terça-feira, 1 de maio de 2018

Opinião


Um Lampião que escurece: a ética do bandido
Por: Matheus Almeida Lima

Lampião foi o pseudônimo de Virgulino Ferreira, um dos maiores criminosos da historiografia brasileira que, entre a década de 1920 até sua morte em 1938, submeteu o sertão nordestino à carnificina e à arbitrariedade mortal sob seu comando. 

No seu auge, mostrou-se um homem independente da sociedade a sua volta, um poder próprio superior á qualquer aparato social que ousava conter sua vontade, um ser temido, incompreensível, irrefreável e adornado por misticismo e superstição, uma verdadeira força da natureza. Contudo, como poderia um mero mortal conciliar sua humanidade com mãos tão cheias de sangue? Sob maior análise de sua vida, torna-se fascinante a dissonância entre as facetas de Virgulino, pai e católico fervoroso e ao mesmo tempo facínora assassino, e assim, mais interessante é a compreensão daquilo que ele tinha, grosseiramente, como sua ética.


Tal incongruência em suas ações é comum a vilões da mesma estirpe; todo ditador, todo assassino em massa teve seus momentos de sensibilidade, o que difere Lampião é como compartilhava sua corrupção de caráter com um bando de dezenas de pessoas próximas e fiéis a ele, e, principalmente, como não considerava suas ações nem ruins nem justificáveis para algum bem maior. 

A sua vida como criminoso não serviu ao fim lógico de vingar sua família, e sim o propósito irascível de perpetuar seu desejo de matar e saquear, sem razão porque, isto também sendo uma peculiaridade da sua situação, não havia grande proveito da sua enorme esfera de poder e dinheiro, ele continuava no meio do mato, fugindo eternamente e mal sobrevivendo, mas mantendo sua posição de estar fora do alcance das regras. 

Essa disposição ao massacre sacrificou qualquer concepção usual de alegria, o relegou a uma vida ao mesmo tempo miserável e poderosa, um dualismo nunca deixado até sua morte, mesmo em face das mais variadas intempéries. O que passava por sua mente, por exemplo, ao viajar pela caatinga no breu absoluto com um bebê, filho de um dos cangaceiros que o seguiam, amordaçado para não chorar e avisar a polícia de sua localização? Ou a andar quilômetros sob o sol escaldante, junto de sua esposa, a mulher que lhe deu uma filha e que ele amaria, após dias sem tomar banho? 

Para assistir a cenas como essa, cotidianas e corriqueiras no cangaço, e não sentir a repulsa ao horror, a vontade de agir, de abdicar de sua força e sair do cangaço para algo bom, mesmo que para o bem de si mesmo e de sua família, é estar completamente imbuído na barbárie e não constatar nada disso como ruim, é ter sua humanidade há tempos escamada e encrostada em favor de uma monstruosidade sanguinária, animalesca, que valoriza o poder e a liberdade fora da lei em prejuízo da autopreservação e da ordem, o que deixa seu norte moral diametralmente oposto à civilização.
Ainda mais, é necessário salientar a religiosidade de Lampião, um grande devoto de Padre Cícero e ligado ao misticismo católico próprio da região, e como foi lhe foi possível, em sua cabeça, manter um sentido lógico entre os epítetos de cristão e homicida em série. É óbvio o quão incongruente tal associação é; Lampião se fez tão cristão quanto o soldado romano que coroou Jesus Cristo, com o diadema de espinhos, pois a violência de ambos apenas arranha e fere uma noção contundente de cristianismo. 


Entretanto, não é nessa fé tradicional que Virgulino se baseia, é numa interpretação pessoal e adulterada da vontade de Deus sobre o mundo que ele mistura ao catolicismo e as superstições vigentes e então chama de religião.

Ele mirava sua arma num inocente e dizia que se ele acertasse a bala e o outro morresse, era legítimo por ser o que Deus queria que acontecesse, caso contrário, não teria acontecido. 

É nítido o teor cínico nessa crença, mas mais pungente ainda é a maneira indulgente que ele usava o divino para ratificar sua aniquilação sobre o Nordeste brasileiro. 

Uma visão quase insultante da fé, aproveitada para fundamentar sua sujeira moral. 

Ademais, a manutenção dessa percepção só serviu de terapia covarde para sua psique, talvez assim garantindo o silêncio de uma consciência mirrada, diminuta, e espantando qualquer arrependimento, pois era a vontade de Deus, pensava, ao cortar uma cabeça como prêmio.
 

O autor
Logo, sua figura se apequena diante do discorrido, continua a ser uma criatura fantástica, porém tem sua trajetória despida do sentido maior tão caro de admiração, pois foi em grande parte um ser extraordinário, mas sem alcançar algo duradouro. 

Foi um rebelde contra as bases da vida humana, uma causa totalmente individual e desprovida de mérito. Se fez não como um herói contra a opressão dos mais pobres, não como um Übermensch do modelo nietzschiano de moral autônoma; Foi um mísero sertanejo que se dedicou ao caos e à matança em prol de nada.

*Aluno do 3º Ano do Colégio José Augusto Vieira, de Lagarto, SE.
 


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