quinta-feira, 16 de maio de 2019

Opinião

O verdadeiro herói de Angico

O escritor e jornalista Valdemar de Souza Lima,  (Foto) natural de Palmeira dos Índios, nos deixou um dos melhores estudos sobre o cangaço. O seu livro "O Cangaceiro Lampião e o IV Mandamento", lançado em 1977, traz informações detalhadas sobre as andanças do Rei do Cangaço e seu bando pelo Nordeste.

Até no prefácio do livro, que reproduzimos abaixo, encontramos informações importantes. Nele, o autor comenta sobre quem verdadeiramente conseguiu conduzir a Polícia Militar de Alagoas a cumprir o seu papel no combate ao cangaço. Valdemar de Souza Lima relata o papel destacado que teve o comandante Teodoreto Camargo do Nascimento, um nome pouco citado quando se conta a história do cerco a Angicos.

Nas próximas postagens, vamos reproduzir capítulos do livro com outras histórias sobre o cangaço. Agradecemos antecipadamente a Hugo Lima, filho de Valdemar, que nos cedeu o exemplar do livro e autorizou a publicação.

Duas palavras

Valdemar de Souza Lima

No ano de 1936 chegou em Maceió um rapaz moreno, alto e esbelto, natural de Sergipe — era capitão do Exército e se chamava Teodoreto Camargo do Nascimento. Tinha sido convidado pelo governador de Alagoas, professor Osman Loureiro, para comandar a Policia Militar do Estado.
Teodoreto Camargo do Nascimento chegou a Maceió como tenente do Exército e assumiu o comando da Polícia Militar.

Teodoreto Camargo do Nascimento chegou a Maceió como tenente do Exército e assumiu o comando da Polícia Militar.

De pronto se ficou sabendo que o órgão de segurança a cuja frente se colocara, passava por uma série de reformas, de vez que sua preocupação não se limitava a manter ou aumentar os efetivos da milícia, mas, sobretudo, pugnar pela indispensável qualidade deles. Talvez por isso o jovem comandante não conseguiu se transformar na moeda-de-vinte-patacas, que agrada a todos. Pelo contrário, passou a ser apontado como um homem arguto como poucos e extremamente duro, a ponto de descambar às vezes para a mordacidade, como recurso para se fazer mais facilmente compreendido. E o certo é que ninguém brincou com ele.


 Atravessávamos então uma fase verdadeiramente crítica. Convencido de que era mesmo “senhor e possuidor” do Nordeste semiárido, pois realmente, não tropeçava em obstáculos maiores para pousar onde queria, Lampião convertera aquilo numa ilimitada faixa de areia movediça, onde ninguém dispunha de um mínimo de confiança para arrumar sua magra economia primária e viver com relativa tranquilidade no seio de uma sociedade, ainda que obscura, organizada.

De posse dos elementos que julgou indispensáveis para dar um balanço em tão indesejável situação e após chancelar um plano estratégico que lhe parecera satisfatório, o novo comandante da Força Pública sugeriu ao governo a criação do 2° Batalhão da Polícia, com sede em Santana do Ipanema, cujo comando seria confiado ao major José Lucena de Albuquerque Maranhão, oficial reconhecidamente destemido e afeito ao combate à desordem na zona explosiva — e era assim de esperar que a partir daí o temível bandoleiro não contasse mais com as facilidades de praxe para cometer impunemente as suas tropelias.

Infelizmente essas avaliações otimistas e que oneravam extraordinariamente o orçamento estadual, não iriam acenar na prática com os frutos desejados. Nos últimos anos de sua tumultuosa existência, Lampião jamais se mostrara tão nocivo à nossa vida; enquanto isso, ao invés de reencontros decisivas das volantes com o seu bando, as medições constantes dos boletins não passavam de meras escaramuças.

Bando de Lampião em foto de Benjamin Abrahão


O coronel Teodoreto sentiu os riscos que afetavam a sua posição — embora não parecesse perceber os que pessoalmente corria, pois, eu mesmo, que nunca sequer troquei com ele um cumprimento, vi-o, por vezes, cruzando, quase sem escolta, a zona convulsionada, sujeito a cair de um instante para outro nas malhas da “gang” sanguinária — e evidentemente não iria contemporizar com uma colocação que se chocava com o seu temperamento e formação.

Chamou, portanto, Lucena a Maceió, visando identificar o dedo misterioso que incidia sobre o contexto e levava àquele resultado deplorável. É claro que ele não punha em dúvida a lealdade e competência do seu subordinado, mas precisava descobrir a causa da frustração e eliminá-la, custasse o que custasse. Cumpria restaurar a confiança das populações massacradas pelo cangaço, nas providências do governo, em última análise o responsável pela sua segurança.

Teodoreto não abriria mão a partir de agora de ação efetiva e ajustada, sob pena de apelar para medidas drásticas — e até arbitrárias — contra aqueles que fossem apanhados violando suas determinações. José Lucena revelou, no dia imediato, em casa de seu amigo Pedro Rodrigues Gaia, em Palmeira dos Índios, que saíra do encontro tão amargurado, que rumara dali para a Catedral, a fim de orar e pedir a Deus ânimo e luzes para se safar do sério embaraço em que se via metido.

E uma vez de volta a catinga, reuniu os comandantes de volantes, passou-lhes o ocorrido, frisando que não estava ali apenas como um emissário do seu chefe para fazer-lhes uma advertência, mas, na verdade como um executor inflexível de suas novas ordens. Menos de um mês após isso, Lampião tombava em Sergipe e o seu bando se desintegrava para sempre.

O tumulto que o extraordinário episódio motivou, desencadearia uma onda de publicidade como jamais imaginamos nos nossos mundos obscuros. Tudo agora a imprensa escrita e falada queria saber a respeito das figuras que, de uma forma ou de outra, tinham contribuído para aquele resultado. O comandante da Polícia não teve, porém, encontros com repórteres, segundo penso, pois, naquele instante seus cuidados se voltavam para um assunto mais humano e cristão, que era arrebanhar e cercar das necessárias garantias pessoais os remanescentes da quadrilha que se entregavam às autoridades — dando por essa forma o primeiro passo para sua recuperação. Eles eram irmãos nossos, reduzidos à mais extrema miséria — pelo rigor do meio-ambiente, pela seca, pelo analfabetismo e outras tantas mazelas que não vale repetir. E afinal, bem poucos entre os comparsas do terrível bandoleiro, preferiram prosseguir na senda do crime.

O general Teodoreto Camargo do Nascimento já não pertence mais ao número dos vivos. Pouco importa, para mim ele permanece como o artífice máximo do feito de Angicos — e mais do que isso: o homem escolhido pelo destino para vibrar o golpe de misericórdia no banditismo militante do Nordeste brasileiro. Este livro constitui, pois, o testemunho de minha veneração à sua memória.

Brasília, Setembro de 1977.

Nenhum comentário: