Confira a transcrição da entrevista concedida pela saudosa ex-cangaceira Sila à revista TPM edição nº 1, Maio de 2001.
Tpm. Como a senhora fazia para ficar bonita no meio do mato?
Só punha ouro, chapéu bonito, bornal todo enfeitado, roupa cheia de bordado. Eu tomava banho com perfume! Ainda hoje sou vaidosa. Só que hoje, se tomo um banho, me troco e não ponho perfume. Para mim, perfume me lembra de mato, e é como se eu não tivesse tomado banho. Às vezes, o cheiro de perfume ficava tão forte e tão ruim entre a gente, que teve muita história de a polícia achar cangaceiro por causa do fedor. Era muito quente, muita roupa, então suava...
Tpm. A senhora engravidou no meio do mato, né?
Umas três vezes.
Tpm. Onde a senhora deu à luz seu filho?
Pari no mato mesmo, lá por perto, onde tinha água. Estava com Maria, os homens saíram todos de perto. Comecei a sentir as dores, aí ela armou uma coberta no chão e eu deitei. Fiz muita força a tarde toda e, à noite, o menino nasceu. Foi ela que fez meu parto. Daí, os homens vieram correndo para ver como ele era. Nossa, eu sentia tanta dor, parecia que iam abrir minhas cadeiras, ave-maria... Aí, enfiei vários panos dentro da calça para estancar o sangue e seguimos viagem.
Tpm. O que aconteceu quando levaram a senhora?
Naquela noite que eles chegaram, meus primos arranjaram uma sanfona para tocar e vieram vários cangaceiros. Eu nem olhava na cara de Zé Sereno, só rezava: "Meu Deus, fazei com que esse homem não queira que eu saia" [quando os cangaceiros raptavam uma mulher, o termo usado era "sair", ou "tirar a moça"]. Quando foi de manhã cedinho, a cangaceira Neném veio e disse que eu me preparasse para sair. Era sempre assim, eles mandavam uma mulher dar o aviso, desse jeito "encorajava" a outra. Saí com o vestido fino de baile que eu estava.
Tpm. Qual era o seu papel no bando?
Eu costurava as minhas roupas, bornais... Não tinha obrigação de nada. Fazia o que queria, comia o que queria. Não tinha esse negócio de obrigação como dona-de-casa; eu era dona-do-mato.
Tpm. E, nos tiroteios, a senhora atirava?
Não, nunca precisei. Quase levei tiro na cabeça, isso sim, de estar deitada aqui e levantar um pedaço de terra assim do meu lado. A única mulher que atirou mesmo foi a Dadá [mulher de Corisco, passou a participar dos combates no lugar do marido, que teve parte dos braços amputados]. As outras não atiravam porque a nossa parte era só dar força aos maridos. Não sei, parece que eles confiavam muito na gente e a gente confiava muito neles.
Tpm. Como foi o tiroteio que matou Lampião? Onde vocês estavam?
O nosso bando encontrou com o de Lampião, que já estava lá em Angico [nome da fazenda em Sergipe onde Lampião morreu]. Passamos muita sede até chegar lá, estávamos todos cansados. Quando foi de noite, Lampião tirou uma melancia e ofereceu para mim. Fomos eu e Maria chupar a melancia sentadas numa pedra, no alto de uma ribanceira. Ficamos lá, ela me convidou para fumar e ficamos falando as coisas de sempre, que aquilo não era vida. Foi a última conversa que ela teve. Enquanto a gente conversava, vi uma luz que acendia e apagava, até perguntei a ela se era uma lanterna. Ela disse que devia ser vaga-lume. Se eu tivesse descido e falado com Zé Sereno, não teria acontecido o que aconteceu, porque ele contaria a Lampião e todo mundo teria se equipado.
Tpm. A senhora deixou o cangaço depois da morte de Lampião?
Não, nós ainda ficamos um tempo no mato. Deixei só em 1938. Nos entregamos na Bahia, quando Zé Sereno recebeu uma carta do governo dizendo que o Getúlio Vargas ia dar ordem de anistia. Sem prisão nem nada, a gente ia ser livre. Chegamos em Salvador e aí nos separaram. Ficou eu, Dulce e uma outra que nunca mais vi, a Dinda, todas presas. Dulce dizia: "Mana, o que é que nós vamos fazer?" Aí, nós choramos, as três. Num lugar estranho, meu Deus. Cadê eles? Ninguém sabia... No outro dia cedinho, Zé chegou para nos pegar e nos levaram para um quartel. Todo dia tinha uma chamada e a gente ia lá se apresentar. Ficamos lá até quando o Getúlio mandou a anistia.
Tpm. Quando a senhora chegou em São Paulo, as pessoas sabiam quem era?
No trabalho, eu não contava não. Mas sempre acabavam descobrindo. A pior coisa que tinha era quando as crianças diziam: "Mãe, fulano disse que não quer brincar comigo, que sou filho de bandido". É duro, né? Eu dizia: "Vocês não são filhos de bandido, meus filhos, vocês são filhos de gente. Seu pai é Zé Sereno e eu sou sua mãe, somos gente que nem eles. Um dia vocês vão entender".
Tpm. Dá para comparar a violência de hoje, em São Paulo, com a que tinha no cangaço?
Já fui assaltada várias vezes. Aqui em São Paulo a gente não vive mais de tanto medo. Sai de casa e tem que ficar olhando para os lados, segurando a bolsa com força. Nunca apontaram uma arma para mim, mas já puxaram e levaram minha bolsa. Uma vez, saí correndo atrás de um trombadinha, catei ele pelo braço e fiz ele devolver a carteira. É diferente do cangaço... No mato, era a polícia que corria atrás, só tínhamos que ficar fugindo e fugindo. Roubava só fazendeiro que não dava o dinheiro por bem. Não tinha esse negócio de ladrão entrar na casa da gente sem ser convidado...
Tpm. A senhora tem saudade do Nordeste?
Ah... Se alguém me der uma passagem de volta, vou embora daqui...
Além dos pés de xique-xique e mandacaru, a caatinga é a terra onde brotou um dos mais peculiares movimentos da história do Brasil: o cangaço. No início do século XX, o povo morria de medo dos cangaceiros, que invadiam pequenas vilas espalhadas pela região atrás de comida, bebida, armas e jóias
Naqueles verdadeiros arrastões, homens comandados por Lampião aterrorizavam as mulheres e, não raro, carregavam-nas com o bando - essas, embora bem tratadas, já viram companheiras marcadas com ferro em brasa, como se faz com as vacas na fazenda.
Durante os quase dez anos em que houve presença feminina no cangaço, elas foram unicamente parceiras sexuais. Muitas foram levadas de casa ainda virgens - algumas com 12 anos de idade! - e, já no bando, cada uma passava a 'pertencer' a um cangaceiro (Sila 'era de' Zé Sereno, líder de um bando leal a Lampião, com quem teve três filhos). Não cuidavam de nenhuma das tarefas que na época cabiam às mulheres executar. Eram os homens que cozinhavam e até costuravam. Uma ou outra, como a famosa Dadá, tinha o dom para as agulhas e os botões. Companheira do cangaceiro Corisco, lançou moda, sendo a grande responsável pelo colorido e a extravagância das roupas, chapéus e bornais com os quais todos se cobriam e que, tempos mais tarde, veio até a inspirar coleções de marcas como Forum.
O NAMORO NO CANGAÇO
Tpm. E com seu marido? A senhora não o namorava?
Ah, eu nem olhava pra cara dele, né? Um homem não via nem uma calcinha da sua mulher, não falava palavra feia perto da gente. Eu não sabia o que era namoro... Vou te dizer: eu nunca beijei, não sabia... Nossa vida era só andar, andar, andar, e pronto.
Tpm. Como foi a sua primeira noite com ele?
Sabe como é... À noite foi aquela bagunça, cada um se encostou num canto. Zé tirou a alpercata dele e mandou eu calçar. Quando eu calcei, ele disse: "agora nunca mais você vai me deixar". De fato, nunca deixei mesmo. Acho que era uma simpatia porque eles acreditavam muito em reza, em oração, em tudo eles acreditavam.
Tpm. Então ele não foi nada carinhoso com a senhora...
Que carinho nada! Não tinha carinho nenhum! [Contrariada.] Ele nunca me beijou.
Tpm. A senhora já foi traída pelo seu marido?
Aaaaave-maria... Eu não sei como ainda tenho cabelo, viu? Neném, primeira amiga de Sila no cangaço (a terceira da direita para a esquerda)
O cangaceiro Zé Sereno, marido de Sila, pouco antes de morrer, em 1981
- nessa época era inspetor de alunos em uma escola municipal em São Paulo.
- nessa época era inspetor de alunos em uma escola municipal em São Paulo.
Estilo CANGAÇO
Mesmo sem nenhuma ideia do que viria a ser o mundo fashion de hoje, as cangaceiras tinham estilo e lançaram tendência - a coleção outono/inverno 2001 da marca Forum, por exemplo, é inspirada nas vestimentas do cangaço. Elas adoravam cores fortes, todas misturadas. Laranja com azul, verde com vermelho, amarelo com azul, enfim, quanto mais chamativo melhor. Tudo isso bordado ou costurado nos bornais, chapéus e cantis.
Os desenhos podiam ser de formas geométricas ou flores. As roupas eram simples. Confeccionadas em gabardine ou mescla - tecidos grossos que resistiam aos espinhos do mato -, os vestidos eram retos, feitos em azul ou cinza.
Caía bem uma ou outra costura com linhas brilhosas nos bolsos e lapelas. Bem diferente daquele cáqui e marrom que imaginamos. Aliás, Dadá, que era quem inventava os bordados mais bacanas, chegou a contar que o marrom só era vestido pela polícia.
Dadá, "estilista" do cangaço (1972)
Matéria completa Revista TPM
3 comentários:
Convivi com Sila durante aproximadamente nove meses, e embora ela seja esnobada por uns e traída por outros eu vou ser sempre grato a ela, pois Sila me acolheu muito bem quando, por intermédio do amigo Paulo Gastão, ela aceitou um convite nosso para fazermos um documentário sobre a sua vida. Gratidão é uma coisa que não tem preço, portanto ela vai estar sempre na minha memória. Jamais vou esquecê-la, nem a ela nem a todos que sempre me receberam tão bem.
Aderbal Nogueira
Parabéns amigo Kiko!
Bela matéria!!!
Um abraço e inté...
Eu gostei muito das respostas da cangaceira Sila. Não as fantasiou em nenhum momento. Quem fizer uma leitura, vai ver que ela estava segura nas suas respostas.
Parabéns à ex-cangaceira!
Que Deus a conserve bem pertinho de si.
José Mendes Pereira – Mossoró-RN.
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