segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Os últimos dias de um reinado

 O cerco se fechava

Por Sálvio Siqueira

Desde o segundo meado do séc. XVIII que o cangaço infestava as terras nordestinas. O Fenômeno Social surgiu na zona canavieira pernambucana e, aos poucos, migra para o interior do Estado das Alagoas numa época denominada na História como “A Era do Couro” e, em sequência, estende-se aos sertões dos Estados vizinhos.

O interior pernambucano, mais precisamente a microrregião Pajeú das Flores, torna-se um verdadeiro celeiro de cangaceiros. Porém, da Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, Bahia e do próprio Alagoas, começam a surgir inúmeros bandoleiros por ‘n’ motivos. Nesse tempo, final do Império e início da República Velha, o sertão nordestino estava infestado por esse tipo de banditismo. As autoridades dos vários Estados da Região Nordeste assolados pelos bandos fazem de tudo para darem fim, ou pelo menos diminuírem, esse tipo de criminosos rurais, sem conseguirem seus intentos.

Ocorreram vários fatores que impediram o extermínio dos bandos de bandoleiros naquela época. O contingente das Províncias, depois Estado, não era grande, e o pouco que tinham não poderia enviá-las para o foco do problema para não correrem o risco de ações criminosas nas zonas urbanas que também viviam abarrotadas de problemas inclusive com imigrantes dos interiores. As longas e cruéis estiagens deixavam quase que impossível algum ser humano viver, ou conviver, dentro da caatinga.

Não havia água nem comida disponível para abastecer as tropas.

A comunicação via telégrafo não existia em todo lugar. As volantes sabiam de onde iriam partir, porém, jamais sabiam para onde iriam nem tão pouco quando chegariam a algum lugar habitado. Os governadores até que tentavam, na medida do possível, abastecerem os locais com praças, no entanto, ocorre um grande problema causando o impedimento da continuação dessa ação devido o soldado, formado em outras terras e usando equipamento inadequado, adoecerem, principalmente dos pés ao ponto de não conseguirem prosseguir com as perseguições. A falta de estradas era outro empecilho que as volantes tinham para transporem. E outros problemas mais...

Volante atuando no Estado da Bahia


Além de todos esses problemas, havia o ataque nas emboscadas colocadas pelos bandoleiros abrindo brechas enormes nas fileiras das tropas.

O soldado não sabia em quem confiar, passando a usar um modo operante totalmente equivocado onde todo e qualquer roceiro eram suspeitos. Com essa maneira errada de trabalhar, em vez de conquistarem os sertanejos, conseguiram foi o seu afastamento e falta de colaboração. Vendo essa insatisfação dos sertanejos os chefes dos bandos usam de tática diferente. Protegendo, ajudando e respeitando vários deles, com outros usaram também a ‘moeda’ de troca de favores. Então começa a surgirem, a se criar, uma malha de protetores e colaboradores onde, mais tarde, essa mesmo é o fator principal da longevidade do Fenômeno Social. Essa “malha” foi alimentada por “favores”, dinheiro e proteção dos chefes cangaceiros. No decorrer do tempo, grandes latifundiários e produtores rurais começam a fazerem parte da mesma, assim como pequenos e grandes comerciantes e até militares. A falta de receberem o seu pequeno soldo, vários soldados desertam da Força Militar e se engajavam aos vários bandos nômades de bandoleiros levando seu fardamento, armas e munição.

Essa pirâmide de colaboradores tem sua maior extensão quando do cangaço implantado pelo chefe cangaceiro Virgolino Ferreira, alcunhado de Lampião, o “Rei dos Cangaceiros”, entre os anos 1918/19 e 1938, segunda personagem mais biografada na América Latina. Lampião não foi o criador da malha de colaboradores nem foi o criador da ‘guerra de movimentos’, mas foi aquele que mais a aperfeiçoou no decorrer de seu cangaço nos contrafortes da Mata Branca, onde tendo a contribuição dessas e outras táticas, conseguiu permanecer por quase longos vinte anos assombrando o sertão nordestino. Porém, como tudo nessa vida tem seu início, meio e fim, na segunda metade da década de 1920, o cangaço começa a sofrer tombos que algum tempo depois o leva ao clímax, ao epílogo de uma era sangrenta, dolorosa e enlutada para os sertanejos.



Os anos considerados mais gloriosos das ações cangaceiras estão entre 1919 e 1927, já na fase do cangaço lampiônico, mesmo haverem, na época, mais de 40 bandos com chefes distintos nos sertões dos Estados nordestinos, o comandado por Lampião destaca-se notoriamente, apesar de entre os anos de 1921 e 1922 a Força Pública pernambucana ter sido uma ‘pedra nas Xô-boi’ dos bandos na região do Pajeú das Flores. Até fins de 1926 e início de 1927 os cangaceiros tinham um ‘aliado’ bastante benéfico: era que as tropas militares em perseguição aos bandos de cangaceiros não podiam transpor as divisas de Estado, legalmente, dando continuação a uma perseguição.

Eurico de Souza Leão
Quando Estácio Coimbra assume o governo do Leão do Norte em fins de 1926, nomeia o jovem Eurico de Sousa Leão, Chefe da Segurança do Estado. Estudando o problema do banditismo nos confins do sertão, após a colaboração do Chefe de Gabinete, sociólogo Gilberto Freire e do ex chefe cangaceiro preso desde 1914 na Casa de Detenção do Recife, Antônio Silvino, Manoel Batista de Morais, elaboram um plano, dentro desse uma emenda donde surge uma nova “Lei” para colaborar com o Estado no combate ao banditismo rural. Essa “Lei” fica conhecida nas hastes da historiografia cangaceira como “A Lei do Diabo”. Coimbra, através do Chefe de Segurança, convoca os governadores e/ou representantes dos Estados envolvidos com o problema e dessa resulta a liberação para que as volantes tivessem livre acesso em qualquer um dos territórios não importando a qual deles pertencesse.

No plano colaborado pelo “Rifle de Ouro” determinam-se focar as investigações e ações militares na malha colaboradora, roceiros, vaqueiros, militares, fazendeiros, comerciantes e etc.. Até aquele momento todas as tentativas de combaterem o banditismo rural focava-se diretamente em sua figura maior, Lampião. Silvino, tendo sido chefe cangaceiro, sabia que dentro da ‘malha’ de colaboradores existiam aqueles que serviam de ‘pombos-correios’, servindo quase que exclusivamente para levar e trazer recados, notícias e etc.. A coisa estava tão séria que mesmo antes de uma ordem direta para determinado comandante de volante chegar ao mesmo, Lampião já estava ciente da mesma.

Com isso tinha tempo para organizar uma emboscada ou mesmo mudar totalmente sua direção apagando seus sinais. Podemos concluir que a partir daí inicia-se o começo do fim do Fenômeno Social. Logicamente, devido a inúmeros obstáculos surgidos, como por exemplo, uma extensão territorial enorme, colaboradores na alta sociedade e militares de alta patente, leva-se mais de 10 anos para terem o resultado final, para que o laço fosse se fechando objetivando a extinção do Cangaço.

Uma das decisões principais para que se desse fim ao movimento social cangaço, a nosso ver, foi à admissão de sertanejos nas colunas militares perseguidoras. A ‘matéria prima’ para formar-se um cangaceiro era um vaqueiro, um roceiro, um sertanejo nato, homem disposto, sem medrar a nada, nem mesmo a morte, estava pronto para tudo. Além disso, fora forjado em um ambiente duro, cruel, sentindo na pele a selvageria causada pelos homens dos ‘coronéis’ em seus familiares, amigos e conhecidos. Então, quando da decisão de nomear homens do sertão, vaqueiros, roceiros e sertanejos natos, a coisa começou a ficar equilibrada. Havia homens de mesmo ‘quilate’ de ambos os lados e todos eram conhecedores dos perigos da caatinga. Vestimentas, calçados e coragem agora estavam equidistantes. Os comandantes militares locados em diversas cidades interioranas tiveram a ordem de admitir aquele que quisesse fazer parte da Força Pública, aqueles que quisessem ser contratados e ainda de aceitarem a ajuda daqueles que se fizessem voluntários, por ‘n’ motivos, para darem combate aos cangaceiros. Aí passou a ser “cobra engolindo cobra”.

Lampião, em princípios de 1926 é convocado para fazer parte do Batalhão Patriótico, medida tomada pelo Governo Federal com o intuito de dar combate a “Coluna Prestes” em vários Estados da Nação, situado na cidade de Juazeiro do Norte, CE. Virgolino recebe a patente de Capitão Provisório dos Batalhões Patrióticos, consequentemente, seu Estado-Maior também recebe suas devidas divisas militares. Além disso, a agora ‘tropa militar’, recebe dinheiro, uniformes e equipamento bélico de alta precisão para a época. O bando de Lampião torna-se tão forte que em novembro daquele mesmo ano, no local chamado Serra Grande, no município de Calumbi, PE, causa a maior derrota até hoje registrada a Polícia Militar de Pernambuco. Porém, essa vitória deixa o chefe mor do cangaço bastante afoito, fugindo notadamente de sua maneira de agir, e no primeiro meado do ano seguinte sofre grande derrota em terras potiguares.

Fugindo com o rabo entre as pernas, o bando do “Rei Cego” a cada investida das Forças Públicas de vários Estados vai diminuindo rapidamente. Tanto que no segundo meado de 1928, contando apenas com cinco homens, migra para terras baianas onde remonta seu império do terror. A maneira de Virgolino agir, suas táticas empregadas, sempre chamou atenção até entre seus perseguidores e inimigos. Sempre planejando antes de agir, causa grandes baixas nas fileiras das colunas militares que sai em sua perseguição.

Logicamente não se tratava apenas de táticas no campo de batalha, também havia aquela usada junto aos colaboradores, principalmente aqueles que tinham o dever de persegui-lo.
Ficando um bom tempo na ‘moita’, Lampião começa a conquistar os baianos. Aos poucos vai recrutando e aumentando, novamente, o contingente de seus asseclas. Porém, Lampião depois de algum tempo, sai da Bahia e vai instalar-se em terras sergipanas, ficando o território baiano como zona de ataques periódicos. No início dos anos 1930, “O Cocho” toma uma decisão fantástica em termos de guerrilha: divide seu bando em pequenos grupos e cada grupo com seus respectivos chefes. Com isso as Forças perseguidoras ficam um tanto desbaratinadas sem saberem ao certo quando, realmente, estavam dando combate ao cangaceiro mor do Pajeú das Flores. Essa ação deixa até os jornais, meio único de comunicação em massa na época, desnorteados e, automaticamente, seus leitores. Há, nos arquivos de vários periódicos, ações noticiadas de em um mesmo dia, em cidades distintas e longe uma da outra, praticadas pelo “Rei do Cangaço”. Quando na verdade eram praticadas por asseclas daqueles pequenos grupos.

Após as pancadas que levou no lombo no decorrer da década de 1920, seu primeiro decênio de reinado, o terceiro filho de José Ferreira já no envelhecer do corpo físico, mantem-se mais nos acampamentos. Entre fins de 1936 e início de 1937 até meados de 1938, quando de sua morte, Lampião passou a comandar diferentemente seus cabras. Nessa fase, o “Rei Cego” passa quase que exclusivamente a executar os famosos bilhetes de extorsão e enviar cangaceiros e coiteiros de confiança para que trouxessem mantimentos, armas e munição. O chefe cangaceiro distribui entre a população, nessa época, seu ‘passaporte’ de livre passagem. Para se transitar pelo sertão fazia-se necessário pagar um percentual ao neto predileto de dona Jacoza, ou corria o risco de enfrentar a boca de um fuzil ou a ponta de um punhal. E não eram apenas os ‘pequenos’ que sofriam de imposição, os grandes produtores, industriais, fazendeiros e latifundiários também faziam parte das ‘colaborações’.

“(...) No atacado, no plano dos grossos capitais, houve o caso exemplar da fábrica de tecidos da Pedra, em Alagoas, cujo caminhão somente teve a jornada diária garantida, as cargas não mais deixando de atingir a ponta do trilho da Great Western em Rio Branco, (Arcoverde) Pernambuco, a cada dia, quando o gerente, José Borba, despiu-se dos escrúpulos e sentou à mesa discretamente com Lampião, lá mesmo na vila alvíssima do finado coronel Delmiro Gouveia, em meio a goles de uísque. Onerada a folha da empresa em um conto de réis por mês, o sossego fez-se total. Negócio bom é o que interessa a ambos os lados, devem ter pensado industrial e cangaceiro (...).” (MELLO, pg 251, 2012)

Alguns jornais começam a prestar um serviço digno para a população e com isso começa a ‘balançar’ o poder daqueles que tinham as ‘rédeas do poder nas mãos’. Outros, pensando apenas em vender seu produto, até inventar inventam notícias sobre o que ocorria nos sertões dos Estados: na aurora de 1938 o jornal Diário de Notícias, da cidade soteropolitana, Capital do Estado da Bahia, noticia a morte de Virgolino Ferreira. O cangaceiro mor teria morrido vítima de tuberculose em sua própria cama. Hoje podemos até darmos risadas de uma notícia dessas, porém, naquele tempo as coisas eram por demais sérias, tanto que a notícia é postada pelo jornal nova-iorquino New York Times, onde disse: “O fora da lei número um morre em sua cama, no Brasil”. (MELLO, pg 270, 2012)

De uma ou de outra forma os Jornais levaram as informações ao público. Em fim, prestando excelentes serviços. Tanto que a população dos grandes centros urbanos começa a exigir mais e eficientes ações das autoridades. Alguns vespertinos, já tendo o povão ao seu lado, começam a ‘apertar’ o nó de cânhamo no gogó de alguns chefes militares envolvidos diretamente com as ações no combate ao banditismo rural. Nas Alagoas o alvo é diretamente o comandante do II Batalhão, major, na época, José Lucena de Albuquerque, em Pernambuco a coisa recai no lombo do tenente Luís Mariano da Cruz, ‘sucessor’ de Manoel de Souza Neto que havia deixada a Força Volante voluntariamente em janeiro de 1936.

O oficial pernambucano, tenente Luís Mariano, natural do município de São José de Belmonte, PE, é tido como um dos grandes e valorosos oficiais que deram combate aos cangaceiros. O comandante pernambucano, sendo entrevistado por um repórter do Diário de Pernambuco em fins de 1937, diz: “Lampião faz uso dos seus retratos como salvo-conduto, que ele autentica com sua firma e entrega às pessoas que lhe pagam determinado tributo e ao grupo, e que lhes prestam completa lealdade e obediência (...) nesses últimos tempos, tem-se embrenhado nas caatingas do Estado de Sergipe e se demora principalmente nos município de Porto da Folha, Simão Dias, Aquibadã, Gararu e Frei Paulo, sendo nesse último município que o bandido-chefe fez, com certa segurança, o seu quartel-general.

De quando em vez, Lampião, à frente de uma parte de seu grupo, invade a Bahia, entrando ali pelos municípios de Jeremoabo, Cícero Dantas e Paripiranga, que separam os Estados da Bahia e Sergipe. Nessas excursões, pratica grandes roubos e depredações, e retorna aos lugares que lhes servem de coito, onde descansa por meses oculto, guardado por coiteiros de sua absoluta confiança(...).”

Já o periódico “Gazeta de Alagoas”, em sua edição de 9 de julho de 1937, usando um pseudônimo chamado de “Sertanejo”, ataca diretamente o comandante do II Batalhão localizado em Santana do Ipanema, AL, “... alguma de lamentável venha ocorrendo no policiamento feito por alguma volante”, cobrando-lhe, antes e depois, maiores resultados nas ações contra o banditismo. Passa-se mais de trinta dias para que o major Lucena desse uma resposta, em 5 de agosto daquele ano, jogando toda a culpa nas costas dos coiteiros: “... se encontram naturalmente nos coitos, amparados e recebendo munições(...) de modo algum prestam auxílio à polícia.” Citando ainda que as Forças de Combate “trabalham com uma única esperança: a casualidade”. O comandante Lucena se ver tão apertado que se dirige diretamente, através de um boletim/telegrama, ao comandante-geral coronel Teodureto Camargo do Nascimento o qual o jornal Folha de Maceió consegue e o publica, na íntegra, em sua edição do dia 13 de agosto de 1937:

comandante Teodoreto Camargo do Nascimento

“Sipanema – Pls. 93-91, data 11, Hora 11h10, Cel. Teodureto – Reg. Policial Militar, Maceió
Estou posse recorte jornais contendo acusações ação força contra banditismo. Não me admiro isto parta Mata Grande, onde há maiores coitos bandoleiros. Vislumbro bem quais responsáveis artigos, os quais, antes 1930, acoitavam cangaceiros e hoje, mais criminosamente ainda, o fazem. Tais autores deviam, antes de mentir, se preocuparem com misérias deles próprios. Fique pois, digno comandante, tranquilo que saberei cumprir meu dever. Vou responder artigos jornais, pois estou disposto aceitar luta. Saudações – José Lucena de Albuquerque Maranhão, major comandante II Batalhão.” (MELLO, pg 260. 2012)

Depois dessa postagem da “Folha de Maceió”, o “Sertanejo”, através das páginas da “Gazeta de Alagoas”, compra a briga definitivamente e desce o ‘cacete’ no comandante do II Batalhão. Em 18 de agosto, dirigindo-se diretamente a José Lucena, diz: “devia estar em Mata Grande, com seu trabalho, não em Santana do Ipanema”. Referi ainda sobre os criminosos citados pelo major, “criminosos de antes ou de depois de 1930, que tudo seja apurado!”.

Rapaz, depois dessa Lucena fica vendo as saídas se fechando. Apertado, redige imensa carta e envia-a ao jornal que a posta no dia 21 do mês. Nessa carta o major tenta argumentar sobre uma ‘possível’ colaboração de seus subordinados aos cangaceiros: “...quem luta com quatrocentas naturezas espalhadas em todo sertão, por mais que seja rigoroso será surpreendido, vez por outra, com irregularidades de subordinados”. Para nós, há uma concordância em que alguém da corporação, ou mesmo alguns militares, colaboravam com os cangaceiros. O rebu é grande e a população fica na expectativa das providências que serão tomadas pelas autoridades. Porém, só em outubro é que o governador de Alagoas, Osman Loureiro, lança na Gazeta de Alagoas sua determinação de que o II Batalhão permanecerá em Santana do Ipanema.

No dia 11 de novembro daquele ano, Getúlio Vargas, através do Decreto nº 19.398, dissolve o Congresso e dá um golpe no regime que o colocou no Palácio do Catete, implantando uma Ditadura, O Estado Novo. São criadas as Delegacias de Ordem Política e Social, linha dura, e é decretada a pena de morte gerando grande impasse nos redutos advocacionais. O Decreto-Lei 88, sobre a novíssima LSN, Lei de Segurança Nacional, em seu Arti. 122, inciso 13, alínea f, rezava claramente que seriam tomadas medidas radicais no “homicídio cometido por motivo fútil ou com extremos de perversidade”. Logicamente esses termos eram dirigidos para aqueles contrários ao Novo Regime e aos bandos de cangaceiros e seus colaboradores, nunca para as perversidades praticadas pelas volantes. O sociólogo Frederico Pernambucano de Mello, diz a respeito: “parecendo mirar o dia a dia dos cangaceiros e de seus protetores. Carapuça certeira. Cabia o alarme entre chefes políticos do sertão. Entre os favorecedores mais eficientes do cangaço, incorrigíveis até ali”.

No início de 1938, o major José Lucena, comandante do II Batalhão em Santana do Ipanema, AL, é convocado para comparecer urgentemente a presença do coronel Teodureto na Capital do Estado:

“(...) o coronel Teodureto ansiava por ter com ele uma conversa reservada, com vistas a “identificar o dedo misterioso que incidia sobre o contexto da campanha (contra o cangaço) e levava àquele resultado deplorável”. Homem enérgico, embora polido, como se impõe a um oficial superior do Exército, Teodureto abre a fala ressalvando “que não punha em dúvida a lealdade e a competência do seu subordinado, mas que precisava descobrir a causa da frustração e eliminá-la custasse o que custasse”. E porque “cumpria restaurar a confiança das populações massacradas pelo cangaço nas providências de governo”, pontuava palavra por palavra, “não abriria mão, a partir de agora, de ação efetiva e ajustada, sob pena de apelar para medidas drásticas e até arbitrárias contra aqueles que fossem apanhados violando suas determinações”. Lucena pouco fala. Ao fazê-lo, já no final, somente lhe acode rememorar o que dissera à imprensa na polêmica de meses atrás: que lhe parecia impossível garantir a honradez de cada uma das quatrocentas individualidades que comandava no sertão. E deixa o Regimento policial “tão amargurado, que ruma dali para a catedral, a fim de orar e pedir a Deus ânimo e luzes para se safar do sério embaraço em que se via metido”. (MELLO,pgs 268 a 269. 2012)

A partir daí, já vinda desde o Palácio do Catete, a ordem de acabar com Lampião vai passando de esfera em esfera de comando. Cada um que passasse a batata quente para as mãos do seu subordinado imediato. As autoridades lançam panfletos deixando a população ciente de que suas ações tinham carta branca, ou seja, podiam usar as ações que quisessem que o Estado os protegiam. Ocorre uma ruma de gente que deixa seus lugares onde moram e caem no mundo. Outros, já da alta, mudam de lado e começam a serem colaboradores das volantes, outros, porém, não deu tempo e são trancafiados. Mesmo assim alguns gatos pingados, devidos à grana ser alta, permanecem colaborando com Lampião, não outro chefe, apenas ao “Rei dos Cangaceiros”.

Entre os cangaceiros, também há deserções, pois sabiam que o cerco se fechava cada vez mais.


Lampião e Jurity em foto de Abrahão

Aqueles que fizeram parte das fileiras cangaceiras não tinham nenhum compromisso com seus companheiros. Ninguém era por ninguém e cada um que defendesse sua vida particularmente. O respeito e a solidariedade entre eles se baseavam em valores financeiros. Se qualquer um deles tivesse tido a oportunidade de matar o cangaceiro mor, Lampião, para apossar-se de seus ‘bens’, da grana e valores em joias e ouro que levava consigo, com certeza o teria matado. Excetuando-se, logicamente, algumas personagens como Luiz Pedro, na ocasião de sua morte, um Mariano anteriormente, um Gato, Sabino e etc... O cangaço estava prestes a acabar.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Marqueteiro nato

Mentiras que Lampião ‘soltava’

Por Sálvio Siqueira

Lampa e Abrahão...Tome nota, seu Benja!
O fenômeno cangaço brotou regado de sangue, suor, lágrimas e foi adubado com os corpos daqueles que tombavam nas terras semiáridas do sertão nordestino. Diante da arrogância, prepotência e imponência dos poderosos dominantes de uma região pobre e ‘esquecida’ pelos governantes, alguns nordestinos desviaram-se de sua conduta honrosa para tentar sobreviver ante o devastador mundo do poder.

Os flagelos causados por fenômenos naturais, segundos estudos de sociólogos, pesquisadores/historiadores renomados, por diversas vezes ao longo do tempo foi uma das principais causas do surgimento de grupos de homens errantes que passaram a aterrorizar as quebradas do sertão nordestino. Para sobreviverem, alguns dos chefes de bandoleiros faziam alianças com latifundiários, ‘coronéis’, políticos e comerciantes numa espécie de ‘favores’ trocados.

As grandes secas que assolavam a região do semiárido nordestino, que sem elas já era uma batalha para sobreviver, passa a aumentar em números alarmantes as dificuldades, sofrimentos, fome e sede de uma comunidade carente de ações políticas regionais. O sertanejo então, desde o seu nascer, é induzido a crenças que o fazem, em parte, aceitar seu sofrimento, flagelo e morte sem notar que a maior parte daquilo tudo é simplesmente a falta de atenção das pessoas que estavam com as rédeas do poder nas mãos.

Ao longo do tempo, governantes e religiosos sempre se destacaram com pactos quanto ao destino das pessoas. Os governantes por não fazerem, cumprirem com a responsabilidade de práticas e ações sociais para com o povo e, os religiosos fazendo com que as pessoas não notassem essa falta de responsabilidades daqueles por elas escolhidas para lhes governar, lavando seus cérebros, deixa a culpa toda para um Ser Supremo. Achando que todo seu sofrimento é determinação divina, morriam pelos caminhos e veredas empoeiradas do sertão pedindo perdão pelos pecados que jamais comentaram. O misticismo, a religiosidade, o sebastianismo, em fim... as crenças trazidas da Europa por nossos colonizadores, travou o desenvolvimento intelectual da maioria da população brasileira. É fato.

O sertão nordestino sempre pariu homens e mulheres fortes e destemidos. Pessoas que foram forjadas pelo calor calcinante de um sol que parece estar mais próximo, pela brisa leve e seca que ao bater na pele parece gumes de pequenas navalhas e por um bioma que se despe entrando em uma espécie de hibernação para sua própria proteção e sobrevivência. Essa última mostrando vida e morte, verde e cinza, numa contraste constante de renovação periódica, obrigando as pessoas a se adaptarem ou padecerem em suas entranhas.

No sertão, as pessoas, ainda hoje, têm a ‘palavra dada’ como um valor inestimável. A garantia ou a promessa oral, verbal, vale muito mais do que suas assinaturas abaixo de rascunhos numa folha de papel. Muitas delas consideram que palavra dada era igual ouro, um metal que não enferruja. Porém, como em tudo nessa vida tem exceções, essa regra também as teve. Palavras foram quebradas, mentiras foram soltas ao vento causando dores, lágrimas e mortes de inocentes.

Sabedor das crenças dos conterrâneos, Lampião, em sua grande sabedoria, passa a usar de artimanhas, mentiras, para conquistar a adesão, amizade e respeito, da população sertaneja. Primeiro por ser um dos grandes motivos para sua sobrevivência, segundo para se mostrar benfeitor ou mesmo o justiceiro que nunca o fora. Pois bem, como exemplo, contaremos um caso que ocorreu no município de Flores, PE, em junho de 1925, quando Lampião praticou duas grandes atrocidades a um cidadão do Pajeú das Flores.

Para começo de conversa, Lampião sempre referiu que nunca havia invadido a cidade de Flores, PE, devido à mesma ter como ‘Padroeira’ a Santa Nossa Senhora da Conceição. Ora, o povoado de São Serafim, hoje cidade de Calumbi, PE, bem próxima a Flores, também tem por padroeira a mesma santa, e nem por isso o “Rei Vesgo” deixou de invadir e pintar o escarcéu naquele lugarejo. Roubou, extorquiu e estuprou, só não matando devido algumas pessoas alvo, terem fugido para dentro da Mata Branca, muito antes da sua entrada no povoado.

Entre Triunfo e Calumbí, ambas no sertão do Pajeú das Flores, microrregião do interior pernambucano, existe uma serra por nome de Caititu. Nela, Lampião fez moradia temporária devido sua posição, e sua geografia permitir muito pouco alguém escalar. Sabedor das dificuldades naturais da serra, Lampião usa-os como aliado e, foi não foi, estava nela acoitado, principalmente por haver uma gruta bastante ampla chamada de ‘casa de pedra’.

A Serra do Caititu, ficando próximo aos limites do município de Flores, PE, Lampião envia um emissário para dois cidadãos, um que morava no Sítio Melancia e outro próximo ao sítio Saco dos Bois, propriedade d’um grande coiteiro de Virgolino, o major Ernesto. O emissário leva dois dos famosos bilhetes de extorsão que tanto o chefe mor do cangaço usou com suas vítimas. Eram dois, porém, tinham o mesmo conteúdo, pediam uma determinada quantia.

Segundo o pesquisador Louro Teles, em seu “A Maior Batalha de Lampião – Serra Grande e a Invasão de Calumbi”, os dois eram donos de engenhos de rapadura e eram envolvidos na política regional, dois fatores que conquistaram a cobiça do cangaceiro.

Um desses cidadãos chamava-se Matias Moreira. Esse, ao receber o pedido de dinheiro responde malcriadamente, dizendo:

“- Diga a ele que se ele quiser dinheiro, vã trabalhar como eu trabalhei! Eu não tenho dinheiro para bandido, não!” (LT, 2017)
O morador do sítio Melancia chamava-se José Calú, ou Calu. Que também negou o envio de alguns mil réis. As férias, quantia em dinheiro, prevista pelo “Rei do Cangaço” não deu certo. O ‘apurado’ foi por ‘água abaixo’ e isso sempre deixava o cangaceiro bastante zangado. Além disso, os dois teriam que servirem de exemplo para o restante da população da região perdendo suas vidas ou sendo bastante torturados.

Deixemos o caso de Matias Moreira para outra oportunidade.

Em vários e vários livros sobre esse fato, o caso de José Calu, vem em suas entrelinhas que Lampião ficando sabendo que o mesmo mantinha relações sexuais com suas filhas, resolveu castiga-lo. “Conversa vai, conversa vem, José Josino contou-lhe que um sujeito chamado José Calu, que era viúvo, matinha relações sexuais com as próprias filhas – um escândalo sem limites, o povo comentava isso como sendo o fim do mundo. Lampião também ficou horrorizado e resolveu dar uma lição de moral no miserável (...) Zé Calu estava se aprontando para ir à feira, quando Lampião chegou à fazenda com seus cabras. O cangaceiro pediu dinheiro.

Zé Calu disse que não tinha. Lampião sabia que ele estava mentindo, pois Zé Calu era dono de engenho de rapadura, com certeza tinha dinheiro escondido em casa. Depois de determinar que pusessem piquetes na estrada para evitar que alguém fosse à cidade avisar as autoridades, lampião mandou que amarrassem Zé Calu pelos testículos e o pendurassem no gancho de um armador de rede. E isso foi só o começo. Zé Calu foi submetido a rigoroso interrogatório sobre as feias práticas que lhe eram imputadas. O homem negou tudo, jurou que era mentira do povo, mas ão teve jeito, os cangaceiros puxaram a corda fazendo-o subir e descer várias vezes, pendurado pelos tesyículos, urrando de dor, enquanto Lampião repetia:

- Isso é pra você aprendê a respeitá suas fia, seu disgraçado!” (BI, pg 180, 2014)

No dia 4 do mês de Santana de 1925, Lampião deixa o esconderijo da ‘casa de pedra’ na serra do Caititu, desceu a serra e foi procurar pelos donos de engenhos que lhe negaram o dinheiro. Matias, não estando em casa, se salva de uma morte certa pelo desaforo que mandou, e sua sentença foi adiada. Já o outro, José Calu, não tem a mesma sorte. Lampião distribuiu seus cabras pelos caminhos e veredas que levavam a cidade de Flores para, todo aquele que fosse para a feira, era um dia de sábado, ser pego e seu dinheiro tomado ficando os mesmos presos para não darem o alarma as autoridades. O restante dos homens, obedecendo às ordens do chefe, cerca a casa sede da fazenda Melancia e, estando seu dono aprontando-se para ir a Flores, é surpreendido por fortes pancadas na porta do terreiro da frente. Abrindo a porta, sua casa é invadida pela horda de cangaceiros que já vão mandando brasa nos móveis e no próprio José Calu.

Segundo o autor do livro seu “A Maior Batalha de Lampião – Serra Grande e a Invasão de Calumbi”, que mora na região onde ocorreu o fato e ainda hoje matem contatos com familiares de José Calu, a coisa não se deu como as outras obras literárias referiram. O castigo aplicado ao dono de engenho foi exclusivamente uma lição por não ter-lhe mando o dinheiro pedido. “Quando José Calu foi interrogado por que não tinha mandado o dinheiro ele disse que não tinha dinheiro, Lampião com raiva mandou os cangaceiros tirarem a roupa do coitado, amarraram os testículos do infeliz e pendurou José Calu, no brabo da casa o deixando pendurado e partiram sem rumo; como se não bastasse, Lampião ainda ameaçou matar quem o tirasse dali.” ( LT, pg 87, 2017)

Lampião era bastante esperto e sempre que possível, procurava fazer-se de vitima. Dentro da caatinga, dava inúmeras voltas em cima dos próprios rastros, subindo e descendo serras, indo e voltando para confundi seus perseguidores. Sempre mandava dizer que iria para uma localidade quando na verdade dirigia-se para outra em direção totalmente contrária. Para amenizar certas crueldades praticadas por ordem dele, ou mesmo pelo próprio, dizia que fora obrigado ou que fora enganado, ou ainda que estivesse fazendo justiça.

O próprio Lampião foi quem inventou a história do coito entre pai e filhas. Condenando o pai para o resto da vida por uma coisa que não cometeu.

 O pesquisador/historiador Louro Teles, na página 88 da O.C., nos relata: “(...) entrevistei dona Maria Vanusa Barbosa de Brito, neta de José Calu, entendi que era mais uma mentira de Lampião utilizada por ele apenas para justificar seus erros.”

Referindo sobre o que dissera dona Maria Vanusa, quando perguntada sobre José Calu manter relações com suas filhas, ele escreveu a seguinte resposta dela: “-Não! Ele queria apenas dinheiro. Quando Lampião invadiu a casa de Calu meu avô, minha tia Maria Barbosa conhecida por Maria calu, justamente a menina que diziam que o pai tinha abusado dela estava na sala e Lampião ao ver os brincos de ouro que estavam em suas orelhas tentou toma-los, mas como ela não quis entregar ele lhe rasgou as duas orelhas deixando nela esta marca por toda sua vida.”

Naquela ocasião, o avô por parte da mãe de dona Maria Vanusa, Manoel Barbosa, era cangaceiro participante do bando do “cego”. José Calu teve três filhos, dois homens e uma mulher. Em muitas obras literárias são citadas que seriam duas mulheres e um homem. Um dos filhos de Calu, Manoel Barbosa do Nascimento, era o pai de dona Maria Vanusa Barbosa de Brito.

A historiografia do cangaço é contida de contos e contos sobre fatos que distorcem em todo ou em alguma parte. Nesse caso que acabamos de lhes contar, notamos que que quase toda a narração em uma obra, bate de igual com a outra, inclusive suas datas, localidade e maneira de agir dos cangaceiros. O que diferencia é a causa que levou o “Rei do Cangaço” a praticar mais uma das suas grandes atrocidades... nas quebradas do Sertão do Pajeú das Flores.

Fonte Os. Cs.
Foto Revista “O Malho”

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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Estórias

Cangaço a Vapor – Parte 1
 Por Wilson Júnior


– Precisamos… sair… da cidade! – Boião arfava. A mão empapada de sangue sobre o talho na barriga fracassava em conter o sangramento, mas temia que ao retirá-la dali deixaria escapar suas tripas .

O sol do meio dia chicoteava, nem o chapéu e a casaca de couro eram capazes de proteger.

– Fui tolo. Como me deixei enganar, ainda mais por um plano tão simples? A febre do ouro nubla o olhar do homem.

– Não faça isso, meu Capitão. Não é hora de se culpar – Risonho olhou para o Capitão Severino dos Santos. Nunca o vira daquela forma, nem na guerra, o homem perdido. Ninguém parecia igual, nem seria igual dali para frente.

– Te alui homem. O bando ainda tá vivo em nós quatro. Não por muito tempo, se tu não te recompor – as palavras de Cheirosa acertaram o Capitão como um tapa.

O homem se levantou, limpou o misto de suor e sangue da testa com as costas da mão e olhou para a esposa numa gratidão silenciosa.

– Risonho, me ajuda com o Boião. Cheirosa, você vai na frente dando cobertura. O desabamento vai nos dar algum tempo, os Encouraçados não podem nos seguir nessas vielas. – Qualquer vestígio de dúvida desaparecera do olhar do Capitão, sendo substituída por uma determinação afiada como a lâmina da peixeira que carregava no cós da calça.

Os gritos podiam ser ouvidos por todo lado, sargentos e capitães dando ordens. Tiros pipocavam, e desmoronamentos lançavam lufadas de poeira que passavam dos telhados das casas e casebres. Coronel Romualdo botaria aquela cidade abaixo se preciso fosse para capturar Capitão Severino.

O bando se deslocava pelas vielas tentando manter um equilíbrio entre a pressa e a cautela. Carregar Boião por si só já era tarefa dura, mas os canhões em suas costas e os vários quilos de explosivos tornavam tudo mais difícil, ainda mais com os pistões de sustentação danificados. Cheirosa ia na frente servindo de batedora, parando de esquina em esquina, a carabina de repetição empunhada.

As portas e janelas das casas estavam todas fechadas, o que era uma sorte, já que havia menos chance de alguém denunciar a posição do grupo. Cheirosa caminhou apressada, olhou num cruzamento e fez sinal para que os três homens avançassem. Boião tropeçou batendo um dos canhões na parede de barro de uma casa, derrubando um pedaço e abrindo um buraco que expôs o interior escuro ao sol. Dentro, um pai e uma mãe abraçavam seu filho.

– Misericórdia Capitão! – clamou o pai de corpo magrelo e olhos chorosos.

Sem responder, Severino meteu a mão na sinta e puxou uma sacola de onde ressoou um barulho metálico. Arremessou-a para dentro da casa, fazendo a família se encolher a ainda mais.

– Uma compensação pela avaria e pelo silêncio – disse, e partiu sem esperar para ver a felicidade nós olhos da família ao encontrar dobrões de ouro dentro da pequena sacola.

Avançaram pelas ruelas, sabendo que o cerco se fechava. Apertaram o passo, mas a pressão da marcha foi demais para Boião, que tropeçou novamente, quase levando os dois homens ao chão consigo.

– Cheirosa, pare! – gritou Severino. A mulher estacou pouco antes de uma esquina e olhou para o marido irritada, temendo que grito tivesse entregado a posição.

– Não dá mais pra mim não, Capitão.

– Não diga isso homem, falta pouco…

– Pouco para quê, Senhor? Saindo da cidade é uma ruma de chão até o acampamento, não vou conseguir – disse o gigante, com a secura de quem enxerga o fim. – Já aceitei.

– Aqui! – O grito ecoou pelo cruzamento. Severino levantou a cabeça e viu o dono da voz, um soldado que segurava com as duas mãos a carabina de Cheirosa. – Aqui! Eles tão aqui! – gritou o sujeito pela segunda vez, puxando a arma das mãos da mulher.

A cangaceira soltou a arma, o soldado tropeçou para trás erguendo a carabina sobre a cabeça num movimento exagerado pela falta de resistência por parte de Cheirosa. Num bote de cascavel, a peixeira de Cheirosa deslizou pela garganta do homem, que caiu vazando sangue sem entender o que havia acontecido. A mulher olhou para o lado e viu ao longe a maré de homens vindo em sua direção. Um segundo depois a parede de barro explodiu em vários pontos, alvejada pelos dos soldados. O barro cobriu seu cabelo e rosto e fez uma pequena nuvem de poeira.

– Temos que ir! – Cheirosa já estava limpando a areia e se agachando para recuperar sua arma.

– Quero uma dose – pediu Boião.

Severino puxou a pena garrafa de cachaça da cintura levando em direção do gigante caído.

– Né pinga não, meu Capitão, quero o Soro.

O homem olhou para a barriga de seu soldado. O sangue cascateava de suas vísceras à mostra.

– Você morre, homem. Vai piorar o sangramento.

– Eu só preciso de… alguns segundos… para cobrir vocês.

Severino quis argumentar, mas sabia que seria em vão. Viu no olhar do moribundo que não haveria palavras para demovê-lo.

– Risonho, vá ajudar Cheirosa na cobertura, eu cuido de Boião – o Capitão tirou a seringa de vidro de dentro de uma embalagem de couro. – Seu coração não vai aguentar muito tempo depois

– Eu não preciso de muito tempo – Boião respondeu exibindo um sorriso equino.

Severino preparou a injeção, penetrando o braço de Boião. Antes de injetar o líquido amarelo, entregou-lhe uma tira de couro grossa.

– Morda isso.

Sem questionar, o cangaceiro colocou na boca e travou a mandíbula. Já vira o efeito do Soro antes, não era bonito.

No instante em que a primeira gota do líquido entrou em sua veia, seu braço começou a tremer, em seguida o corpo inteiro. Era como se óleo fervente tivesse sido despejado em seu interior. O Capitão aproveitou para colocar pólvora no buraco em sua barriga e selar a ferida no fogo, aproveitando as dores do soro para disfarçar a menor. O sangramento não parou, mas pelo menos, não jorraria por efeito da droga.

Severino ouviu os ossos de sua mão estalarem devido a força de Boião, que agora se dividia entre urrar e apertar os dentes até o sangue sair das gengivas.

– Vai passar, aguente mais um pouco!

As veias do gigante estavam saltadas, ele babava sangue, seus olhos revirados, cada músculo no seu corpo retesado.

Então, parou.

***

Semanas antes…

– É chegada a hora, meu bando! – anunciou Severino, com um sorriso largo no rosto.

– Hora de quê, homem? Deixa de ser amostrado!

– Ah, meu caro Risonho, a hora que estamos há dez anos esperando! – o Capitão fez uma pausa dramática, gostava de um teatro.

– Fala logo, Capitão! – gritou um.

– Bora logo, homi, deixa de firula – instigou outro.

– Ouro! – respondeu Severino, deixando a palavra arrebatar os homens. – Nosso ouro!

Essas palavras faziam os olhos de qualquer homem brilhar. Ouro resolvia todos os problemas, ouro é poder, pensava Severino.

– Meu Deus, Capitão, deixe de suspense que meu coração é frágil – disse Boião.

– O Brasil finalmente liberou o ouro da República do Equador, a indenização pela derrota na guerra.

– E você acha que nós vamos ganhar algo desse ouro? – perguntou Cascavel.

– Ganhar? Desde quando alguém nos dá algo? A gente vai roubar! Melhor ainda, vamos confiscar, por que na verdade esse ouro é nosso.

– Nosso? – perguntaram.

– Ora, meu bando, quem ganhou aquela guerra? Quem tava na linha de frente? Quem voltou para casa depois e não recebeu nada do governo depois de entregar tudo, sangue, suor, lágrimas, irmãos e irmãs?

– Nós! – gritou o bando em conjunto. Vivas e urras se espalharam entre os homens.

Há dez anos, Severino abdicou de uma posição confortável no governo quando soube que seus homens não receberiam as terras prometidas como compensação aos soldados. A bela República do Equador já começou sendo pouco diferente do Brasil, negligenciando o sertanejo, aqueles que lutaram e ganharam a guerra.

– Com esse ouro, o sonho de meu padrinho Frei Raimundo Eremita pode se tornar realidade. Vamos fazer nosso próprio país, um lugar onde a terra será de todos, como foi um dia o Éden. Os homens serão iguais e cada trabalhador vai ter um pedaço de terra.

Severino pôde ver o impacto das palavras. Apesar dos mais de dez anos desses homens no cangaço e na guerra, no fim são apenas camponeses. A maioria só queria um pedaço de terra, que perderam pela ganância dos que governam.

– Como isso vai ser feito? – perguntou Cheirosa, furtando os soldados do mundo idílico.

– O ouro vai sair de trem do Rio de Janeiro para Recife. Atacaremos em Caruaru, onde é menos policiado.

– Essa quantidade de ouro vai tá bem guardado, soldados tanto do Brasil quanto da República.

– Mas temos o efeito surpresa a nosso favor. É atacar, tomar o trem e desviar para um caminho do nosso interesse. Temos aliados em Juazeiro do Norte. E com a quantidade de ouro não vai ser difícil comprar algumas pessoas.

– É arriscado – disse Cheirosa.

– Quando a aposta é alta, sempre há risco. O que me dizem homens? Ouro?

– Ouro!!! – gritaram todos.

***

Por um momento, o corpo de Boião relaxou. Severino temeu que tivesse sido demais para o amigo já fragilizado. Num átimo, ele abriu os olhos, suas pupilas dilatadas como as de um gato no escuro. Num salto o homem estava de pé, os pistões rangendo e soltando vapor suficiente para engolfá-los numa nuvem.

– Corram! – gritou o cangaceiro gigante, seus olhos vermelhos, suas veias saltadas.

– Calma, homem? – perguntou Severino.

– Pega o Capitão e vá. Eu vou cobrir para vocês!

– Não… – tentou responder Severino, mas foi empurrado de lado por Boião, que se adiantou em entrar no corredor de onde vinham os inimigos.

– Vem, não perde tempo, aceita! – gritou Cheirosa para Severino, aparvalhado pela ação de seu soldado.

Eles correram na direção oposta a Boião. O guerreiro ocupava quase a ruela toda, impedindo os soldados de fazer mira; em compensação, era difícil errar qualquer disparo nele. Os soldados atiravam no estreito corredor, acertando o gigante em várias partes, mas como um touro bravo ele continuava em frente. Boião atirava de volta, derrubando vários soldados com a potência de sua carabina modificada. Um homem normal cairia ao usar a espingarda do gigante, que soltava rajadas deixando para trás fumaça e vapor. Ele só queria chegar um pouco mais perto, mostrar a potência do equipamento de suas costas sobre aqueles filhos de uma égua. Sentia o calor da caldeira às costas, o equipamento que deveria ajudar a carregar os explosivos tornando-os mais leves estava danificado e adicionava peso.

O guerreiro se aproximava, porém por trás dos soldados surgiu um Encouraçado, seu corpo enorme e desengonçado derrubando paredes das casas, o piloto inexperiente tentando fazer mira em Boião, balançando as alavancas forçando as caldeiras do monstro que cuspia vapor para o céu. Mesmo com o soro, o cangaceiro sabia que um ataque daquele exoesqueleto gigante o pararia.

Boião parou e mexeu no seu equipamento numa corrida contra o tempo. O gigante de metal travou a mira e disparou.

O soldado olhou para trás, viu que o resto do bando se afastava, apertou o botão e sentiu seu corpo ser varado pelos disparos do blindado. Não houve dor, só uma dormência. Ele ouviu o riso dos soldados, então os pistões às suas costas começaram apitar.

A caldeira soltou uma rajada de vapor violenta que lançou o corpo de Boião como uma bala pelos últimos metros. O gigante aterrissou no meio dos soldados e teve o prazer de sorrir uma última vez ao ver suas caras de pavor.

Severino, Cheirosa e Risonho sentiram o impacto da explosão. A bola de fumaça, fogo e vapor subiu tão alto que podia ser vista de longe. Mas não podiam parar: a morte de Boião comprou algum tempo, e eles não a desperdiçariam.

Pescado em Escambau

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Fonte viva

Andrelino Pereira Filho, único policial ainda vivo - com 104 anos, ex-integrante das tropas volantes que combateram o cangaço

Nascido em Cabrobó, Sertão pernambucano, em 18 de março de 1914, seu Andrelino jamais pensou que fosse viver tanto. Tornou-se volante porque, sem emprego, o jeito foi entrar para a polícia; mas quando entrou, não sabia que faria parte de uma tropa volante que entraria no Sertão em busca de cangaceiros. “Acabei lá. Quando convocaram, pensei em nada, só que ia pro Sertão e fui, calado”.




Os soldados andavam em grupos de sete, mais um comandante, e a tropa de Andrelino ficou pelas bandas de Alagoas (era época de ditadura, a de Getúlio Vargas, então a polícia comandava onde fosse necessário). Foram dois anos “andando no mato, dormindo no mato, vivendo o mato” - “dentro da caatinga de 1936 a 1938”.

Diz a história que cangaceiro tinha um cheiro peculiar, uma mistura de perfume ou água de colônia com suor, que acabava ajudando no rastreamento, como contra André Carneiro em “Capitães do Fim do Mundo”. “Mas não era uma certeza, era uma pista casual, acontecia. Só eles usavam, mas a gente, não. Se os encontrasse, bem; se não, seguíamos. Mas rezava pra não encontrar”, continua o ex-volante.

Sem descanso, sem comida, sem água, as volantes seguiam nessa missão ingrata; “ingrata” porque o pagamento era também escasso. “Comida era quando encontrava. Farinha, rapadura, queijo de coalho, se tivesse. Água, só quando encontrava um poço. Sobre banho, nunca se falou”.

As armas eram fuzis e o volante carregava, em média 50 balas que “pesavam como o diabo”, e nessa rotina dura, seu Andrelino diz que teve uma aliada: a calma. “Foi a primeira coisa que aprendi. A segunda foi a conviver; a terceira, foi ‘não atender a muita gente, a não dar atenção’. Se o camarada atende a muitas perguntas, passa o tempo todo. Eu preferia ficar em silêncio”.

As tropas não tinham treinamento, mas orientações de como se defender se encontrassem um bando. “Mas essa orientação era no momento. Estava no tiroteio e se os tiros apertassem, eu seguia a ordem: me jogava no chão”. Andrelino nunca ficou ferido (mas quase foi), nunca matou ninguém, nunca viu um de seus companheiros de tropa matando.

“O pagamento, eu não sei nem dizer como era. Eu lembro que a gente recebia, que tinha um sargento que era o pagador, Almeida, trazia tudo separado. Ele trazia o pacotinho de dinheiro. A gente chegava em uma bodega, fazia compras. Pronto, e o dinheiro desaparecia”. Não havia heroísmo, mas uma obrigação; não havia um intuito de fazer justiça, de trazer um bem social, mas uma vontade enorme de trabalhar para que o dia em que aquelas volantes terminassem chegasse logo.

Os coiteiros também davam pistas dos cangaceiros. Certo dia, diz seu Andrelino, foi o perfume de uma mocinha, numa casa, que entregou a presença de um bando. “Os cangaceiros estavam em uma distância de uns 500 metros e cozinhando um bode numa lata amarrada num pé de pau em cima de um fogo de lenha. Estava fervendo. A mocinha quis negar, mas terminou dizendo. Os cangaceiros deram fé e fugiram. Deixaram a lata fervendo lá. Ninguém comeu, quem sabia se não tinham colocado veneno?”.

Medo, seu Andrelino nunca sentiu, embora tenha visto e sentido muita coisa. Sentia, mas não podia falar porque, afinal, estavam todos do mesmo jeito. Alívio e alegria sentiu quando soube que a volante tinha terminado e ele seria deslocado para o Recife, onde faria serviços bem mais leves. “As roupas da volante eram de tecido grosso, feitas de todo jeito; no Recife, fizeram sob medida. Mas as duas eram cáqui e eu não uso mais cáqui desde que saí da polícia em 1966”.

Andrelino conheceu Lampião quando era menino. “Ele ia lá em casa, tomou café lá muitas vezes. Chamava minha mãe: ‘cumade’, tem um cafezinho?”. Tomava e ia embora”. E com seus 104 anos e sua memória reta, seu Andrelino defende uma tese diferente para a morte de Lampião. Ele ri da oficial - que Virgolino foi morto em uma emboscada em 1938, em Angico, Sergipe - e diz que tem certeza que o cangaceiro jamais morreria daquela forma. “Lampião morreu em Minas Gerais, na fazenda São Francisco, muitos anos depois, em 1963, justamente neste mês que estamos, de julho, mas eu não sei a data exata”.

“Um amigo dele, de Lampião, era amigo meu, um senhor de Porção (cidade do interior de Pernambuco). Tinha trabalhado com ele. Eu estava em Pesqueira (outra cidade pernambucana, localizada no Agreste), engraxando sapato, quando ele passou e falou: ‘sabe de onde eu venho? De Minas Gerais, do enterro de Lampião’. O que, homem?! Lampião morreu? Era mês de setembro. Eu já sabia que ele estava na fazenda São Francisco. As coisas passam no meio do mundo e a gente sabe”.

Por: Tatiana Notaro | Foto: Rafael Furtado
Publicado originalmente no www.folhape.com.br em 28/07/18
Créditos do achado para Joel Reis