quinta-feira, 1 de maio de 2025

Resenha: Maria e o Cangaço

Entretenimento sim, História, não!

Por Junior Almeida

Foto: Divulgação

Em exibição no streaming Disney Plus desde 4 de abril (de 2025) a série “Maria e o Cangaço”, que tem seu enredo baseado no livro da escritora Adriana Negreiros, “Maria Bonita, Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço”, publicado em 2018. A obra cinematográfica da produtora norte americana, evidentemente, despertou a curiosidade de milhares de cinéfilos, além dos muitos pesquisadores do cangaço. Como historiador que se dedica a cascavilhar a sangrenta saga nordestina, assim como demais colegas, também me interessei em assistir aos seis primeiros capítulos da temporada de estreia, decidindo, assim que o fizesse, tecer alguns comentários a respeito da referida produção. Deixando claro que além de ver o trailer da própria série, praticamente não li nada a respeito sobre a obra, um ou outro anúncio, ou chamada de matérias, isso, para não me deixar influenciar pela opinião dos outros. Pela compreensão de tudo que vi no filme e consegui entender, respeitando sempre quem pensa diferente, vamos às MINHAS observações:

A fotografia do filme é impecável. Os cenários naturais, destacados pelas imagens aéreas de drones são belíssimos. As imagens da Baixa do Chico, em Glória, na Bahia, com seus majestosos cânions secos, são uma atração à parte da película. As terras da árida Cabaceiras, na Paraíba e Piranhas, em Alagoas, ambos municípios sertanejos, também foram usadas nas locações da série. Na chamadas “Lapinha do Sertão” e “Roliúde Nordestina”, eu tive a oportunidade de conhecer alguns desses cenários, os naturais, e os montados pela produção da série. Na segunda cidade, a casa/museu do Padre Ibiapina, localizada ao lado esquerdo da igreja que serviu de cenário para o maravilhoso “O Alto da Compadecida”, clássico do cinema nacional, em “Maria e o Cangaço” é a sede das forças de repressão ao banditismo. Foi nessa casa que aconteceu um dos tiroteios fictícios entre militares e cangaceiros. Outro imóvel de Cabaceiras, esse, ao lado direto da referia igreja, que os Estúdios Disney usaram em suas filmagens, foi a fictícia bodega de um coiteiro e compadre de Lampião, assassinado covardemente pelo sádico personagem tenente Silvério Batista. Em setembro de 2024, estive em Cabaceiras, no evento “Borborema Cangaço”, conhecendo esses lugares. Havia pouco tempo que a equipe do Disney esteve por lá, filmando, deixando as celas no museu do Padre Ibiapina e a bodega/cenário ainda montadas, servindo como atração turística. Bela sacada das pessoas de lá.

Como pesquisador às vezes é um “bicho” meio chato, encontrando até mesmo uma vírgula fora do lugar na obra de um colega, não poderia deixar de observar alguns detalhes da série, que não condizem com a realidade do que foi a grandiosa e sangrenta História do cangaço. Logo na abertura do primeiro capítulo, aparece a legenda informando que a obra “é baseada em fatos reais”. Não é bem assim. Em minha modesta opinião, ficaria melhor a informação de que tal filme “continha personagens reais e imaginários em um enredo fictício.” Seria mais lógico e honesto.

Na série, a indumentária dos atores/cangaceiros, não é o que de fato existiu no cangaço. No lugar da mescla caqui e azul dos bandoleiros, os chamados guerreiros do sol usam gibões de couro, parecendo, aos olhos menos atentos, com simples vaqueiros. Os chapéus de abas quebradas dos cangaceiros não têm os adereços que conhecemos, especialmente da fase mais exibicionista do cangaço lampiônico, como as estrelas de Davi, encontradas nos chapéus dos ditos capitães Virgulino e Corisco, dentre outros, ou mesmo a simples cruz, do chapéu de Candeeiro II (Manoel Dantas Loiola). O que vemos na série são chapéus adornados com várias estrelinhas de metal, dessas usadas em peças de couro, como o chapéu coco do vaqueiro ou arreios para animais. Além da diferença da vestimenta, também falta o colorido dos bordados nos bornais. No filme, essas peças parecem mais com rotos bisacos de caçador.

Uma mudança nos antagonistas da saga cangaceira, esse sim, um erro grotesco, é que ao invés de lutarem contra as forças policiais dos Estados nordestinos, os cangaceiros têm como seu ferrenho perseguidor o Exército Brasileiro, com direito da exibição em cena, do símbolo daquela instituição militar. Como se não bastasse a nódoa histórica pelo EB ter assassinado os miseráveis de Canudos, ter implantado a ditadura no país em 1964, além de episódios mais recentes, agora, vem uma produtora estrangeira associar a imagem da respeitada instituição a eventos em que não participou diretamente. Decisão infeliz dos produtores, em inserir o “Braço Forte Mão Amiga” no enredo. Aliás, o roteiro é todo pró cangaceiro, pois todas as mortes praticadas pelo personagem inimigo principal dos bandoleiros, foram realizadas com atos de covardia. O filme é feito para quem assiste odiar a força policial, no caso, o Exército.

Ainda no primeiro episódio da série, que se passa em 1932, aparece um veículo de transporte para os militares. Como a cena mostra o caminhão de longe, não dá para identificar bem o modelo. Parece ser um GMC CCKW, esse, que começou a ser produzido a partir de 1941, mas se o veículo usado nas cenas foi o Reo, fica mais anacrônico ainda, pois o primeiro modelo desse bruto só começou a ser fabricado em 1950.

A talentosa Ísis Valverde, a primeira dama do cangaço, no enredo, portanto personagem a principal da série, é mineira de Aiurioca. Pode ela interpretar o papel da baiana Maria Bonita?! Lógico que sim. A carioca Tânia Alves, por exemplo, até hoje é lembrada como a Maria Bonita, do seriado da Globo de 1982, no que ela mesma diz que “não foi ‘um’ papel e, sim ‘o’ papel” de sua carreira. O problema, em minha opinião, é o sotaque da atriz, que para quem é de fora da região, pode até passar despercebido, mas, para um nordestino raiz, desses do interior, soa estranho. Ficou caricato. Um estereótipo do que geralmente as emissoras do Sudeste fazem do nordestino. Outra coisa, que não gostei, foi uma espécie de escorbuto que arrumaram para a rainha do cangaço. Pelo que se sabe, ou o que se sabia, até então, é que Maria Bonita tinha uma dentição perfeita, dentes certinhos e brancos. O amarelo da boca de Ísis Valverde ficou feio, aparentando falta de higiene da mulher de Virgulino.

Quanto ao gaúcho Júlio Andrade, o Lampião do filme, para mim, assim como Isis Valverde, o problema é a maneira de falar. Não que seja da minha conta, claro, mas questiono: será que em todo Nordeste, capitais ou interior, não tinha um ator traquejado com a fala e os costumes da região que pudesse atuar nesse papel?! Acredito que sim.

No segundo capítulo, aparece uma cena aonde o tenente Silvério mata covardemente um agricultor, mesmo obtendo dele informações do paradeiro de Lampião, fazendo com que o espectador alimente ódio às forças de repressão ao cangaço. Como dito, aliás, o enredo é bem parcial nesse sentido, pois enquanto mostra cenas como essa, de covardia dos homens da lei, por outro lado, sempre procura mostrar que os cangaceiros são sertanejos de fé, místicos, com suas rezas fortes de fechamento de corpo. Até na abertura da série, umas das primeiras imagens é de um oratório, ligando-o aos cangaceiros. No terceiro episódio, em uma cena em que o volante Silvério Batista chega ao coito e não encontra ninguém, então esbraveja perguntando "quem foi a 'alma sebosa' que avisou aos cangaceiros para que eles fugissem". Expressão totalmente anacrônica, que não existia na época. Esse termo se não criado, foi muito disseminado pelo apresentador pernambucano Joslei Cardinot, quando apresentava seu programa policial na Tv Tribuna, do Recife. Mais à frente, a atriz que interpreta “Lídia de Zé Baiano”, que na série tem outro nome (como veremos adiante) usa uma expressão que não era dela, ao dizer que "o cangaceiro quis 'abusar' dela". Quanto refinamento nas palavras de pessoas tão rudes. Não acredito que condiz com a realidade da época e lugar.

Outras cenas do enredo, que acredito estarem dentro da chamada licença poética, não da história real, é a que mostra a recém parida Maria Bonita, fugindo, cavalgando de pernas escanchadas no animal, bem como o batizado de Expedita, com apenas Lampião e sua companheira, sem nenhuma segurança, um fato impensável para quem entende o mínimo de cangaço. Nesse episódio do batizado, foi realizado um ataque da força volante, isso, por conta de uma delação de um irmão de Maria de Déia. Depois, por conta dessa suposta traição, o irmão de Maria Bonita foi ferrado pelo cangaceiro Zé Bispo (Zé Baiano) e, depois assassinado, novamente pelas costas, pelo tenente Silvério Batista. Tal evento nunca existiu na História do cangaço! Está apenas na fantasia de série.

No capítulo quatro, Maria Bonita é quem flagra a mulher do cangaceiro Zé Bispo (Zé Baiano), com Lourdes (Lídia) em adultério com o cabra Curió. Na trama, prevendo o que poderia acontecer, a companheira de Lampião deu dinheiro à imprudente bandoleira, para que ela e o amante pudessem fugir. Pura fantasia. Por outro lado, como na vida real, a mulher adúltera foi morta a pauladas pelo seu companheiro, sendo diferente da realidade o desfecho, pois na série, dois cangaceiros foram mortos, o “urso” e o cangaceiro que também queria foliar com Lídia, ou melhor: com Lourdes, quando sabemos que o bandoleiro que corneou Zé Baiano, protegido pelo chefe Corisco, não foi morto nesse episódio. Por falar no chamado “Gorila de Chorrochó”, no filme, o deixaram com um tom de pele mais claro e tiraram-lhes os cabelos. O Zé Baiano (Zé Bispo) da série é moreno claro e careca.

Ainda, uma coiteira baiana de nome “Fideralina” (referência à baiana Dona Generosa, ou à matriarca cearense da família Augusto? À segunda não deve ser, pois essa faleceu em 1919) é incumbida por Lampião de comprar terras para ele, mas termina o traindo para roubá-lo, sendo mutilada como punição. Na ficção, essa coiteira é muito culta e tem uma filha que canta em inglês e toca no piano músicas clássicas. Fideralina acompanha a filha, pois é uma talentosa soprano. Puro glamour em meio às caatingas baianas.

No capítulo cinco, outra licença poética do enredo, pois Maria Bonita é presa, quando ia fugindo, após o volante Silvério Batista, sempre apresentado como sádico e covarde, ameaçar matar a pequena Expedita, apontando-lhe uma arma na sua cabeça. Neste mesmo episódio, uma cena inimaginável para quem estuda cangaço: furiosa, Dona Déia confronta Lampião, o chamando de maldito, por conta de ele ser o responsável pela morte de um dos seus filhos, no caso, o seu cunhado, três anos antes. O detalhe que chama atenção nesse capítulo, é o agravamento da tuberculose de Lampião. Essas cenas teoricamente se passam em 1935. Corroboram para esse pensamento, a passagem em que Maria Bonita é Baleada. Na vida real, tal evento ocorreu em julho daquele ano, em terras pernambucanas de Serrinha do Catimbau, então distrito de Garanhuns, Pernambuco. Nessa passagem, foi dada mais emoção ao caso, pois a baianinha, que estava presa, foi resgatada a cavalo pela cangaceira Dadá, mas quando fugia em sua garupa, o tenente Silvério (sempre ele) atirou nela pelas costas. De acordo com a História, sem contar Angico, a única vez que Maria de Déia foi baleada, foi em 20 de julho de 1935, em local já citado.

Nesse mesmo episódio, dar-se um pulo no tempo, mostrando Maria já curada na data de 7 de março de 1938 e, dizendo que já são sete meses depois dos ferimentos da bandoleira, portanto, tal ação teria ocorrido em agosto de 1937. Outro confronto de datas da vida real para série, é que aparece ao bando, Benjamin Abrahão, capturado e desconhecido de Lampião e seus cabras. Historicamente as datas não batem. O chamado Turco já era conhecido de Lampião desde 1926, em Juazeiro. Outra coisa: as filmagens de Benjamim foram realizadas em 1936, portanto, um ano antes do que mostra o filme. Também achei o vocabulário dos cangaceiros do filme bem refinado, o que não condiz com o linguajar sertanejo de homens sem instrução daquela época.


No último episódio, um primeiro tenente (Silvério Batista, no enredo, é segundo tenente) chega à sede de operações policiais e, ao perceber o desleixo dos militares, fala que “sabe porque essa praga comunista que chamam de cangaço não se acaba.” Essa passagem nos chamou atenção, tendo em vista, que na História já se tentou ligar o cangaço ao comunismo, mas, isso com pouca frequência. Em um desses episódios, Frederico Pernambucano de Mello, citando o jornal Gazeta de Notícias de 26 de agosto de 1936, nos conta em seu “Estrelas de Couro a Estética do Cangaço” o seguinte:

O secretário do Interior e Justiça do Ceará, Martins Rodrigues, membro da poderosa Liga Eleitoral Católica, a LEC, movimento direitista simpático ao governo, em visita à cidade de Juazeiro do Norte no mês de agosto de 1936, em discurso às lideranças locais, disse com ares de mistério que tinha consultado ‘certos documentos’ no Rio de Janeiro, que lhe permitiam sustentar que os dirigentes do extremismo vermelho não tinham escrúpulos de lançar mão de todos expedientes e elementos, até mesmo de cangaceiros como Lampião, para serviço de seus sinistros planos.

Para nós, do meio “cangaceiro”, uma grata surpresa no último episódio da série, por conta da aparição do talentoso poeta Neto Ferreira, de Campina Grande, declamando em uma típica feira nordestina, pouco antes de eclodir um tiroteio entre Lampião e policiais. Uma cena emocionante, que gostei, foi a que aparece Maria Bonita, triste, imaginando estar com a filha Expedita, sentindo a sua falta. Acredito que isso deve sim ter acontecido por várias vezes, afinal, a bandoleira era mãe. Por falar na filha de Lampião, no seriado Expedita teria sido criada por uma tia, e não pelos vaqueiros Manuel Severo e sua mulher Aurora. Neste mesmo episódio, Lampião e Maria Bonita abandonam seu bando, com o propósito de fugir, depois se arrependem e voltam para os seus comandados. Passagem impensável para quem conhece do assunto.

Outras disparidades históricas da série, por mim observadas: a morte de Zé Baiano se dá em 1938, e não em 1936, como aconteceu de verdade e, ao invés de ser morto por civis, na ficção, ele é assassinado por um outro cangaceiro. Nas cenas finais, não aparece a figura do coiteiro Joca Bernado, nem toda trama que culminou na morte do rei do cangaço e parte de seu bando. No enredo dos Estúdios Disney, quem entregou o coito de Lampião foi um cangaceiro desgarrado do bando e, depois da delação, foi (novamente) covardemente assassinado pelo tenente Silvério Batista. No dia do combate em Angico, Corisco sozinho, é quem faz o parto de Dadá e, por isso não atravessou o rio para se encontrar com Lampião no coito. No início da das cenas do combate de Angico, Lampião orienta Maria Bonita “a pegar Sila e Inacinha e fugir. Como assim?! Inacinha tinha sido presa em Piranhas, dois anos antes, portanto, não estava em Angico. Para ser mais específico, a frase dita pelo Lampião da série foi:

Tu (Maria Bonita) pega Sila e Inacinha e as outras, e arriba!

Outra fantasia dessa passagem, é que todos os cangaceiros viram quando os homens do Exército estavam chegando e cercando o local para ataca-los, diferente do que realmente aconteceu em Angico, onde a força chegou na surdina. Aliás, o local da morte de Lampião, no filme, é bem diferente de onde aconteceu o fato. Em “Maria e o Cangaço”, a batalha final se deu em campo aberto, numa planície. Na minha opinião, já que a equipe do seriado estava na região, bem que poderiam ter usado o cenário real, a Grota de Angico, para essa filmagem. Neste tiroteio do filme (Angico), morreram três mulheres, isso ainda quando Maria Bonita atirava ao lado de Lampião, quando se sabe que na história do derradeiro combate de Lampião foram duas as mulheres a morrer; Enedina, mulher de Zé de Julião, o Cajazeira, e a própria Maria Bonita.

Nos créditos da produção aparece como tendo dado consultoria à equipe da série, o Mestre Frederico Pernambucano de Mello e Jairo Luiz Oliveira, de Piranhas, dois experientes estudiosos do cangaço. Por tudo que vimos nos seis capítulos do filme, ficou a impressão de que a dupla de pesquisadores não teve acesso à totalidade do roteiro, ou mesmo a ideia de que suas opiniões não foram levadas em conta, pois são erros bobos, que poderiam muito bem não aparecer no filme. Se tivesse que dar uma nota à série, como entretenimento, minha nota seria alta, mas isso, analisando a película como fantasia, pois se a nota fosse dada pela análise da História, seria pequena, pois, da maneira como foi produzido, acredito que o filme vá muito mais confundir a cabeça dos que estão iniciando suas pesquisas cangaceiras. 

Em MINHA opinião, a série “Maria e o Cangaço” é uma boa pedida como entretenimento, como História, não! 

Desmontado

 𝐎 cavalo do "𝐂apetão"

Por Jaozin Jaaozinn


Fotografia do capitão Osório (ou Ozório) Cordeiro da Silva — comandante da força baiana —, após guerrear com o grupo de Lampeão no Raso da Catarina, região baiana, no início do mês de janeiro de 1932. Dentre os espólios, entra em destaque o cavalo que pertenceu ao Rei Cangaceiro, agora em posse do militar. Registro batido por repórteres do jornal Diário da Noite/RJ, em 1932.

Na reportagem afirma que após esse confronto, o grupo cangaceiro se dirigiu para o Estado de Sergipe, se aproximando das terras pertencentes à antiga Aquidabã/SE, tocando o terror nos habitantes e moradores locais. Depois, no dia 6 de janeiro, invadem a cidade de Canindé/SE (conhecida Canindé de Baixo), onde depredam e queimam casas/comércios e são ferradas, por Zé Baiano, três mulheres (Maria Marques, Anízia do Forno e Isaura): duas por usarem cabelos curtos (Anízia e Isaura) e uma por ter parentesco com volante (Maria).

(Obs: questão essa, da saída do Raso para Sergipe, que difere das informações publicadas por outros pesquisadores, porém, no momento não vem ao caso)

Ademais, ainda no periódico, cita a estadia do coronel João Felix de Souza, comandante das tropas da Bahia, nos sertões com o intuito de avaliar as diligências contra os bandidos e propor uma perseguição dura contra os coiteiros. Disse, com toda razão, que um dos motivos da polícia não conseguir chegar "de vez" no "Capetão", é pela forte rede de proteção e informação que este tem através de seus coiteiros. Podemos dizer que foram a base principal do cangaceirismo; sem eles, certamente grupos ou bandoleiros solos não iriam resistir por tanto tempo. Em comparação, o resultado do trabalho do coronel João Félix com os sertanejos foi maior do que as atribuladas ações do sangrento tenente Dourado (ou Douradinho) — que defendia também uma dura retaliação contra os protetores de cangaceiros; todavia, praticava crueldades em excesso contra os acusados e contra sertanejos que não tinham nenhuma ligação com o cangaço —, que torturava, matava e espancava sertanejos inocentes.

Outro fato de suma importância e que é pouco relatado, é o êxodo de famílias sertanejas dos sertões, em específico daquele ano, da Bahia e Sergipe. Após os abusos praticados por ambos os lados (volantes e cangaceiros), bem como suas moradias serem destruídas, muitos clãs decidiram sair de suas terras e migrarem para a Capital do Estado ou então para cidades e/ou povoados que estivessem longe da área de atuação de Virgolino. Querendo ou não, o cangaceirismo contribuiu e muito para a fuga de inúmeros sertanejos de sua terra natal para cidades grandes; consequentemente, aumentou-se também o número de nordestinos nas regiões do "sudeste modernizado", boa parte deles morando na rua. 

Ou seja, nem sempre o motivo era seca e fome, mas também a exagerada violência nos "grotões do Norte" que quase acabou com famílias inteiras, obrigando-as a largarem tudo o que tinham para salvarem as suas vidas. De qualquer forma, a saudade do seu rincão perdura, e agora o novo inimigo é a xenofobia impregnada na "sociedade inovada"; e em momentos, certas palavras dirigidas para os retirantes feriam mais que as pontas finas dos punhais nas costas ou as bofetadas de chicote no rosto ou nas mãos.

𝐹𝑂𝑁𝑇𝐸𝑆: 𝐽𝑜𝑟𝑛𝑎𝑙 𝐷𝑖𝑎́𝑟𝑖𝑜 𝑑𝑎 𝑁𝑜𝑖𝑡𝑒/𝑅𝐽 — 𝟏𝟗𝟑𝟐; 𝑟𝑒𝑣𝑖𝑠𝑡𝑎 𝑂 𝐶𝑟𝑢𝑧𝑒𝑖𝑟𝑜/𝑅𝐽 — 𝟏𝟗𝟑𝟐; 𝑍𝑒́ 𝐵𝑎𝑖𝑎𝑛𝑜 — 𝑅𝑜𝑏𝑒́𝑟𝑖𝑜 𝑆𝑎𝑛𝑡𝑜𝑠.

terça-feira, 25 de março de 2025

O CANGAÇO EM SANTA INÊS - PB.

A morte do "Azulão paraibano"

Pesquisa de José Francisco Gomes de Lima (Perfil Lampião Governador do Sertão).

Na década de 1920, o cangaceirismo assolava os estados nordestinos. Na época, a Paraíba vivia em constantes combates contra o cangaceiro Virgulino Ferreira (Lampião),o rei dos cangaceiros, que dizia livremente que a culpa daquele estado de coisas era do coronel José Pereira Lima (Zé Pereira de Princesa). 

Segundo o Cangaceiro, Zé Pereira avia o traído e o roubando uma grande quantia de dinheiro. Para piorar a situação para o lado de Lampião, as volantes paraibanas aumentaram o nível das perseguições. Mesmo assim alguns lugares como Patos de Irerê na Paraíba era coito seguro de Lampião.

Desde 1924, quando Lampião foi baleado na Lagoa do Vieira no vizinho Estado do Pernambuco, o trânsito do cangaceiro só aumentou na Paraíba e Santa Inês virou rota do banditismo rural. 

Nesta época um bando de cangaceiros liderados por "Azulão" vivia fazendo coalizões com o bando de Lampião. "Azulão" era um homem perverso e tudo indica que ele era paraibano. Seu bando variava de 5 a 10 homens e suas atuações eram basicamente nos mesmos lugares. 

Devido à brutalidade de Azulão e a falta de insubordinação aliada a um desejo sádico te possuir mulheres, Lampião decidiu expulsa-lo do seu bando. Azulão tinha fama de praticar estupros e de alguma maneira Lampião não aprovava as atitudes dele e esse foi o motivo da separação. Na realidade, Lampião detestava Azulão, porque o cabra era desprezível até mesmo para outros cangaceiros. 

Vira e mexe ele mandava recado para pais de família, dizendo que ia carregar as filhas que estivessem em sua casa. Ele dizia e fazia e por isso ele era temido. A ira de Lampião só aumentava contra Azulão, que além de praticar estupros, dizia ele que era cabra de Lampião e a culpa sempre caia nas costas do Rei do Cangaço.

 Em Conceição na Paraíba o cangaceiro Azulão e seu bando puseram suas garras numa pobre moça. A família que tinha posses, ficou  bastante desmoralizada. Zé Pereira foi cobrado e com o apoio do Governo do Estado intensificou as ações das forças volantes na região. Todavia, depois do acontecido em Conceição, Santa Inês foi palco de uma terrível visita do Azulão e seu bando onde também praticou estupros. 

O terror estava solto. Um dia, Azulão avisou que iria carregar três filhas de um senhor chamado José Nunes. O coitado do trabalhador rural acuado e sem ter o que fazer, mandou avisar a volante comandada pelo Tenente Raimundo Quintino em Conceição na Paraíba, que o bando de Azulão estava em suas terras, pronto para atacá-lo e ele precisava de uma rápida ajuda. 

Em meados de 1927 a volante de Raimundo Quintino sofrendo forte pressão do coronel José Pereira que exigia resultados satisfatórios, estacionou próximo a fazenda de José Nunes na Serra Pintada, que na época pertencia a Conceição, mas que hoje pertence a cidade de Santa Inês. 

Raimundo Quintino era muito Valente e esperto, sua força volante era composta por parentes incluindo um filho.Ele soube que próximo a fazenda do pobre trabalhador havia um caldeirão com água e ele decidiu fazer ali uma espera, (tocaia). 

Foi uma ideia de gênio, pois não demorou muitos dias e logo o bando de azulão se aproximou do caldeirão na Serra Pintada. O cangaceiro, gostava de andar no meio da fila indiana, formada pelo bando, mas quando chegou no caldeirão o cabra se antecipou e foi pular uma cerca de faxina. Não deu tempo nem botar os pés no chão e logo o fuzil cantou. Azulão foi varado de bala e ficou igual uma peneira, o resto do bando se escondeu próximo a um umbuzeiro e abriu  fogo contra volante onde Raimundo Quintino foi baleado no pé. 


O tiroteio não demorou muito e logo os cabras sumiram no meio da caatinga. Azulão foi pego e amarrado em um jumento e levado para a cidade de Conceição onde foi jogado numa calçada. No mesmo dia esta foto abaixo foi tirada mas azulão não saiu na fotografia porque Raimundo Quitino não queria que sua imagem fosse associada a um cangaceiro daquele nível. 

Note que Raimundo Quintino, o primeiro da esquerda está com o pé enfaixado. E foi assim que uma onça terrível chamada Azulão, foi tirada do pasto em Santa Inês-PB.




Agradecimentos:

Professor José Fabio Nicolau e Damião Holanda de Lacerda.


sexta-feira, 7 de março de 2025

RANGEL ALVES NO RASTRO DO CANGAÇO...

... Despedida

O tema Cangaço é instigante de qualquer jeito, seja em roda de conversa, em palestras e seminários, em leituras e até nas imaginações mais irreais ou ilusórias. Contudo, nada igual ao conhecimento de perto dos cenários e paisagens daquela brutal e perversa realidade. Não para engrandecer ou glorificar os feitos cangaceiros, mas pelo conhecimento, pelo confrontamento do que se imagina com a realidade das caatingas, dos coitos, dos locais de combate, com suas causas e consequências. 

Uma cruz esquecida no meio do tempo, um tronco de velha árvore ainda marcada por disparos, uma casinha de oração, uma sepultura já quase desfeita pela voracidade do tempo, uma casinha com seu barro caído e cheio de escritos da história. Tudo isso precisa ser conhecido, de modo a juntar o que se sabe e o que se imagina, com o que resta daqueles medonhos cotidianos nos sertões nordestinos. Após cada contato com o que restou do cangaço, então dizer: Meninos, eu vi! E talvez o visitante ou pesquisador diga que o encontrado e o avistado são mais importantes do que todos os livros já lidos sobre a saga cangaceira.

Meu pai Alcino vivia no rastro dessa história, vivia rastejando cada passo cangaceiro nos sertões de Poço Redondo e mais além. Ouviu testemunhos dos personagens da saga, duvidou do que o livro dizia perante o que encontrou, e, pela própria percepção e sabedoria matuta, foi construindo suas próprias histórias, e tão reais que ainda é possível avistar em meio às caatingas o que ele escreveu. Eu não tenho essa maestria do meu pai, não tenho o dom de traduzir em letras o que meu pai tão bem descreveu, ainda que tivesse apenas o estudo primário. 

Mas eu, filho de Alcino, já fiz o que podia. Já visitei coitos, marcos históricos, locais de combates. Já visitei muitas cruzes, muitas casinhas de oração, locais de ex-votos pelos inocentes mortos pelos cangaceiros, locais onde o sangue espargiu pela violência dos bandoleiros e volantes. Na minha imaginação, eu vi Lídia amarrada ao umbuzeiro, e sabendo que logo seria morta por Zé Baiano. Eu vi Zé Bonitinho ser degolado e o sangue se espalhar pelo batente. Eu vi Adelaide dando seus suspiros finais embaixo do umbuzeiro. Eu vi o menino Galdino e seu avô Monteiro sendo covardemente mortos pela sanha assassina de Gato. Eu vi o ex-cangaceiro Juriti morrendo ateado em fogo. Eu vi Clemente, Doroteu e João transformados apernas em túmulos e em cruzes da memória. E vi muito, muito mais. Meninos, eu vi!


Mesmo num misto de dor, de prazer pelo conhecimento absorvido, e de revolta ante aquele mundo sem lei e sem dono, tudo isso eu vi e registrei. Hoje conto apenas o que sei pelo que conheci. Mas não mais farei isso. A Expedição Rota do Cangaço Poço Redondo 2025, comandada pelo amigo Aderbal Nogueira e marcada para acontecer dia 21 de julho nos sertões de Poço Redondo, será a última que acompanharei os visitantes e estudiosos do tema Cangaço. Em nenhum outro evento estarei presente, nem como acompanhante nem como palestrante ou mesmo mero participante. 

Sei o que sei. Sei o que já aprendi. E já tá bom demais. Nem no Memorial nem na Casa de Pedra receberei turistas ou interessados em informações sobre o Cangaço ou sobre o mundo sertanejo. Não queria que fosse assim, mas sou forçado a me recolher de toda a vida cultural, histórica e turística de Poço Redondo.

At.te Rangel Alves da Costa

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Volantes

Valdemar Ramos da Cruz

Pesquisa de Guilherme Velame Wenzinger

Valdemar Ramos da Cruz, nascido em Chorrochó(BA) em 17 de agosto de 1917, era irmão do famosos cabo Bem-Te-Vi e integrava, junto com ele, a força comandada pelo tenente Zé Rufino. 

Ingressou nas fileiras da volante ainda muito jovem. Valdemar faleceu de causas naturais aos 68 anos, em 1985.

Abaixo, vemos uma foto de Valdemar em tempos de guerra, durante a perseguição aos cangaceiros, além de dois documentos de identificação (um deles da PM) e um registro já em idade avançada.






Fotos gentilmente cedidas por seu sobrinho Joel.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Vinditas

Pedro de Souza Freire

Pesquisa de Guilherme Velame Wenzinger


Pedro de Souza Freire, filho de Martinho de Souza Freire e Maria Angélica do Rosário. Pai de Maria Evanilza de Souza (Eva Souza). Após o assassinato de Martinho de Souza pelo cangaceiro "Zé Baiano", [em 10 de março de 1934] Pedro, juntamente com seus irmãos Filinto, José, Filomeno e Alcino e mais cinco primos, integraram uma volante, que teve dois combates com os cangaceiros e, num deles, o bando de "Mariano" foi exterminado.

A volante dos filhos de Martinho
- Acervo Lampião Aceso -

Depois disso, morou em alguns municípios sergipanos como Aracaju, Arauá e Estância. 

Faleceu em 6 de novembro de 1975 (conforme consta no livreto Momentos de Minha Vida, de Antônio Conrado de Souza), em Itamaraju/BA.

Foto e informações transmitidas por sua filha Eva Souza a Marcos de Souza.


Créditos: João Hélio

domingo, 12 de janeiro de 2025

Sergipano que foi cangaceiro e caçador destes

"Cajarana", o homem de duas faces

Por Rangel Alves da Costa. 

“Cajarana é nome de fruto que é cajá e que é manga ao mesmo tempo, de casca lisa e fina”, denominação mais que apropriada ao sertanejo que recebeu tal apelido, pois esteve dos dois lados da mesma moeda no tempo do cangaço. Quer dizer, foi cangaceiro e depois caçador de bandoleiros nas caatingas, que tanto conhecia no passo a passo de que lado estivesse.

Seu nome de batismo era Francisco Inácio da Silva, mas comumente conhecido como Chico Inácio. Nasceu enraizado numa afamada e portentosa família do então distrito de Poço Redondo: a Família Vito, trazendo no sangue também laços dos Clemente, família esta de presença constante na história do cangaço em Poço Redondo. Era irmão de João Inácio e outros.

Seu pai era Inácio Vito (irmão de Pedro Vito das Pedras Grandes, de Zefa de Clemente, de Badu e de Canuta de Zé Vicente, dentre outros. A família de Chico Inácio vivia estabelecida na região da atual povoação poço-redondense de Santa Rosa do Ermírio (nas proximidades do Couro e Lagoa Escondida), mas espalhada também além da divisa, principalmente na Ponta da Serra, já adentrando nas terras da baiana Serra Negra (a mesma Serra Negra do Coronel João Maria de Carvalho e do posto de comando da tropa de Zé Rufino).

Pela configuração geográfica, o moço Chico Inácio muito convivia com a presença dos cangaceiros na região da divisa de Sergipe e Bahia, local de passagem costumeira de Lampião e seu bando. E também de soldados das forças volantes. Uma região, pois, insegura e ameaçadora. De qual lado ficar? Muito indagava Chico Inácio. Mas o cangaço era uma demonstração de força e até de proteção, também dizia a si mesmo. Um dia resolveu enveredar no cangaço, e assim fez. Foi aceito e logo recebeu a alcunha de "Cajarana".

Mas a vida no Cangaço era mais difícil do que ele imaginava. Segundo relato de Antônio Neto Aboiador (importante membro da família Clemente), um antigo problema numa perna começou a importunar o já cangaceiro Cajarana, principalmente pelo peso dos apetrechos que tinha de carregar. Ficava cada vez mais insuportável conviver nas durezas da caatinga naquela situação. Pensou e pensou no que fazer para sair daquele meio aterrorizante e doloroso.

Como conhecia a fama e o poder do Coronel João Maria de Carvalho e sua influência perante Lampião, não teve dúvidas de que o Coronel da Serra Negra seria sua tábua de salvação. E assim aconteceu, mas não antes que resolvesse fugir. Sua desesperada e agonizante fuga foi de cena cinematográfica. Segundo o referido Antônio Neto, Cajarana se afastou um pouco dizendo que precisava urinar. Uma vez no mato, ficou observando se a "cangaceirama" se afastava. Ao perceber que já iam muito adiante, então resolveu correr, mesmo com o dolorido na perna.

Quanto mais corria mais olhava pra trás, quando de repente percebeu um cachorro vindo em correria em seu encalço. Lembrou que trazia um pedaço de carne no embornal, então foi cortando o alimento e jogando em direção ao cachorro, que parava para comer, e assim foi se afastando cada vez mais até não se sentir mais perseguido. Em seguida, na mesma correria, foi bater à porta do casebre de um parente que morava na região.

Imaginou que logo os cangaceiros estariam vasculhando por ali à sua procura, mas assim não ocorreu. Já se sentindo em segurança, logo tratou de mandar um recado a seu pai, pedindo que fosse urgentemente procurar o Coronel João Maria para dizer que precisava se entregar. 

O Coronel da Serra Negra assegurou que nada lhe aconteceria se fosse se entregar, mas que dali em diante passaria a servir a Zé Rufino. Quer dizer, um ex-cangaceiro indo pro outro lado. Sendo Zé Rufino também comandado por João Maria, nenhuma objeção foi imposta ao ex-cangaceiro, tão somente que ao invés de volante, de caçador de cangaceiro, ele seria informante, em virtude do problema na perna.

Coronel João Maria de Carvalho

E assim Chico Inácio, o ex-cangaceiro Cajarana, foi vivendo os seus dias. Não sabia, contudo, que o episódio de sua fuga jamais seria esquecido por Lampião. E assim porque, ao fugir, o então cangaceiro levou consigo as armas e tudo do cangaço que carregava, fato jamais perdoado pelo rei cangaceiro. E Lampião esbravejava: “Ainda quero ver Cajarana como ‘taba’ de pirulito, todo furadinho”.

Assim, pode-se dizer que Chico Inácio teve vida dupla no contexto do Cangaço, vez que primeiro foi cangaceiro e depois se tornou informante da volante. Na vida pessoal, arrumou casamento, mas enviuvou anos após. Casou novamente, e desta feita com Elzira, com quem teve outros filhos, dentre os quais Zé Acrísio, Nélson e Zelino. Com a nova família, Cajarana fixou residência nas proximidades da sede de Serra Negra, na localidade conhecida como Malhada da Onça.

Na Malhada da Onça, o ex-cangaceiro viveu durante cerca de quarenta anos, e onde faleceu. A casa ainda existe e é cuidada por seu sobrinho Augusto Inácio. Nas fotos abaixo, o próprio ex-cangaceiro e o local onde está sepultado no cemitério da Ponta da Serra, na antiga Serra Negra da Bahia. Ao lado da sepultura avista-se o seu filho Nélson e Antônio Neto Aboiador (de camisa escura).




sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A chacina do Couro

Entre a ficção e um dolorosa realidade

Por Rangel Alves da Costa 

"Abri a porteira e caminhei por uma estradinha de chão. Logo adiante avistei uma moradia de fazenda e um curral logo ao lado. Tanto a casa como o curral em silêncio absoluto, ouvindo-se apenas o murmurejar do vento e do balançar de folhagens. Pelas portas e janelas fechadas, pela quietude do lugar e também pela ausência de qualquer vestígio de presença humana, então resolvi observar se havia pegada recente de animais pelo curral, mas apenas o barro duro e o estrume de canto a outro. Segui adiante. Somente após abrir o primeiro colchete é que tudo começou a mudar. 

Aquele silencio e aquela mansidão de mais atrás, de repente começaram a totalmente se transformar. Após o segundo colchete, então o mato pareceu se agitar, a ter olhos, a guardar segredos perante seus tufos, a dialogar com alguma presença humana. Não há que se negar que tal situação causa espanto e medo em qualquer um. 

Mas eu tinha de prosseguir, pois sabia muito bem o que queria encontrar. Pelas histórias muitas vezes ouvidas, logo nas proximidades daquele local, no ano 32, havia começado um dos mais terríveis episódios da história do Cangaço, ou uma das maiores covardias já perpetradas por cangaceiros liderados por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Caminhei um pouco mais até me deparar com uma lagoa seca em meio aos descampados. 

Lancei o olhar de canto a outro e foi como estivesse na presença de terríveis e sanguinários cangaceiros, depois um sopro voraz de ventania me contou que aqueles desumanos bandoleiros eram Gato, Azulão, Suspeita, Medalha e Cajueiro, todos liderados pelo primeiro. Eu já nem sabia em que mundo, tempo ou realidade estava. E mais estranho ainda quando comecei a ouvir uma voz que começou a relatar todo o acontecido naquelas distâncias dos sertões de Poço Redondo.

 

Gato


Com sotaque de velho sertanejo, mas sem aparecer fisicamente, então contou-me: ‘O ano era 32. Montados em cavalos, Lampião e seus cabras chagaram na região do Couro, já na divisa de Sergipe e Bahia. Umas selas e uns arreios dos cangaceiros foram enterrados, mas depois encontrados por um rapazote que por ali residia. 


Como os apetrechos haviam sumido, então a fúria tomou conta de Lampião, que logo resolveu culpar aquele mundo sertanejo pelo sumiço dos couros. 

E deu ordens para que Gato e seus comandados fizessem uma investida pela região e passassem a punhal e a mosquetão o que encontrassem. E assim a fúria perversa e sangrenta começou a agir. Mataram logo dois e depois seguiram matando, mais três e mais dois. Sete ao todo. Morreram os inocentes Antônio Monteiro, o menino Galdino, de apenas sete anos, Alfredo, Clemente e seus filhos Doroteu e João, ainda um doidinho chamado Zé Bonitinho

- E o que você está procurando está logo ali, depois daquele embrenhado de mato. Não é a capelinha que você está procurando, a capelinha levantada em memória dos dois primeiros mortos da Chacina do Couro, que foram Antônio Monteiro e o menino Galdino? Tá tudo já caindo, mas vá até lá e reze por aquelas pobres almas. Vá rezar, vá orar por mim, pois sou uma daquelas almas ali esquecidas no tempo’

E depois apenas o silêncio. 

E a minha entristecida presença ao lado dos restos dos restos, do que amanhã talvez nada reste, senão as memórias de um tempo de dor e de sofrimento”.



segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Pedro Carolino de Sousa

De refém a sargento de volante

Por Luis Bento


O então distrito de Macapá, hoje Jati, por se localizar na região sul do cariri cearense, fronteira do Estado com o Pernambuco, sempre viveu conturbados dias de conflitos por cangaceiros que assolavam na região.


Jati - CE


No início do ano de 1938, aconteceu no sítio Oitis no então distrito Macapá, um episódio envolvendo Pedro Carolino e o cangaceiro Moreno. 


Pedro, ficou refém do grupo por determinadas horas, sobre ameaças de morte, enquanto seu cunhado Noia Gomes foi imbuído a uma missão, de ir ao distrito efetuar compras de alimentos e munição para o bando necessitado.

 

Pedro Carolino de Sousa

"Vivi momentos de angústia, todo instante era ameaçado de morte, caso meu cunhado falhasse as exigências do grupo,  por pouco não morri, acredito que agente só morre quando chega o dia".  Assim comentou Pedro Carolino ".

            

Dias após o acontecido, Pedro Carolino e seu cunhado Noia Gomes, procuraram o Quartel General da Cidade de Juazeiro do Norte e foram dar combate ao  grupo cangaceiro que atuava na região.

INACINHO

Morador do Rio, filho de cangaceiros do bando de Lampião lembra história marcante de reencontro com o pai e a mãe, em Minas

Inácio Carvalho Oliveira, hoje com 86 anos, passou mais de 40 dias no cangaço antes de ser deixado com um padre no interior de Pernambuco.

Por Elcio Braga — O Globo

PM reformado do Rio é o último nascido dentro do bando de Lampião

Apesar de ser apenas um bebê quando viveu no bando de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, o pernambucano Inácio Carvalho Oliveira, de 86 anos, carregou por grande parte da vida o peso de ser filho do cangaço. Para fugir de constrangimentos e das zombarias, deixou Tacaratu, pequena cidade no interior de Pernambuco, para viver no Rio de Janeiro, onde o passado entre os cangaceiros seria omitido. Curiosamente, aproveitou a oportunidade para se tornar um homem da lei. Fez carreira na Polícia Militar, onde foi reformado. Atualmente, entre todos que estiveram no bando de Lampião, apenas ele e a própria filha do rei do cangaço, Expedita Ferreira, de 92 anos, estão vivos.


Inácio é casado e mora com Maria Odete Moraes Carvalho, com quem teve um casal de filhos, em Vista Alegre, na Zona Norte do Rio. Lúcido e saudável, costuma passear pela cidade e manter uma rotina com boas caminhadas.


— Hoje, Inacinho e Expedita Ferreira, filha de Lampião e Maria Bonita, são as duas últimas pessoas que estiveram “dentro” do cangaço e com Lampião ainda em plena atividade, se assim podemos dizer. Embora Expedita tenha permanecido alguns dias com os pais, ela não nasceu no cangaço. Maria se ausentou para o parto. Ficou em um “coito” (esconderijo) até a criança nascer — explica Geraldo Antônio de Souza Júnior, pesquisador do cangaço e responsável pelo canal Cangaçologia, no YouTube.

Inácio Oliveira aos 67 anos, ao reencontrar os pais, Moreno e Durvinha, e os cinco irmãos em MinaS. Foto: Acervo pessoal


O último dos cangaceiros foi José Alves de Matos, o Vinte e Cinco, natural de Paripiranga (BA). Ele morreu aos 97 anos em 2014, em Maceió (AL). Lampião, Maria Bonita e mais nove integrantes do bando não resistiram ao ataque da volante (força de segurança) na Grota do Angico, em Sergipe, em 1938.

Lembranças turvas

O filho do cangaço não sabia quase nada sobre suas origens. Tudo o que conhecia até os 67 anos era que os pais, os cangaceiros Moreno e Durvinha, expoentes do bando de Lampião, o haviam deixado com o padre Frederico Araújo, pároco da pequena Tacaratu, no interior de Pernambuco. Uma carta acompanhava a criança: trazia o nome dos avós. Os pais alegaram que o bebê, ao chorar, vinha chamando a atenção das volantes que os perseguiam.


Inácio e a irmã Lili, que iniciou a busca pelo irmão, e a mãe, a cangaceira Durvinha, após o fim do segredo do passado no bando de Lampião.
Foto: Reprodução (Fernando Lemos)

Depois da morte de Lampião, os pais tiveram de abandonar o cangaço às pressas. A perseguição aos cangaceiros remanescentes era intensa. Na fuga, Moreno e Durvinha cruzaram a pé por 60 dias o interior do Nordeste até Minas Gerais, onde passaram a residir escondidos. Durvinha ainda levou uma picada de cobra no caminho e quase morreu.

Moreno, cujo nome verdadeiro era Antônio Ignácio da Silva, passou a se chamar José Antônio Souto, impossibilitando dessa forma ser descoberto pela Justiça e por antigos rivais. Durvalina adotou o nome de Jovina — conta Geraldo.


Durvinha, mãe de Inácio Oliveira, num filme de Benjamin Abrahão Calil Botto proibido no Estado Novo — Foto: Reprodução

Em 2005, aos 67 anos, Inácio estava sem esperanças de ter notícia dos pais. Mas a curiosidade da irmã mais velha Neli “Lili” Maria da Conceição daria fim ao segredo. Pressionada, Durvinha contou a ela que deixara um filho com um padre em Tacaratu antes de se mudar para Minas. O menino nascera debaixo de uma quixabeira, árvore espinhosa típica da caatinga, possivelmente em território alagoano (embora tenha sido registrado em Pernambuco). Neli ligou para a pequena cidade e deixou o contato para o suposto irmão retornar. Inácio, que morava no Rio, ligou de volta:

— “Como é o nome da sua mãe?” Neli respondeu: “Jovina Maria da Conceição”. Aquilo foi um balde de água gelada, porque eu sabia que o nome da minha mãe era Durvalina — relata Inácio, lembrando a frustração.

Lampião com uniforme do Batalhão Patriótico — 
Foto: Pedro Maia

Mesmo assim, o PM reformado resolveu esticar a conversa e pedir para falar com a tal Jovina. Ele se emociona ao recordar.

A senhora tinha um apelido? Era chamada de Durvinha? A senhora era do arrasta-pé? — perguntou Inácio, citando detalhes que só a mãe biológica poderia saber.

Como você sabe disso? — respondeu Durvinha, dando a entender que sabia do que se tratava.

— Puta que pariu! Achei minha mãe — concluiu Inácio, vibrando com a realização de um sonho que acalentou por toda a vida.

A ansiedade com a descoberta foi tão grande que Inácio viajou imediatamente do Rio para Belo Horizonte. Não queria perder tempo para encontrar a mãe, o pai e seus cinco irmãos que nem sequer sabiam da história do cangaço. Dois dias depois, ele chegou à casa da nova família, saudado com fogos e festa. Conforme combinado previamente, abraçou ao mesmo tempo o pai, a mãe e a irmã mais velha. Foi a melhor solução para o impasse: todos queriam abraçá-lo primeiro.

Inácio Carvalho Oliveira foi deixado mais de um mês após o nascimento para ser criado por um padre. Os pais cangaceiros tiveram de fugir — 
Foto: Reprodução (Fernando lemos)

Diante do passado

Só a partir daí Inácio saberia detalhes da vida dos pais no bando do rei do cangaço.


Meu pai foi chefe de grupo do bando. Era como um quartel. Tinha um comando geral que era do Lampião. E eles espalhavam a companhia para um lado e para o outro. Senão a polícia atacava e matava todo mundo — explica.


Moreno era reservado e pouco comentava sobre os tempos do cangaço.

Meu pai precisava confiar muito na pessoa para falar alguma coisa. Ele contava as bravuras. Um dia, ele me disse: “Meu filho, tenho certeza que matei 22 pessoas. Só que foram mais. Só não contabilizei porque tão fui lá conferir” — relata.

Durvinha se destacou no período do cangaço. Inicialmente, foi casada com Virgínio Fortunato da Silva Neto, o Moderno, morto em ação. Logo depois, ela se relacionou com outro integrante do bando, com o qual viveria o resto da vida. É ela que aparece num filme do caixeiro viajante sírio-libanês Benjamin Abrahão Calil Botto. Ela abre um sorriso e aponta a arma para a câmera. O filme que retrata em 14 minutos Lampião e seu bando no Sertão, entre 1935 e 1936, chegou a ser proibido na ditadura do Estado Novo. No entanto, os rolos empoeirados da película foram redescobertos em arquivo público em 1955.

Ao contrário dos pais biológicos, Inácio seguiu o caminho da lei; entrou para a Polícia Militar do Rio — 
Foto: Reprodução / Fernando Lemos


Visão tolerante

Apesar de ter conhecido a mãe com idade muito avançada, Inácio guarda boas recordações da curta relação em visitas regulares ao longo de três anos.

A minha mãe era uma doçura. Me colocava no colo e ficava fazendo carinho na minha cabeça — recorda o PM reformado. Me sinto feliz. Conheci meu pai, minha mãe. Foram casados de fato e de direito — conta ele, que se abatia ao ler a expressão “pai desconhecido” em sua certidão de nascimento.

O reencontro com o filho possibilitou que os ex-cangaceiros voltassem a ter contato com os parentes deixados para trás, com a fuga da polícia e posterior troca de identidade. Após quase 70 anos, a família toda voltou a se reunir no Nordeste. Durvinha morreu aos 92 anos em 2008, e o marido, aos 100, em 2010.

Apesar de ter ficado ao lado da lei por ser PM, Inácio tem hoje uma visão mais tolerante sobre o cangaço.

Depois de 67 anos após ser deixado com um padre, Inácio reencontra o pai, Moreno, chefe de grupo no bando de Lampião — Foto: Reprodução (Fernando Lemos)


Várias pessoas já me perguntaram como classifico o cangaço. Se falarem que os cangaceiros são ladrões, é verdade: roubavam. Eles matavam e furtavam, mas com uma diferença. Eles roubavam o cabrito, o boi e outros animais para se alimentar e não para comprar drogas. O furto deles era para dar a quem tinha menos. Se o fazendeiro tinha muitas posses e era ruim, ele pedia dinheiro para dar aos mais pobres. Meu pai e minha mãe diziam que Lampião não era ruim. Era mau só quando faziam algo contra ele — comenta Inácio.

Para o pesquisador Geraldo Júnior, Lampião é um mito que merece muitas reflexões sobre a História do Sertão. Mesmo 86 anos após sua morte, o rei do cangaço é motivo de debate acalorado entre admiradores e críticos.

Há os que definem os atos de Lampião como heroicos, possivelmente por desconhecer a sua verdadeira biografia, enquanto outros o enxergam apenas como um bandido frio, cruel e sanguinário. Herói ou bandido? Uma resposta que jamais será unânime, mas que continuará ecoando através do tempo e atraindo curiosos e estudiosos — opina.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

O Reencontro

Ex-cangaceiros e ex-volante em 1968

Por Jaozin Jaaozinn

 
Registro fotográfico do reencontro do ex-volante Adriano Ferreira de Andrade (utilizando um casaco marrom, no canto inferior direito), com os ex-cangaceiros (da esquerda para a direita) Criança, Marinheiro e Zé Sereno, em um almoço promovido por Maria Cristina da Matta Machado e Humberto Mesquita, no ano de 1968, em São Paulo.



Para quem vê o registro destes homens "mansos", de fala tranquila e já na meia idade, nunca pensaria que, há 32 anos atrás, eram ferrenhos inimigos, equipando-se com bornais, cartucheiras, punhais, cantis, jabiraca e chapéu, e o velho companheiro fuzil. Era briga de gato e rato nos carrascais do agreste nordestino.


Adriano, natural da Bahia, entrou na força volante em 1936, por causa de uma pisa que recebeu do famoso chefe de sub-grupo, o terrível Zé Sereno, pertencente a família Engrácia. Naquele momento, dedicou sua carreira no combate contra os cangaceiros, principalmente ao bando de Sereno, e só parou a sua campanha quando o último dos últimos caiu baleado no chão, o Corisco, em maio de 1940. 

 

Adriano e Zé Sereno

O ex-policial estava presente na Grota do Angico, no dia 28 de julho, onde presenciou a morte do companheiro Adrião e dos 11 bandidos, na somatória do cachorro Guarany. Mesmo pela batalha ganha naquele momento, Adriano ficou frustrado por não ter conseguido aniquilar seu desafeto.
 

Agora nessa foto, encontram-se as duas feras – que por muito tempo trocaram tiros pelo sertão e dariam de tudo para uma maior aproximação, com o objetivo de matar seu inimigo – em pouquíssimos metros de distância, com um largo sorriso no rosto, além de apertos de mãos, relembrando aqueles episódios de sangue e pólvora.


𝐹𝑂𝑁𝑇𝐸𝑆: 𝑅𝑒𝑣𝑖𝑠𝑡𝑎 𝑅𝑒𝑎𝑙𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒/𝑅𝐽 - 1969; 𝐹𝑜𝑟𝑐̧𝑎𝑠 𝑉𝑜𝑙𝑎𝑛𝑡𝑒𝑠 𝑑𝑒 𝐴 𝑎 𝑍 - 𝐵𝑖𝑠𝑚𝑎𝑟𝑐𝑘 𝑀𝑎𝑟𝑡𝑖𝑛𝑠.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Ruínas da Fazenda Capoeiras

Antiga morada do pai das cangaceiras Rosinha e Adelaide

Por Manoel Belarmino

Registro de 28 de julho de 2024

Nas margens do São Francisco, nas proximidades do Povoado Curralinho, em Poço Redondo (SE) está a Fazenda Capoeiras que, no tempo do cangaço, pertenceu ao pai das cangaceiras Adelaide e Rosinha.

    Rosinha

Lé Soares era filho de Maria da Invenção do Maranduba e casado com Pureza (dos Camburanga) de Curralinho. Duas filhas do vaqueiro Lé Soares foram para o Cangaço. Rosinha seguiu o cangaceiro "Mariano" e Adelaide acompanhou o cangaceiro "Criança".

Rosinha ficou viúva quando o seu companheiro Mariano foi morto em um combate com as volantes. Ela tentou deixar o subgrupo, mas foi morta pelos próprios cangaceiros nas Pias das Panelas, também em território de Poço Redondo. 

Adelaide morreu por complicações no parto, nas proximidades de Curituba.

Lé Soares, depois que as suas duas filhas entraram para o Cangaço deixou as suas terras da fazenda Sítio, no Maranduba, e mudou-se com esposa e filho(a)s para a sua fazenda Capoeiras.

Antes de morrer, Rosinha teria se demorado uns 15 dias com os seus pais nas Capoeiras.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

"Ele estava em Angico"

Soldado Otávio Alves da Mota
 

Por Helton Araújo (Canal Cangaço Eterno)
 

Hoje falarei sobre mais um personagem que ficou  oculto em meio a história desse fenômeno social que até hoje mexe com nosso imaginário.
 

Otávio Alves da Mota, nasceu em Itabi-SE, no dia 14 de setembro de 1914 e antes de se aventurar na luta contra os cangaceiros era um simples lavrador, que vivia do suor de seu digno trabalho. Assim como outros tantos, as circunstâncias que os sertanejos da época eram submetidos o fez ter de escolher um lado na guerra entre cangaceiros e volantes.
 


Os motivos que levaram este homem a decidir encarar um desafio tão árduo não foram poucos. Lampião e seu bando atearam fogo no armazém da família da sua então noiva, além do mais, o bando de Mariano extorquiu o pai de Otávio, o mesmo foi molestado e humilhado pelo bando do feroz cangaceiro, além de seus familiares terem animais mortos pelo bando desse mesmo cangaceiro.
 

No ano de 1932, Otávio entrou para volante como soldado contratado, além de também ter trabalhado como rastejador. Atuou de início com o Cabo Nicolau (que seria assassinado anos depois), em seguida com o tenente Zé Rufino e por último com o tenente João Bezerra.
 


Em suas lutas e sofrimentos em perseguição aos cangaceiros, o destino cuidou de colocar em seu caminho um antigo desafeto, o afamado cangaceiro Mariano. Como bem sabemos na região do Cangaleixo em 10 de outubro de 1936, Mariano, Pai Velho e Pavão foram mortos e decapitados pela volante de Zé Rufino, onde em tal ocasião trabalhava o soldado Otávio.
 

Além desse fato, Otávio esteve presente nas mortes dos cangaceiros Serra Branca, Eleonara e Ameaço. Onde integrava a volante de João Bezerra, ele também aparece na foto das entregas dos cangaceiros, onde se fazem presentes junto com os volantes, Pancada, Maria Jovina, Cobra Verde, Vinte e Cinco, entre outros cangaceiros.
 


Já o ápice de sua luta contra o cangaceirismo, foi na famosa ação na grota do Angico em 28 de julho de 1938, onde foram mortos Lampião, Maria Bonita e mais 9 cangaceiros, sendo uma testemunha ocular de um dos fatos mais famosos da história do cangaço. Neste mesmo ano de 1938, o soldado Otávio encerrou suas atividades como volante.
 

Um fato curioso sobre o soldado Otávio é que ele era muito amigo de Antônio de Jacó, o "Mané Véio" e também de Pedro de Cândido, famoso coiteiro de Lampião.


Com o dinheiro que recebeu por seus atos naquele fatídico dia, rumou com sua esposa Eutália Gomes da Mota para o interior de São Paulo onde comprou uma chácara e passou a trabalhar com suínos. Depois disso se mudou para Xambrê no estado do Paraná, onde trabalhava como administrador de uma grande fazenda.
 

Já idoso e acometido por alguns problemas de saúde, um de seus filhos o levou para morar consigo na capital de São Paulo, onde o mesmo veio a falecer meses depois, aos 96 anos por falência múltipla de órgãos, no ano de 2010.
 

O soldado Otávio foi mais um entre tantos que viveu e presenciou as terríveis situações que o cangaço oferecia naquela época. Deixou boas informações para seus familiares, que em breve vos apresentarei em postagens e em uma  live com seu neto Osmar. 







 Agradeço pelas fotos e informações ao amigo Osmar Pedroso , neto do soldado Otávio Alves da Mota.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Lampião em Sergipe

A proteção dos Britto´s

Transcrição de Jaozin Jaaozinn

Dos maiores protetores de Virgolino nas regiões de Sergipe, destacam-se duas famílias: Família Carvalho, de Eronides, e seu pai Antônio Caixeiro; e a Família Britto, de Francisco Porfírio e seus filhos.
 


Enquanto trabalhava como almocreve e com couro, Virgolino mantivera contato com a família Britto por muitos anos, cerca de doze ou mais; onde, não só conseguiu um bom dinheiro como também uma grande amizade e um grande futuro protetor das regiões de Sergipe e Alagoas.


Delphina de Lima Britto, Dona Fina, e Francisco Porfírio de Britto, o Chico Porfírio, eram os pais de Hercílio Britto e Antônio de Lima Britto, o Totoinho Britto, os seus principais coiteiros do cangaceiro Lampião. O clã era espalhado por toda a região de Sergipe e Alagoas, eram donos de inúmeras fazendas e terras, como, por exemplo, as fazendas Cuiabá, Canindé, Telha, Patos, Félix Deserto, Pedra D'água, Planta Milho, e tantas outras.
 

João Ferreira, quando se instalou em Propriá/SE, teve contato com Hercílio e sua família, ficando amigos por muito tempo. Em outubro de 1930, da passagem do bando para o estado de Sergipe, Lampião ficou hospedado na fazenda Jundiaí, de Hercílio Britto, onde, à noite, foi levado para a morada do seu irmão (de Lampião), conseguindo ainda assistir a passagem da tropa revolucionária de Juarez Távora, no momento sendo comandada pelo Tenente Juracy Magalhães.
 

Além da proteção garantida, O Cego recebia também armamentos e munições da família do Baixo São Francisco. Desde a prisão de Volta Seca e sua entrevista para os jornais que o jovem bandoleiro afirmava como sendo os Britto's principais fornecedores de armas para o bando; inclusive, entre esse ano, ocorreu uma varredura nas fazendas do Clã, conseguindo encontrar cerca de oito rifles e fartas caixas de munições.
 

Fato interessante de citar é de João Bezerra ser um "aparentado" dessa família. João acaba se casando com Crya Gomes de Britto, filha de Francisco Correa de Britto e de Emiliana Gomes de Britto, neta do Coronel Antônio Britto, o Antônio Menino (filho de Porfírio Romão de Britto Chaves) - Antônio Menino era irmão de Chico Porfírio -.
 

Crya nasceu no interior de Alagoas, no município de Piranhas, em 12 de março de 1915, e brincou entre a fazenda Gerimum e sua casa, juntamente com seus 14 irmãos. Casou-se com João em 1935, prometida por seu avô. Aos 21 anos de idade, incentivou as campanhas de seu marido contra os cangaceiros. Quando chegava seu esposo com sua volante, transformava a sua casa em uma improvisada enfermaria e hospedaria, ajudando quem quer que fosse.
 

Na morte de Virgolino, pelas forças volantes comandadas por Bezerra e demais, a fazenda Cuiabá, de Chico Porfírio, foi a principal que abriu as portas para os sub-grupos decidirem se continuariam ou iriam se entregar para as forças policiais. E, através desse contato do Tenente com os Britto, além também de Joca se safar da morte, o vaqueiro Domingos Ventura, da fazenda Patos, de Antônio Menino, acaba sendo cruelmente morto junto com seis membros de sua família, em uma falhada vingança do Diabo Loiro.
 

 

 

Nesse breve resumo, podemos ver as influências que essa família teve com o cangaço, principalmente com o reinado Lampiõnico, favorecendo ou desfavorecendo o afamado Capitão. 

Com as palavras de Archimedes: “pelos Britto ele sobreviveu, mas pelos Britto ele também morreu."
 

𝐹𝑂𝑁𝑇𝐸𝑆: 𝐿𝑎𝑚𝑝𝑖𝑎̃𝑜 𝑒 𝑜 𝐶𝑎𝑛𝑔𝑎𝑐̧𝑜 𝑛𝑎 𝐻𝑖𝑠𝑡𝑜𝑟𝑖𝑜𝑔𝑟𝑎𝑓𝑖𝑎 𝑑𝑒 𝑆𝑒𝑟𝑔𝑖𝑝𝑒 - 𝐴𝑟𝑐𝒉𝑖𝑚𝑒𝑑𝑒𝑠 𝑀𝑎𝑟𝑞𝑢𝑒𝑠; 𝐹𝑎𝑚𝑖𝑙𝑦𝑆𝑒𝑎𝑟𝑐𝒉

terça-feira, 21 de maio de 2024

José Kehrle

O padre alemão que fez história em Serra Talhada

 


O “Viagem ao Passado” resgata para os leitores um pouco da história Padre José Kehrle, um dos primeiros da família alemã a desembarcar no Brasil e a fincar raízes em Serra Talhada. O jovem padre chegou à cidade com 21 anos de idade e só foi em embora por perseguição política, as vésperas da decretação do Estado Novo, em 1936, aos 35 anos.

A foto em destaque foi doada à Paróquia de Nossa Senhora da Penha por uma de suas sobrinhas que reside em Serra Talhada, a Professora Emma Kehrle. Dona Emma que também doou um óculos de uso pessoal do padre, uma imagem do Menino Jesus que ficava em seu altar particular e uma lembrancinha do seu Jubileu de ordenação sacerdotal.

As relíquias foram conduzidas pelo jovem estudante de medicina, Matheus Magalhães, até o atual administrador da Paróquia. Ainda não se sabe onde as peças serão colocadas para serem expostas ao público. Vale registrar que o Padre José Kehrle foi o responsável pelo inicio das obras da atual Igreja Matriz da Penha.

A VIDA E A OBRA DE UM HISTÓRICO SACERDOTE

Os relatos abaixo resumem uma cronologia elaborada pelo próprio Pe. José Kehrle em carta datilografada para um sobrinho no ano de 1975. Nascido em 19 de maio de 1891, em Rheinstetten – Alemanha, o Padre José Kehrle chegou a cursar medicina na Universidade de Munique tendo desistido da carreira no último ano de faculdade para ingressar no seminário e tornar-se sacerdote.

Veio para o Brasil em 1909 e ordenou-se em 14 de março de 1914, em Olinda-PE tendo sido transferido no ano seguinte para Quixadá-CE onde chegou a ter contato com Pe. Cícero em Juazeiro. No ano seguinte, foi encarregado de assumir a secretaria do bispado de Floresta, onde ficou por quatro anos até, em 1919, se tornar o primeiro pároco de Rio Branco, atual Arcoverde. Nesta última cidade chegou a criar uma pequena banda e um “jornal falado”, com o intuído de gerar meios de distração para a população local.

Ainda em 1919 recebeu a ordem de retornar a Floresta junto a seu irmão, o também padre, Luiz Kehrle, onde foram incumbidos de construir uma nova catedral na cidade. Levantou-se uma discussão sobre o melhor local para erguer a construção e o padre José, por sugerir um plebiscito para a tomada da decisão, acabou sendo ameaçado pelo prefeito e seus jagunços tendo que se retirar da cidade no mesmo dia.

Nesta época, Pe. José Kehrle começou a sofrer diversas perseguições políticas tendo sido acusado de ser inimigo do Brasil (por ser Alemão) e de ser protetor de Lampião. Chegou inclusive a ser ameaçado de morte pelo chefe de polícia de Recife.

Em 1922 assume a paróquia de Nossa Senhora da Penha em Vila Bela (atual Serra Talhada) ficando também responsável pela paróquia de São José do Belmonte. Em Vila Bela deixou seu marco quando resolveu demolir a antiga igreja de duas torres (construção de traços muito rústicos e desarmoniosos para dar início à construção da atual Igreja matriz.

A construção seguiu até o ano de 1936 quando, por questões políticas, Pe. José foi transferido de volta ao secretariado da Diocese em Pesqueira. Na sede da diocese começou a presenciar diversas aparições de Nossa Senhora das Graças que lhe avisava de muitos fatos futuros de sua vida pessoal e sacerdotal (os relatos dessas aparições constam no livro: “Eu sou a Graça”, de Dom Rafael Maria Francisco da Silva).

Ainda em sua missão pelo Sertão pernambucano, o padre alemão passou pelas cidades de Venturosa, Afogados da Ingazeira, Brejo da Madre de Deus e Moxotó. Por fim, chegou em Buíque no ano de 1947, onde construiu sua casa e a Capela de Nossa Senhora das Graças, criou uma escola de educação agrícola e uma maternidade com recursos vindos da Alemanha, escreveu livros que foram censurados e atendia muitos pobres que vinham buscar remédios, esmolas e conforto espiritual.

José Kehrle faleceu em Buíque no ano de 1978, aos 87 anos. Sua grandiosa contribuição para a história do interior de Pernambuco ainda é pouco divulgada, mas seu pioneirismo e suas ideias inovadoras foram fundamentais para o crescimento e propagação da fé cristã pelo sertão do estado.

 

O Padre José Kehrle, o quarto da direita para esquerda, na farmácia do Dr. Lima Pachêco, na então cidade de Villa Bella, em agosto de 1928

 

O Padre José Kehrle, ao centro, na antiga Igreja de N. S. da Penha, construída em 1872 e demolida e 1925, o prédio ficava localizado no centro da Praça Sérgio Magalhães, no ponto onde atualmente fica o pé de catingueira metálico



 

Relíquias do Padre José Kehrle doadas pela sobrinha Emma Kehrle

Pescado em O Farol de notícias

 

Bônus: 

 

Imagem do Padre Kehrle e sua família, inédita na literatura


Em dois momentos com o célebre Frei Damião


 *Créditos das imagens Ana Ligia Lira