quinta-feira, 5 de agosto de 2010

No tempo dos Nazarenos

Boneco da 8ª festa Popular da Malhação do Judas 
- Crato-CE
O testamento de Judas "Gomes de Sá" 

Como senti uma saudade daquilo que eu nem conheci....

Fugindo um pouco da nossa rota trazemos para deleite dos nossos rastejadores um texto com aquela irreverência própria do cordel, apimentado e sem qualquer necessidade de censura. 
Humor pueril que apresenta a criatividade do povo nordestino. Acredito que os mais velhos relembrem e conservem esta tradição da Semana Santa em suas respectivas regiões. 
Esta era a versão made in Floresta. Não sei se ainda é mantida neste molde? De fato era uma simples e gostosa confraternização entre familiares, parentes, amigos, personalidades e inesquecíveis personagens da sociedade da época. 


O texto contém algumas palavras e termos que os mais novos e principalmente quem não é daqui vai estranhar. Nem mesmo o autor conseguiu reproduzir na íntegra, perceberão algumas pausas como (ilegíveis). Algumas destas devem até estar extintas. 


Não entendi algumas, simplesmente acho graça, da mesma forma que eu ri de Chaplin ao vê-lo cantar aquela música no filme "Tempos modernos" a língua fora inventada por ele. 
Porque imagino como seria o "defeito" de fulano ou aquele "objeto indesejado" de cicrano etc.

Por Leonardo Ferraz Gominho
Capitulo do seu livro Floresta - uma Terra - um Povo, Recife 1996, editora Fiam

Augusto Barros, na década de 1930, vivia em Floresta e, observador como era, costumava, nas semanas santas, fazer “testamentos de Judas”, verdadeiras chacotas com a sociedade florestana. Esses “testamentos” eram afixados nos bonecos representativos de Judas que apareciam enforcados no tamarindo que ficava na esquina das ruas Dr. Tito Rosas e Antônio Ferraz. Eram lidos e comentados por todos. Conseguimos colher o que se segue:

 Sua biografia
 
Debaixo de raios, corisco e trovão que fez medo até ao cão, nasceu Judas Macabeu dentro da bodega de Argemiro (Goyanna) debaixo de um caixão de sabão, junto a uma lata de manteiga rançosa. 
Formou-se na Academia de Itacuruba e na seca de 15, sob a direção do professor Horácio Guimarães, fez parte na revolução dos litros na feira junto com Pedro Barbosa (fiscal da Prefeitura, interviu em questões de métodos de medição, na feira de Floresta. Era sobrinho de João Barbosa - v. capítulo) saindo ferido gravemente no inseboxe (sic). Depois de restabelecido foi estudar astronomia com Joaquim Doroteu onde descobriu um serrote no espinhaço de Arlindo (Gomes de Sá). Argemiro, orgulhoso por ter um filho tão sábio, mandou para o Egito estudar um processo para acabar com o cão; o que é fato é que, em 1927 desapareceu o cão, abriu-se um inquérito e ficou provado quem o matou. Em 33 traiu Cristo e morreu. Argemiro chorou muito.
 
Testamento:
 
Eu, Judas riacheiro Dr. em ciências (ilegível) aí filho do jumento de Atanásio com Argemiro e Quinca Lopes (genro do coronel Cazé), com 67 anos de idade afora os que andou de tamanco atrás da mãe, como herança deixo:
 
- Ao meu filho Pedro Barbosa,
Por ser fiscal que não descamba, 
Como herança lhe deixo
As pelancas de Maria Panaraça.

- Ao meu filho Afonso Barros
Por ser escrivão de casamento,
Deixo-lhe o umbigo de José Augusto
E a cabeça do meu jumento.
 
- Ao amigo Balduíno (Curchatuz), 
Partidário das goiabas,
Deixo-lhe por herança
Um vidro de catuaba.

- Ao amigo Manoel Boiadeiro,
Para suas viagens ao Rio de Janeiro,
Deixo como herança
O comprismo do Ribeiro (Lins).  

- Ao amigo João Teotônio,
Tem um roçado de criação,
Deixo-lhe como herança
A bodega de Merquião.

- Ao meu filho Olinto Gominho,
Toupeiro feliz e (ilegível)
Deixo-lhe como herança
A (ilegível) espada do barão.

- Ao meu filho (ilegível)
Que tem sonho de rapazinho,
Deixo para seu noivado
A jovem Maria Dedinho.

- Deixo para Fausto (ilegível), meu velho sócio,
A pazinha de Cícero Rosa,
O andar de José Aprígio
E as barbas de seu Façanha.

- Deixo para Gedeão a paulificança
Do velho Gilu, a tabela lyra de
Balduíno e a ossada de Gazaió (sic).

- Deixo para Siato a careca de Gercino,
A língua de José Grande e os beiços
De Manoel Cornélio.

- Deixo para Ancilon Ferraz
As mentiras de João de Deus,
A venta do Padre (Antônio Duarte)
E o espinhaço de Arlindo.

- Deixo a Olímpio Nunes
O bucho de seu Candinho,
O buchinho de Maria Teresa,
A ligeireza de Quinzinho
E a ferida de João Rodrigues.

- Deixo para o padre Antônio
A corcunda de Dei
E a perna de Floro (Menezes).

- Deixo para Argemiro
As economias de José Fortuna,
A cachaça de José Reis
E a doença de João Cassiano.

- Deixo para o sargento Pópulo (Goyanna),
Por ser da gema dos riacheiros,
A perna de Antônio Ivo
E o remelexo de Apolinária.

- Deixo para Cícero Padeiro
O grude de Manoel Sacão
Para fazer pão
E um saco de gago intalado (sic).

- Deixo para João Jota 
O mancebo de Celeste
A ferida de Joana Tamba
E a doença de Joaquim Pezão.

- Deixo a José Aprígio 
O olho de Batula
As feridas de Manoel Avelino
O prato de Manoel Sacão 
E o bracinho de Antônia Trajano.
   
- Deixo para o amigo Joaquim Cícero (de Barros),
Secretário da Prefeitura,
Meu caixão cheio de livro
Que deixei no monturo.
 
- Ao amigo velho Gilu,
Que tem vontade de casamento,
Deixo como herança
Uma juda (sic) de pimenta.
 
- Ao amigo Fulgêncio Novaes
Que tem inteligência de jumento,
Deixo como herança
Minha boca sem dente.

- Deixo ao amigo Goyanninha
As cadeiras de Maria Valéria
E a farmácia do velho Cirilo.
 
- Ao amigo Dr. André (Sampaio),
Como homem de inteligência, 
Deixo como herança
Uma faculdade sem ciência.
 
- Deixo ao meu filho Afonsinho Ferraz Filho,
Por ser um poeta de água doce,
Deixo-lhe como herança o olho fotó de Zé Belo
E uma bufa de José Cristino.

- Ao meu pai Quinca Lopes (genro de Cazé)
Dono do sítio Boqueirão,
Pai de Sálvio Torres, militar valentão,
Deixo como herança
A ceroula de Manoel Bocão.

- Ao futuro genro de Argemiro,
Que dizem ser José Leal,
Deixo como herança
As queixadas de Juvenal (barbeiro).

- Ao amigo Ernesto Nino, buchudão,
Deixo como herança
As queixadas de Manoel Merquião.

- Deixo ao amigo João Barbosa,
Comerciante de mangaio,
Um freio de amansar gato
E um fundo de balaio.

- Ao amigo João Josa (sogro de José Velhinho),
Que tem um olho fotó,
Deixo como herança
O cabo da minha enxó.

- Ao amigo Quinzinho (pai de Iracema Menezes Leal),
Comedor de Jacaré,
Deixo como herança
Os beiços do meu caburé.

- Ao meu filho Manoel Quinzinho,
Por ser um rapaz aluado,
Deixo de presente minha ceroula em mal estado.
 
E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deixo como encerrado este meu testamento. 
Vou-me embora para onde está Maria Delfina e vou me esconder nas barbas de seu Façanha. 
35 e 38 de fevereiro do ano de 1300.”


  

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