Cangaceiros, de José Lins do Rego
por Braulio Tavares
É um romance que enxerga o cangaço pelo lado de fora, ou em volta dele. Em vez de descrever o dia-a-dia dos cangaceiros, seus combates, suas fugas, prefere contar a vida das pessoas que são parentes ou amigas dos cangaceiros, que pensam neles o tempo todo, que os temem, que os protegem, que torcem por eles ou contra eles. A toda hora chegam-lhes relatos das façanhas e das crueldades praticadas tanto pelos cangaceiros quanto pelas volantes de soldados que os perseguem.
A trama acompanha Bento, irmão do cangaceiro Aparício. Através dele, na fazenda onde que se refugia, ficamos vendo a quantidade enorme de boatos, de lendas, de informações falsas e de histórias mal contadas que cercam a atividade desses indivíduos, num Sertão da década de 1920, carente de comunicações e de estradas.
A literatura de Zé Lins desenvolveu um monólogo interior com feição própria, extensos parágrafos que se expandem por páginas e mais páginas, nos quais ele acompanha as idas e vindas do pensamento do personagem, seus avanços e recuos, suas decisões, hesitações, suas intermináveis discussões íntimas nos momentos de ameaça ou de crise. Como Zé Lins usa um vocabulário claro e direto, o leitor acompanha sem muito esforço essas reviravoltas mentais sem perceber o labirinto de idéias em que está se metendo.
O livro, que aliás é uma continuação direta de “Pedra Bonita”, formando com ele uma unidade sem cesura, mostra um enorme entendimento do autor da mecânica social do ambiente que descreve, e uma grande familiaridade com usos e costumes, resultado de uma memória vívida, de um ouvido infalível. Isto lhe permite criar personagens de peso como os três irmãos Vieira: o cangaceiro Aparício, o pacífico Bento, e Domício, o poeta cantador que acaba enveredando pelo cangaço.
Mas os dois grandes personagens do livro são para mim os dois neuróticos. O primeiro é o Capitão Custódio, desmoralizado pela vergonha de ter visto seu filho ser morto pelo Coronel Cazuza Leutério e nada ter feito para vingá-lo. O código de honra do Sertão da época não admitia que um pai não vingasse o assassinato do filho, e o Capitão remói sua culpa e sua humilhação em todas as cenas em que aparece. O outro personagem é o Mestre Jerônimo, que foi embora do Brejo por ter cometido um crime de morte, não gosta do Sertão, e vai pouco a pouco entrando num delírio paranóico equivalente ao do Capitão Custódio.
São dois personagens trágicos, que mostram o remoer de angústias e ansiedades que existe às vezes por trás da fisionomia impenetrável do sertanejo. Numa interiorização progressiva de culpas, ressentimentos, humilhações e medos, os dois vão sendo consumidos de dentro para fora diante dos nossos olhos. Quando Bento procura fugir dali, nos últimos capítulos, está fugindo ao terrível futuro que o ameaça, o de se tornar um cangaceiro como os irmãos ou um doido como os seus dois protetores mais velhos.
Artigo publicado originalmente em 12.6.2007 na sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB).
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