sábado, 29 de fevereiro de 2020

UMA SÉRIE DE CRIMES BÁRBAROS

Transcrição Jornal do Recife, 14 de janeiro de 1926

Por Antonio Corrêa Sobrinho

O desprezo que o cangaceiro Lampião teve pela vida humana, salvo, naturalmente, a dos seus; abominável desprezo, traço forte e, portanto, característico da sua personalidade, associado aos inúmeros crimes e contravenções de toda ordem, por ele ou pelos seus comparsas praticados, constituíram-no o mais sanguinário e delituoso chefe de bandoleiros, que se tem notícia, ter existido no Brasil. Ainda que consideremos todos os excessos, inconsistências, tendenciosidades, politização, ideologização, inverdades, do produzido na imprensa nacional a respeito deste líder de cangaceiros.

Ainda que consideremos a Violência como parte integrante da dinâmica das sociedades, maiormente, por exemplo, da brasileira, quer seja a permitida, quer seja a não permitida, praticada indistintamente em todas as classes e seguimentos sociais. Lampião sempre carregará a mecha indelével da hedionda criminalidade.




E se a este Lampião que vislumbro (porque ele jamais será plenamente visto), acrescermos o ostentoso, forte e incisivo desrespeito que ele, na sua vida cangaceira, dispensou como prática, às forças policiais e demais órgãos de controle social, podemos concluir, afirmando ter sido este Virgulino Ferreira da Silva, o “Rei do Cangaço”, o civil que mais diretamente afrontou o Estado brasileiro.

Daí o fascínio que este  nordestino do Pajeú ainda causa, cuja difícil tradução e interpretação, inserido que está ele num complexo fenômeno, fazemos, antes, primeiro, quase sempre de forma intuitiva e inconsciente, de compreensão, de amor ou de ódio, nos termos do processo cognitivo de que trata a heurística.

Ilustro o acima dito com a matéria abaixo, do Jornal do Recife, de 14 de janeiro de 1926, que reproduz suposta carta dando notícia de crimes praticados por Lampião no sertão pernambucano, como a emissão de carta precatória exigindo dinheiro dos sertanejos, tudo isso dias antes de ele estar com o padre Cícero Romão, em Juazeiro.
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AS PROEZAS DE LAMPIÃO
UMA SÉRIE DE CRIMES BÁRBAROS

Remetem-nos:

"Senhores redatores do Jornal de Recife.

A presente que lhes dirigimos é também com vistas ao Dr. Sérgio Loreto e ao doutor chefe de polícia, a cujas supremas autoridades do Estado imploramos justiça.

Pois é sob o véu das mais tristes apreensões que rascunhamos estas linhas neste momento.


Senhores redatores, vós que tendes sido sempre pelo vosso conceituado “Órgão” verdadeiros paladinos dos direitos dos oprimidos, fazei ecoar aos quatro ventos os horrores, que há muito tempo vem sofrendo os sertanejos deste Estado, pelas hostes malditas do famigerado Lampião. E é tal o desânimo que já nos domina, e tão grande desilusão impera em nossas convicções, de uma reação positiva por parte do governo, contra as inúmeras e sinistras depredações praticadas por essa Hiena-humana, a dois passos das autoridades, que já nos consideramos impotentes para defendermos nossos bens e nossas famílias desse abismo voraz que, qual tempestade fatal, vem devorando na sinistra passagem, nossos irmãos e nossos haveres.

Para vos dar uma ideia (ainda que pálida) das cenas canibalescas que tem servido de teatro esta desventurada região sertaneja, queiram nos ouvir, sobre o que se passou há quatro dias, muito perto destes que lhes dirigem esta: Entre o povoado de Betânia, do município de Floresta, e a fazenda S. Rita de propriedade do coronel Numeriano, foram assassinados a punhais dois pobres homens indefesos, pela horda sanguinária de Lampião. Daí seguiu o ignóbil celerado acompanhado de sua trupe em direção à referida fazenda, onde chegaram em número de dezoito: dirigiram-se à única casa ali existente e pediram à dona da mesma, que lhes desse o que comer, no que foram prontamente atendidos; pois a pobre senhora, amedrontada, matou um bode e preparou-lhes um banquete onde se fartaram.

Depois de longo repouso, por espaço de 5 horas, seguiram em demanda a Geritacó, (...) povoado do município de Alagoa de Baixo. Em caminho, e no mesmo dia, encontraram-se com um rapaz – ex-soldado da polícia pernambucana, o qual como soldado, já havia tomado parte em algumas expedições decretadas pelo governo, em perseguição do bandido. Este, porém ou alguns dos seus companheiros logo o reconheceram e sem a menor hesitação assassinaram-no bárbara e friamente a golpe de punhais.

Consumado o horrendo crime, marcharam para Geritacó.

Ali chegando pediram um caminhão onde fizeram transportar o cadáver do infeliz ex-praça para aquele povoado.

Nesse interim passava por ali um sacerdote em viagem, a quem Lampião intimou que fizesse a encomendação do corpo... Isto feito, num indiferentíssimo abominável, o celerado mandou tocar “sinal” e dar sepultura ao cadáver... Depois, disse cinicamente para as pessoas que o assistiam: “Agora sim... ele é meu amigo!”

Imaginem senhores redatores que de Geritacó para Rio Branco, distam apenas 14 léguas; 8 para Custódia e 11 para Alagoa de Baixo – lugares estes onde deviam permanecer de prontidão, destacamentos suficientes para agir num momento como este que Lampião vitoriosamente, acaba de estabelecer “seu quartel general” em Geritacó, donde distribui como está distribuindo cartas-precatórias a todos os cidadãos, não só daquelas circunvizinhas, como até a pessoas que moram 10 e mais léguas afastadas, intimando-lhes a lhe remeterem quantias vultosas, muitas vezes superiores a todos os bens do cidadão a quem ele se dirige.

E ali fica desassombradamente dias e dias, aguardando a volta de seus “emissários”.
Enquanto estas operações se realizam o intemerato Lampião com seus “apaniguados” matam boi, carneiro, bode, etc. e banqueteiam-se tranquilamente pachorrentamente. Agora, senhores redatores, perguntamos nós desventurados sertanejos que para nos mantermos onde tudo de que precisamos para nossa manutenção, nos chega mais caro do que para outros, “os felizardos” que habitam à margem das Estradas de Ferro, nós que com o árduo labor de nossa família, com nossos esforços morejantes contribuímos, mais do que nossos rendimentos permitem para pagamento de impostos fantásticos... A que temos direito?



Em Pernambuco, atualmente, é a zona sertaneja, a que mais contribui, relativamente, para os cofres do Estado. E isto facilmente provável, não só pela ótima adaptação de nossas terras para toda cultura e criação como também pelos inexcedíveis esforços dos sertanejos que têm como único entretenimento e diversão – o trabalho.

Ora, senhores redatores, é simplesmente deplorável um tal estado de cousas!

Em Alagoa de Baixo se acha atualmente o tenente Aurélio; mas pensamos que em missão diplomática e não revestido do cargo policial qual lhe confere sua “patente”.

(a) DIVERSOS SERTANEJOS
(b) 31 – 12 – 1925”

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