quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Volantes e facões

Cabo Leonídio e a cabeça de Manoel Moreno 

Como combater os cangaceiros, gente nascida nas caatingas, acostumados a seus caminhos espinhentos, corpo e alma construídos de carências? Felipe Borges comandante do batalhão especial de repressão ao banditismo, concluiu que com soldados trazidos da capital, e vestidos com bota, perneiras, calças culote, dólman, talabartes e chapéus de massa é que não era. O tenente decide usar o próprio sertanejo, quase parentes dos cangaceiros, na busca de informações e combates.

 cel. Felipe Borges de Castro da PM baiana

É tempo de convocações, algumas forçadas, dos conhecedores das trilhas sertanejas. As volantes agora tem os mesmos adereços e equipamentos dos cangaceiros. A caatinga agora fica confusa: não se distingue mais amigo de perdição. E essa mesma indistinção é usada como estratégia de luta.

O cabo Leonídio, conhecido por sua habilidade de encontrar rastros em qualquer tipo de terreno e de, sobretudo, saber diferenciar um rastro de outro, foi convidado a integrar a força pelo seu talento ímpar.

Tal habilidade é puro aprendizado de artimanhas; segue-se o rastro na busca maluca pelo que se poderia chamar de o não rastro, isto é, a observação de uma folha verde no chão, (folha verde não cai, só se alguém mexeu no galho) Uma pedra fora do lugar, (a noite o orvalho lava a pedra e se ela sai do lugar logo se nota a marca dela no chão, a areia em volta, marcada pelo sereno), Chão varrido, (alguém passou, deixou marca e depois tentou apagar varrendo o chão com folhas), pedaços pequenos de roupa nos espinhos e lixo, restos de papel, palha de cigarro, restos de fumo picado que caiu da mão, coisas dificultosas para para os olhos urbanos, menos competentes.

O cabo Leonídio tinha aprendido estas coisas cuidando do gado alheio, desde criança acostumada a correr com boi bravo nos espinhos. E foi promovido a cabo por merecimento. É calado, sisudo e tem um olho torto que olha de lado.


 O cabo Leonídio trabalhou com Zé Rufino,
mas passou a maior parte do tempo sob as ordens de Odilon Flor
e a este fez um grande favor: Cortar as cabeças dos cangaceiros mortos.
- Era dia de são João, às nove horas da noite. Nós demos um combate na fazenda Gararu, em Sergipe. Chovia bala, depois silêncio. Os bandidos tinham ido embora. Procuramos pelos cantos para ver se tinha ferido. O combate tinha sido tão cerrado que não tinha dado tempo de ninguém sair carregando baleado. Encontramos três cangaceiros mortos: Manoel Moreno, a mulher dele Áurea e Gorgulho. Quando foi de manhã, o sargento Odilon juntou a tropa e disse:
- Vamos cortar as cabeças dos defuntos.
Mas ninguém quis ir. Não quiseram ir porque, você já sabe, cortar o pescoço de uma pessoa é preciso que a pessoa também tenha a cara dura, porque se na for, não corta não.
Então ele virou-se para mim e disse: nego, vem cá, apanha aqui este facão e vá onde ta os cangaceiros, corte a cabeça e traga. Então eu fui e respondi pra ele: sargento, o senhor já mandou todo mundo; nenhum quis ir, só eu é que posso cortar? O senhor podia ir, porque o senhor tem mais costume do que eu. Ele então disse: eu quero é que você corte.
Aí eu apanhei o facão e fui. Quando eu peguei no cabelo do cabra, balancei, fechei a cara pro lado assim e sentei o facão, pá-pá, cortei, e joguei pra lá; peguei a mulher, cortei a cabeça da mulher. Peguei no outro cabra, cortei também a cabeça. Peguei todos os três, levei: Pronto, chefe, ta aqui.
 Manoel Moreno

As cabeças cortadas pelo cabo Leonídio.
Depois de uns dias, eu senti assim um remorso. De vez em quando, à noite quando eu dormia, sonhando com Manoel Moreno, um pouco assim de nervoso comigo, e coisa. E ele me apareceu um dia, me pegou dormindo. Pela abertura da rede e veio com um punhal em cima de mim; eu então pelejei, não pude fazer nada, gritei: cabra mata o homem, cabra, me dá as armas, cabra, até que dentro do quarto ( eu estava deitado perto da rede de uma criança, meu filho que hoje está em são Paulo), então eu tranquei os pés, a mulher levantou-se, tirou o menino da rede e ficou de lado quando eu ajuntei, pensando que o cabra estava me sangrando.
Levei a rede de uma vez só, agarrei-me nela, pensando que fosse o bandido, levei uma pancada na cabeça, (bati com a cabeça na parede) aí foi que me acordei, cansado, sufocado, sem fôlego, com o aperto que o cabra me deu. Bom, aí eu fiquei, coisa e tal e disse ao sargento Odilon: sargento, eu to me me vendo aperreado com Manoel moreno. Ele então disse: Você vai comigo daqui uns dias na casa de Pedrinho. Então eu fui. Cheguei lá, o Pedrinho fez lá um remédio pra mim e perguntou como era. Eu disse então os sintomas e depois de uns dias foi desaparecendo. Odilon me ensinou um defumador, umas coisas que o Pedrinho ensinou a ele e mandou eu tomar este defumador e com isto desapareceu. Não vieram mais me aperrear.
 Depois da noite na rede a alma de Manoel Moreno tornou a aparecer; e aparecia com os braços estendidos, as mão para cima, pedindo:
Leonídio, cadê minha cabeça que você cortou?

Referencial teórico: Soares, Paulo. Gil. Vida paixão e mortes de Corisco, o Diabo Louro.

Trancrito pelo confrade Ronnyeri Batista, síndico da comunidade do Orkut Cangaço, Discussão Técnica

Um comentário:

José Mendes Pereira disse...

Eu não estou querendo contrariar o que escreveu o autor deste texto, respeito o seu excelente artigo, mas o escritor Alcindo Alves da Costa, diz em: “Lampião Além da Versão - Mentiras e Mistério de Angicos”, que os cangaceiros abatidos lá em Poço da Volta, na Fazenda Palestina foram: Mané Moreno (que era primo de Zé Baiano e de Zé Sereno), Áurea, sua companheira (que era filha de Antonio Nicárcio, sendo este primo-irmão de Lé Soares (segundo Juliana Ischiara), este último pai de Rosinha de Mariano e de Adelaide, esta companheira de Criança).
Depois de vasculharem todos os locais onde aconteceu a chacina, Odilon Flor tomou conhecimento como sendo os mortos: Mané Moreno, sua companheira Áurea, e o bandido Cravo Roxo, o Serapião, que era filho de Mané Gregório, lá da Guia. Este deixou casa, pai, mãe, irmãos, parentes para se aliar aos cangaceiros, afirmando que queria ser mais um a entrar naquela desgraçada vida. Certo dia ele tomou conhecimento que os cangaceiros se encontravam acoitados na Serra Negra, resolveu ir até lá. Depois de algumas advertências e como usar a arma, Mané Moreno o presenteou com rifle, munições, balas, bornais, chapéu e outros utensílios que eram necessários à vida cangaceira. E depois que ele recebeu os equipamentos, embrenhou-se às matas. E lá, deu um tiro que posteriormente causou a morte de Adelaide que estava grávida, por ela ter pensado que era volante que se aproximava do coito.
O Gorgulho, o qual aparece como sendo um dos que foi abatido, no momento foi baleado e através de um coiteiro amigo, arrumou um animal e foi se tratar no centro do Cajueiro. Um senhor de uma família “Félix”, o Lisboa, foi quem cuidou dele até sua total recuperação. E depois desse acontecimento, resolveu abandonar o cangaço e retornou para sua terra que era o Salgado do Melão, incorporando-se novamente a sociedade.
Diz ainda Alcindo Alves que é bom lembrar que o combate em que Odilon Flor matou Mané Moreno, Áurea e Cravo Roxo, conhecido como o fogo do Poço da Volta, foi na realidade na Fazenda Palestina.

José Mendes Pereira – Mossoró-RN.