Marcosde
religiosidade no caminhode Lampião no Rio Grande do Norte
Em 2010, em alternadas viagens, estive percorrendo pela primeira os
cenários da passagem do bando de Lampião no oeste potiguar, fato que
ocorreu entre os dias 10 e 14 de junho de 1927.
Segui principalmente por áreas rurais desde a cidade
de Luís Gomes, tendo como ponto focal Mossoró e finalizando em Baraúna.
Percorri esse caminho originalmente palmilhado por estes cangaceiros
como parte de uma consultoria que prestei ao SEBRAE, no âmbito do projeto Território Sertão do Apodi – Nas Pegadas de Lampião. Parte desse trajeto, que também focava em questões da espeleologia da região, percorri junto com Sólon Almeida.
Para
traçar essa rota, além das obras escritas sobre a história da passagem do bando
de Lampião pelo Rio Grande de Norte, fiz uso de materiais históricos existentes
nos arquivos do Rio Grande do Norte, Paraíba e de Pernambuco e a bibliografia
existente, com destaque ao livro do amigo Sérgio Augusto de Souza Dantas, autor
de Lampião
e a grande Jornada – A história da grande jornada.
Foram
percorridos muitos quilômetros, onde visitamos vários sítios, fazendas, comunidades e cidades.
Foram entrevistadas123 pessoas e obtidas mais de 2.000 fotos. Em
grande parte deste trajeto, a motocicleta se mostrou um aliado muito mais
eficiente para se alcançar estes distantes locais.
Um dos
fatos mais interessantes foi o surgimento de marcos de religiosidades ligados
aqueles dias tumultuosos de 1927.
Cruzeiros
marcando locais de acontecimentos intensos, capelas edificadas como promessas
pela salvação de pessoas ante a passagem dos cangaceiros, o caso da utilização
de uma igreja por parte dos cangaceiros. Além desses fatos temos a controversa
situação envolvendo o túmulo do cangaceiro Jararaca na cidade de Mossoró.
Ao longo dos anos eu tive a grata oportunidade de realizar esse
caminho em quatro outras ocasiões, sendo o mais importante em 2015, para
a realização de um documentário de longa metragem denominado Chapéu Estrelado, dirigido pelo mineiro radicado no Rio de Janeiro Silvio Coutinho e produção executiva de Iapery Araújo.
Esses
foram os locais mais interessantes ligados a esse tema e seus respectivos municípios.
MARCELINO VIEIRA
A área
próxima à sede do atual município de Marcelino Vieira é repleta de lembranças e
marcos que mantém vivo na memória da população local os fatos ocorridos naquela
longínqua sexta-feira, 10 de junho de 1927.
Cruz em homenagem ao soldado Matos.
Sítio Caiçara e a “Missa do Soldado” – Nesse local ocorreu um combate onde morreram o soldado José Monteiro de Matos e o cangaceiro Patrício de Souza, o Azulão.
Percebemos nitidamente que para as pessoas que habitam a região, os
fatos mais marcantes em termos de memória estão relacionados ao combate
conhecido como “Fogo da Caiçara” e a valente postura do soldado José
Monteiro de Matos. Não foi surpresa que membros da comunidade local, no
dia 10 de junho de 1928, apenas um ano após o combate na região da
Caiçara, decidissem realizar, uma missa em honra a memória do valente
militar.
Igrejinha onde é rezada a “Missa do Soldado”.
Segundo pessoas da comunidade do Junco, as margens do açude da
Caiçara, de forma espontânea e apoiadas pelas lideranças locais, os mais
antigos moradores deram início a um ato religioso. No começo ele
ocorria no mesmo ponto onde se desenrolou o combate. Segundo pessoas
entrevistadas na região, o evento sempre atraiu um número considerável
de pessoas, passando a ser conhecida como “A Missa do soldado”. Com o
passar do tempo à missa transformando-se em uma das mais importantes
tradições religiosas de Marcelino Vieira.
ANTÔNIO MARTINS– ZONA RURAL
Fazenda Caricé – a fazenda Caricé estava no roteiro
de destruição dos cangaceiros. Caminho lógico para quem seguia em
direção norte, no caminho a Mossoró, a fazenda pertencia ao pecuarista
Marcelino Vieira da Costa. Este era um paraibano que prosperou com a
criação de gado e tornou-se tradicional líder político. Faleceu em
dezembro de 1938 e seu nome batiza atualmente a cidade onde decidiu
viver.
Capela
em honra a Jesus, Maria e José, no sítio Caricé, erguida como promessa
pela salvação da família do Coronel Marcelino Vieira das garras do
bando de cangaceiros de Lampião
Ao saber
da aproximação do bando do cangaceiro Lampião, o fazendeiro Marcelino Vieira decidiu
dormir em uma área onde existia um canavial, próximo ao açude da fazenda. A
chegada do grupo, insuflados por supostas contas a acertar do temível
cangaceiro Massilon Leite com a família Vieira, produziu um saque que resultou
em um prejuízo no valor de um conto e duzentos mil réis. Os celerados deixaram
o lugar antes do meio-dia.
Da velha sede da fazenda Caricé nada mais resta, mas por lá encontramos uma pequena capela.
Interior da capelinha.
Quando a família Vieira e seus empregados estavam no canavial, em
dado momento alguns cangaceiros chegaram a se aproximar do esconderijo.
Diante do que poderia acontecer, com muito medo, a filha do fazendeiro,
rogou intensamente aos céus que os bandoleiros se afastassem.
Vista noturna da capela do Caricé.
Caso isto se concretizasse, ela e sua família tratariam de erguer uma
ermida em honra ao poder de Jesus, Maria e José. Pouco tempo as imagens
foram adquiridas ainda em 1927, tendo sido trazidas da Bahia e que a
primeira missa rezada no local foi verdadeiramente suntuosa. O templo
já apresenta sinais de abandono, com algumas telhas caindo, mas a
estrutura ainda se mantém em grande parte firme.
Serra da Veneza.
Capelinha da Serra da Veneza – Uma interessante situação relativa
à memória da passagem do bando nessa região ocorreu na região da Serra da
Veneza, na fronteira de Antônio Martins com o vizinho município de Pilões.
Nessa elevação granítica, que segundo o mapa da SUDENE chega a atingir a
altitude de 555 metros, existe uma capela edificada em razão do medo provocado
pela passagem do bando.
Quando Lampião e seu bando se aproximavam, em meio às terríveis
notícias, três fazendeiros da região procuraram refúgio junto às rochas
da base desta elevação. Essas famílias solicitaram junto ao mesmo santo,
São Sebastião, que os protegessem contra a ação dos cangaceiros. E o
mais interessante, mesmo sem se combinarem, as três famílias elegeram a
mesma penitência; caso nada de negativo ocorresse a eles e as suas
famílias, cada um deles teria de galgar a Serra da Veneza, erguer um
oratório e ali depositar uma imagem em honra ao santo.
Capelinha da Serra da Veneza.
Lampião passou
sem acontecer problemas a essas pessoas. Logo os fazendeiros e seus familiares
foram a Vila de Boa Esperança, como muitos moradores da região, para agradecer
na capela de Santo Antônio pelo fato de nada de pior haver ocorrido. Nesse
local as três famílias se encontraram e ao debaterem sobre os fatos vividos,
para surpresa de todos os presentes, compreenderam que havia ocorrido uma
interseção divina com relação a eles terem tido as mesmas ideias e os mesmos
pensamentos de penitência. Em pouco tempo eles adquiriam conjuntamente uma
pequena imagem de São Sebastião e logo galgavam a Serra da Veneza para unidos
edificarem um pequeno oratório. A ação dos três fazendeiros e as estranhas
coincidências chamaram a atenção das pessoas na região e logo outros penitentes
subiam a serra para pagar promessas. Em pouco tempo teve início uma procissão e
não demorou muito para que o pároco local também viesse participar. Com o
passar do tempo começou a ocorrer a participação de pessoas de outros
municípios. Em 1948, vinte e um anos após a passagem do bando e do pretenso
milagre, treze famílias deram início a construção da atual capela, em meio a
uma intensa confraternização.
A cada dia 20 de janeiro, inúmeros ex-votos são colocados como
pagamento de promessas, velas são acesas e fiéis de vários municípios
vêm participar subindo a serra.
ANTÔNIO MARTINS- ZONA URBANA
Cangaceiros na Capela de Santo Antônio – O período
da chegada dos cangaceiros, no dia 11 de junho de 1927, na então pequena
comunidade de Boa Esperança, atual Antônio Martins, coincidiu com as
celebrações da festa de Santo Antônio, o padroeiro local. De certa
maneira essa situação de comemoração e alegria do povo, serviram para a
rápida ocupação do lugarejo e a sua total capitulação diante da
cavalaria de cangaceiros.
A capela
de Santo Antônio era o principal local em Boa Esperança para realização dos
festejos relativos ao padroeiro local. Nessa festa é tradicional a realização
das chamadas “trezenas”, onde durante treze dias anteriores ao dia 13 de junho,
a data consagrada a Santo Antônio, ininterruptamente são realizadas missas,
orações de grupos de pessoas com terços nas mãos, cantos de benditos, encontros
e outras participações da comunidade neste templo cristão. Quando o bando
chegou, haviam algumas pessoas reunidas no local e um grupo de cangaceiros,
visivelmente embriagados, proibiu a saída dos fiéis do local. Essas pessoas
assistiram horrorizadas de dentro da capela o suplício de um habitante local, o
jovem Vicente Lira, que apunhalado e sangrando abundantemente, era obrigado a
engolir talagadas de cachaça. Mesmo em meio a essa cena de terror, diante da
igreja aberta e engalanada, soubemos que alguns cangaceiros adentraram o local,
se ajoelharam, se benzeram e saíram sem perturbar os atônitos presentes. Na
saída soltaram Vicente Lira.
Durante
todo nosso percurso, esta foi a única informação de que alguns cangaceiros do
bando de Lampião, teriam adentrado um templo religioso católico em todo Rio
Grande do Norte.
LUCRÉCIA
Fazenda Castelo.
Capela da Fazenda Castelo – Após a saída de
Frutuosos Gomes, na zona urbana do município de Lucrécia, as margens da
RN-072, soubemos que o bando realizou a invasão da fazenda Castelo,
propriedade tida como a mais importante da antiga localidade. No terreno
ao lado da sede da fazenda Castelo se encontra uma bem preservada
capelinha dedicada a Nossa Senhora da Guia. Entretanto, ao buscarmos
contato com as pessoas mais idosas em busca da história da capela, não
foi possível um esclarecimento mais exato sobre quem a construiu e se
essa construção tem alguma relação com a passagem do bando de Lampião,
como no caso da ermida da fazenda Caricé. Houve pessoas que indicaram
que a construção foi consequência de uma promessa pela salvação dos
proprietários locais junto a passagem dos cangaceiros, outros indicaram
que ela seria anterior a 1927 e outros apontaram que ela seria posterior
a essa data.
Capela da fazenda Castelo, Lucrécia, Rio Grande do Norte.
Foi
perceptível a necessidade de ampliar as pesquisas sobre o local.
A Cruz dos Canelas – Depois de passarem por
Lucrécia, os cangaceiros atacaram uma propriedade rural e sequestraram
um fazendeiro bastante conhecido e querido na região. A notícia se
espalhou entre vários parentes e amigos e logo um grupo decide com
extrema coragem sair em busca do povoado de Gavião, atual cidade de
Umarizal, onde pudessem levantar a quantia estipulada por Lampião para
soltar o popular fazendeiro.
Sítio Serrota dos Leites, de onde foi sequestrado o fazendeiro Egídio Dias.
O grupo
era pequeno, com um número que aparentemente chega a quatorze e só quatro
deles, membros de uma família conhecido como “Canelas”, eram os únicos que os
pesquisadores do assunto apontam como possuidores de armas de fogo com alguma
potência. Esse grupo conhecia os caminhos e provavelmente confiaram no fato de
ser período de lua cheia. Onde essa condição facilitaria o trajeto.
Enquanto se desenrolava esta situação, na região do sítio Caboré,
cansados pelo deslocamento, esgotado pelas ações e pelo consumo de
bebidas, o bando de cangaceiros decidiu descansar nas terras do Caboré.
Por volta das três da manhã o grupo de amigos chegou ao Caboré em busca
de informações. Não sabiam que um cangaceiro, facilitado pelo luar,
vigiava os movimentos do grupo. No local conhecido como “Serrote da
Jurema” foi armada uma emboscada pelo bando de experientes combatentes.
Logo abriram fogo contra a incipiente tropa e três deles tombaram e o
resto fugiu em franca debandada. Segundo os laudos cadavéricos a
vingança do bando de Lampião nos corpos dos amigos do fazendeiro
sequestrado foi terrível.
Cruz dos Três Heróis, ou Cruz dos Canelas.
Apesar de
todo empenho em buscar ajudar o amigo detido, o que o grupo de resgate não
sabia era que a sua ação era totalmente inútil. Algum tempo antes, no bivaque
armado pelos bandidos, em meio ao cansaço generalizado da tropa de Lampião, o
sequestrado conseguiu fugir para o meio do mato.
Atualmente,
as margens da rodovia estadual RN-072, na comunidade Caboré, se encontra uma
cruz conhecido como “A cruz dos três heróis”, aonde o povo de Lucrécia e da
região vêm homenagear àqueles que agora são conhecidos apenas como “Os Canelas”,
ou os “Heróis de Caboré”. No local muitos rezam e pagam promessas e acendem
velas em honra desses homens.
MOSSORÓ
Caso da Igreja de São Vicente de
Paula e a questão do túmulo do Cangaceiro Jararaca.
A notícia de que Lampião avançava na direção de Mossoró chegou aos
ouvidos dos moradores de Mossoró em abril de 1927. À época, a Capital do
Oeste Potiguar, como seus habitantes ainda gostam de intitulá-la, já
era um dos municípios mais importantes do interior nordestino. Com 20
mil habitantes, localizada no meio do caminho entre duas capitais –
Natal e Fortaleza –, em nada se assemelhava às pequenas cidades onde
Lampião e seu bando atacava e saqueava o comércio.
Igreja de São Vicente de Paula, em Mossoró.
No dia 13 de junho de 1927, após dizer não
a Lampião, que cobrou 400 contos de reis (em moeda da época
400 milhões de reis – atualmente uns 20 milhões de reais) para não
invadir a cidade, começava um tiroteio entre moradores da cidade e os
cangaceiros. A igreja de São Vicente de Paula foi o local principal da
resistência. Lampião costumava dizer que “cidade com mais de uma
torre de igreja não é lugar para cangaceiro”. Não se tratava de superstição,
mas de raciocínio lógico – municípios com tal característica eram maiores e,
portanto, mais difíceis de dominar. Os ocupantes das trincheiras no alto da
Igreja de São Vicente e da casa do intendente tinham visão privilegiada do
avanço das tropas. Tão logo o grupo surgiu no horizonte, iniciaram-se os
disparos. Os cangaceiros, acostumados a desfilar nos povoados sem serem
incomodados, foram surpreendidos.
Findando com a expulsão dos cangaceiros, a morte de alguns deles e a
prisão do temível José Leite de Santana, vulgo Jararaca, enterrado vivo
no cemitério da cidade, após cavar sua própria cova.
Túmulo do cangaceiro Jararaca.
A Jararaca é atribuída todas as crueldades. A mais famosa consistia
em arremessar crianças para o alto e apará-las com a ponta do punhal.
Trespassados pela lâmina, garotinhos leves o bastante para serem lançados na
direção do sol morriam lenta e dolorosamente, em meio aos gritos dos pais – e
às gargalhadas do cangaceiro.
O interessante é que hoje é visto como santo pelo povo, devido a
crueldade com que foi morto. Recebendo o seu túmulo visita de milhares
de pessoas em dias de finado e ao longo de todo ano. Na verdade mais
prestigiado que o túmulo de muitos políticos famosos da cidade,
enterrados no mesmo cemitério e esquecidos de todos. Mostrando que nem
sempre o séquito que em vida rodeia os poderosos permanece uma vez
morto. Ironicamente ao contrário do cangaceiro.
Túmulo de Rodolfo Fernandes.
O famoso chefe cangaceiro deveria ter pensado duas vezes
antes de tentar invadir e ser expulso de forma humilhante, assim historicamente
a cidade ligou seu nome ao famoso personagem Virgulino Ferreira da Silva, o
Lampião. Anualmente, em frente à igreja que funcionou como
trincheira é encenada um musical chamado: Chuva de bala no país de Mossoró, que
remonta todo o fato histórico e mantém viva a memória.
Os heróis da resistência de Mossoró, de toda forma foram
bravos sim!
Mas por que o santificado é um cangaceiro e não um dos
resistentes?
Por que não santificaram o prefeito de Mossoró que liderou a
resistência? Por que as fotos dos heróis da resistência são tão
pequenas e a dos cangaceiros estão expostos em painéis enormes? Parece
até que o povo de Mossoró não se identificou muito com os heróis da
resistência!
Memorial da Resistência.
A história por trás do túmulo de Jararaca se confunde muito
com o misticismo, com a conduta cultural de um povo. Jararaca apenas foi
consagrado, por conta de sua bravura. O povo sempre busca o menor para
enaltecê-lo. É perceptível essa situação no próprio cemitério, quando o túmulo
de Rodolfo Fernandes não recebe o mesmo número de visitas correspondentes ao
túmulo onde está Jararaca.
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