por Honório de Medeiros
Então um preciso tiro de fuzil ecoou no final de tarde nublado do dia 13 de junho de 1927, e, aproximadamente cem metros além, atingiu o meio-da-testa de um caboclo puxado para o negro aparamentado com a indumentária típica do cangaceiro, prostando-o na terra nua, de barriga para cima, a contemplar com olhos fixos e vazios o céu acima, ali onde a Avenida Rio Branco cruza a Rua Alfredo Fernandes, bem onde, na quina, fica a famosa Igreja de São Vicente cuja efígie, do seu nicho decenal, tudo contemplava.
Manoel Duarte |
Calmamente, mirou e aguardou. Pressentindo o perigo iminente o feroz bandoleiro ergueu o tronco elevando os olhos até o telhado fatídico da casa cuja frente fora tomada por fardos de algodão prensados. Foi apenas um momento, mas foi fatal. Outro tiro de fuzil ecoou e, no mesmo local onde seu companheiro jazia sem vida mais um cangaceiro foi atingido. O violento impacto da bala derrubara-o momentaneamente e desenhara, em seu tórax, uma rosa de sangue. Começou a debandada. Enquanto os resistentes começavam a perceber que a ameaça fora sustada e o recuo dos cangaceiros era generalizado, o atirador recolhia o fuzil e fitava a cidade no prumo que tinha a Igreja de Nossa Senhora da Conceição como limite.
Olhava e pensava. Ele tinha morto um cangaceiro e ferido mortalmente outro. Não havia dúvida quanto à importância desse fato para a vitória. Mas cangaceiros são vingativos, cangaceiros são ferozes, cangaceiros são cruéis. Cangaceiros são dissimulados e não esquecem nunca, matutava ele com seus botões. Se ele aceitasse passivamente as homenagens que lhe seriam tributadas a partir daquele momento tudo poderia, no futuro, desandar no gosto amargo causado pela retaliação de algum anônimo, talvez até mesmo em algum parente, como era prática comum na vida cangaceira.
Não que fosse medroso. Ao contrário. Todos quantos lhe conheciam podiam atestar sua coragem e perícia com as armas, que já ficavam lendárias. Mas era melhor precaver-se. Era melhor silenciar. Não seria o caso de negar veementemente, por que não era homem para esse tipo de extroversão. Mas ia silenciar. Não ia comentar nada. O que estava feito estava feito e era de acordo com seu temperamento reservado. Se lhe perguntassem, mudaria de assunto. Se comentassem de alguma roda da qual estivesse fazendo parte, sairia de mansinho. Guardaria a verdade consigo e a contaria apenas para alguns escolhidos, por muito e muito tempo. Até que...
Até que naquele dia banal, sozinho com seu neto de dez anos de idade, sentiu vontade de contar aquilo que nunca contara a ninguém. Era uma necessidade da alma, um anseio de perpetuar um feito honroso, um gesto de heroísmo que o mostrava tão diferente daqueles que tinham fugido em direção ao mar quando os cangaceiros ciscavam nas portas de Mossoró, um gesto que lhe orgulhava por que defendera sua família e sua cidade a um custo alto, que era o de tirar a vida de alguém. Olhou para o neto e compreendeu que ali estava o interlocutor perfeito. Não questionaria, não interromperia, não esqueceria. Guardaria a lembrança do dia e do relato. Assim sendo começou a contar-lhe todo o episódio, detalhe por detalhe.
O neto apenas olhava intensamente e sentia que estava sendo transmitido, para ele, algo muito importante e que somente no futuro seria plenamente entendido. Acalmou sua inquietude de menino. Não desgrudou o olho do seu avô, aquele homem reservado e pouco propenso a confidências. No final, quando toda a história havia sido contada, compreendeu que devia guardá-la consigo, até mesmo esquecida, por muito tempo. Guardada até que...
Até que em um final de tarde tipicamente mossoroense, de muito calor, em um café, o neto aproximou-se de uma roda de estudiosos do cangaço e percebeu que discutiam a participação do seu avô na invasão da cidade pelo bando de Lampião. Uns diziam que havia sido ele o autor dos disparos. Outros negavam e apontavam nomes. Quase oitenta anos haviam passado do episódio.
O neto, agora, era cinquentão. Sentiu que ali estava o momento certo para contar a história, a sua história, a história do seu avô. Aquela plateia saberia ouvi-lo e entenderia plenamente as razões do silêncio da família. Contou tudo. Fechou-se o ciclo. Dezenas de anos depois já não há mais dúvidas. O atirador postado no alto da casa de Rodolfo Fernandes, o homem que praticamente abortara a invasão lampiônica, o herói entre heróis fora Manoel Duarte. Essa é a verdade, como o sabe sua família e a contou seu neto, Carlos Duarte, jornalista, muitos anos depois, a mim, a Kydelmir Dantas e Paulo de Medeiros Gastão, estes últimos dirigentes da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC.
É verdade, dou fé.
Beba no: Açude do Honório
4 comentários:
Querido amigo Honório,
Postagem simplesmente fantástica, incrível ter a visão por uma outra ótica de epísódio tão marcante.
Estimado amigo, apenas uma dúvida, a data correta não seria 13 de junho?
Abraço fraterno
Severo.
Prezado Severo:
Me adianto ao ilustre amigo Honório Medeiros e confirmo a data de 13 DE JUNHO DE 1927. Deve ter sido um mero erro de digitação.
Sobre esse fato, eu não tinha dúvidas. Só não entendo porque Manuel Duarte só autorizou a divulgação - se é que alguma vez tenha falado nessa 'autorização' - tantos anos depois do seu falecimento.
Em Mossoró isso já era fato notório para muita gente. Notório e pétreo!
Abraço a todos!
Sérgio.'.
A correção foi efetuada, tratou-se realmente de um lapso de digitação, comum entre nossos "HDS CANGACEIRÓLOGOS"
obrigado aos senhores que postaram acima.
Eu sempre entendi que a tentativa de invasão a Mossoró serviu como divisor de águas da vida errante de Virgolino, ou seja, pode-se dividir a saga do cego em antes e depois de Mossoró, que culminou com sua ida para a Bahia.Interessante perceber que há fatos na história do cangaço que são pacíficos, como esta narrativa da morte de Colchete e a lesão de Jararaca.No entanto, há tantos episódios obscuros empregnados de mitos e lendas e que são sustentados por textos que menosprezam nossa inteligência de leitor crítico.
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