uma nova época, representando um “primeiro passo para a emancipação dos pobres do campo”.

A opinião que marca a singularidade da interpretação de Facó é a de que Canudos e Contestado foram movimentos de cunho religiosos que revelavam uma drástica separação entre religiosidade popular e a religião oficial da Igreja Católica. Na sua interpretação, o “fanatismo” constituía uma ideologia de cunho místico, condizente com a condição de vida das populações rurais do final do século XIX e início do século XX, que era contrária à ideologia das classes dominantes e das camadas médias urbanas.

Assim, ao longo do livro Cangaceiros e Fanáticos, Facó defende que a seita abraçada pelos homens pobres do campo, como toda ideologia, tinha um conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos que traduziam suas condições materiais de vida e eram antagônicos às ideologias das classes dominantes. Ele considera que em todos os casos analisados — principalmente em Juazeiro, Canudos e em Contestado — as massas espoliadas teriam criado uma religião própria, uma espécie de consciência primária, no sentido marxista do termo, que lhes serviu de instrumento na luta por sua libertação social contra o latifúndio e contra as relações semifeudais de produção.

O “fanatismo” teria sido o elemento de solidariedade grupal impulsionador de uma reação contra a ordem dominante. Deste modo, a tônica da interpretação marxista do autor é dada pela crença de que essas aglomerações seriam movimentos de tipo primário que traduziam, contudo, as aspirações da população rural empobrecida em luta pela libertação do jugo do latifúndio.


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Dora Vianna Vasconcellos é socióloga, mestre em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura (CPDA-UFRRJ)/ Rio de Janeiro.

Joel Reis nos deu a direção e pescamos lá no Via Cognitiva

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Silvio Bulhões em documentário

O mar de Corisco

Filho do casal de cangaceiros Corisco e Dadá, o menino Sílvio assusta-se ao confrontar suas verdadeiras origens; o rapaz Sílvio parte em busca da mãe biológica; e o homem Sílvio inicia uma jornada para dar aos restos do pai um mínimo de dignidade.



Pescado no canal de Pedro da Rocha