Entretenimento sim, História, não!
Por Junior Almeida
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Foto: Divulgação |
Em exibição no streaming Disney Plus desde 4 de abril (de 2025) a série “Maria e o Cangaço”, que tem seu enredo baseado no livro da escritora Adriana Negreiros, “Maria Bonita, Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço”, publicado em 2018. A obra cinematográfica da produtora norte americana, evidentemente, despertou a curiosidade de milhares de cinéfilos, além dos muitos pesquisadores do cangaço. Como historiador que se dedica a cascavilhar a sangrenta saga nordestina, assim como demais colegas, também me interessei em assistir aos seis primeiros capítulos da temporada de estreia, decidindo, assim que o fizesse, tecer alguns comentários a respeito da referida produção. Deixando claro que além de ver o trailer da própria série, praticamente não li nada a respeito sobre a obra, um ou outro anúncio, ou chamada de matérias, isso, para não me deixar influenciar pela opinião dos outros. Pela compreensão de tudo que vi no filme e consegui entender, respeitando sempre quem pensa diferente, vamos às MINHAS observações:
A fotografia do filme é impecável. Os cenários naturais, destacados pelas imagens aéreas de drones são belíssimos. As imagens da Baixa do Chico, em Glória, na Bahia, com seus majestosos cânions secos, são uma atração à parte da película. As terras da árida Cabaceiras, na Paraíba e Piranhas, em Alagoas, ambos municípios sertanejos, também foram usadas nas locações da série. Na chamadas “Lapinha do Sertão” e “Roliúde Nordestina”, eu tive a oportunidade de conhecer alguns desses cenários, os naturais, e os montados pela produção da série. Na segunda cidade, a casa/museu do Padre Ibiapina, localizada ao lado esquerdo da igreja que serviu de cenário para o maravilhoso “O Alto da Compadecida”, clássico do cinema nacional, em “Maria e o Cangaço” é a sede das forças de repressão ao banditismo. Foi nessa casa que aconteceu um dos tiroteios fictícios entre militares e cangaceiros. Outro imóvel de Cabaceiras, esse, ao lado direto da referia igreja, que os Estúdios Disney usaram em suas filmagens, foi a fictícia bodega de um coiteiro e compadre de Lampião, assassinado covardemente pelo sádico personagem tenente Silvério Batista. Em setembro de 2024, estive em Cabaceiras, no evento “Borborema Cangaço”, conhecendo esses lugares. Havia pouco tempo que a equipe do Disney esteve por lá, filmando, deixando as celas no museu do Padre Ibiapina e a bodega/cenário ainda montadas, servindo como atração turística. Bela sacada das pessoas de lá.
Como pesquisador às vezes é um “bicho” meio chato, encontrando até mesmo uma vírgula fora do lugar na obra de um colega, não poderia deixar de observar alguns detalhes da série, que não condizem com a realidade do que foi a grandiosa e sangrenta História do cangaço. Logo na abertura do primeiro capítulo, aparece a legenda informando que a obra “é baseada em fatos reais”. Não é bem assim. Em minha modesta opinião, ficaria melhor a informação de que tal filme “continha personagens reais e imaginários em um enredo fictício.” Seria mais lógico e honesto.
Na série, a indumentária dos atores/cangaceiros, não é o que de fato existiu no cangaço. No lugar da mescla caqui e azul dos bandoleiros, os chamados guerreiros do sol usam gibões de couro, parecendo, aos olhos menos atentos, com simples vaqueiros. Os chapéus de abas quebradas dos cangaceiros não têm os adereços que conhecemos, especialmente da fase mais exibicionista do cangaço lampiônico, como as estrelas de Davi, encontradas nos chapéus dos ditos capitães Virgulino e Corisco, dentre outros, ou mesmo a simples cruz, do chapéu de Candeeiro II (Manoel Dantas Loiola). O que vemos na série são chapéus adornados com várias estrelinhas de metal, dessas usadas em peças de couro, como o chapéu coco do vaqueiro ou arreios para animais. Além da diferença da vestimenta, também falta o colorido dos bordados nos bornais. No filme, essas peças parecem mais com rotos bisacos de caçador.
Uma mudança nos antagonistas da saga cangaceira, esse sim, um erro grotesco, é que ao invés de lutarem contra as forças policiais dos Estados nordestinos, os cangaceiros têm como seu ferrenho perseguidor o Exército Brasileiro, com direito da exibição em cena, do símbolo daquela instituição militar. Como se não bastasse a nódoa histórica pelo EB ter assassinado os miseráveis de Canudos, ter implantado a ditadura no país em 1964, além de episódios mais recentes, agora, vem uma produtora estrangeira associar a imagem da respeitada instituição a eventos em que não participou diretamente. Decisão infeliz dos produtores, em inserir o “Braço Forte Mão Amiga” no enredo. Aliás, o roteiro é todo pró cangaceiro, pois todas as mortes praticadas pelo personagem inimigo principal dos bandoleiros, foram realizadas com atos de covardia. O filme é feito para quem assiste odiar a força policial, no caso, o Exército.
Ainda no primeiro episódio da série, que se passa em 1932, aparece um veículo de transporte para os militares. Como a cena mostra o caminhão de longe, não dá para identificar bem o modelo. Parece ser um GMC CCKW, esse, que começou a ser produzido a partir de 1941, mas se o veículo usado nas cenas foi o Reo, fica mais anacrônico ainda, pois o primeiro modelo desse bruto só começou a ser fabricado em 1950.
A talentosa Ísis Valverde, a primeira dama do cangaço, no enredo, portanto personagem a principal da série, é mineira de Aiurioca. Pode ela interpretar o papel da baiana Maria Bonita?! Lógico que sim. A carioca Tânia Alves, por exemplo, até hoje é lembrada como a Maria Bonita, do seriado da Globo de 1982, no que ela mesma diz que “não foi ‘um’ papel e, sim ‘o’ papel” de sua carreira. O problema, em minha opinião, é o sotaque da atriz, que para quem é de fora da região, pode até passar despercebido, mas, para um nordestino raiz, desses do interior, soa estranho. Ficou caricato. Um estereótipo do que geralmente as emissoras do Sudeste fazem do nordestino. Outra coisa, que não gostei, foi uma espécie de escorbuto que arrumaram para a rainha do cangaço. Pelo que se sabe, ou o que se sabia, até então, é que Maria Bonita tinha uma dentição perfeita, dentes certinhos e brancos. O amarelo da boca de Ísis Valverde ficou feio, aparentando falta de higiene da mulher de Virgulino.
Quanto ao gaúcho Júlio Andrade, o Lampião do filme, para mim, assim como Isis Valverde, o problema é a maneira de falar. Não que seja da minha conta, claro, mas questiono: será que em todo Nordeste, capitais ou interior, não tinha um ator traquejado com a fala e os costumes da região que pudesse atuar nesse papel?! Acredito que sim.
No segundo capítulo, aparece uma cena aonde o tenente Silvério mata covardemente um agricultor, mesmo obtendo dele informações do paradeiro de Lampião, fazendo com que o espectador alimente ódio às forças de repressão ao cangaço. Como dito, aliás, o enredo é bem parcial nesse sentido, pois enquanto mostra cenas como essa, de covardia dos homens da lei, por outro lado, sempre procura mostrar que os cangaceiros são sertanejos de fé, místicos, com suas rezas fortes de fechamento de corpo. Até na abertura da série, umas das primeiras imagens é de um oratório, ligando-o aos cangaceiros. No terceiro episódio, em uma cena em que o volante Silvério Batista chega ao coito e não encontra ninguém, então esbraveja perguntando "quem foi a 'alma sebosa' que avisou aos cangaceiros para que eles fugissem". Expressão totalmente anacrônica, que não existia na época. Esse termo se não criado, foi muito disseminado pelo apresentador pernambucano Joslei Cardinot, quando apresentava seu programa policial na Tv Tribuna, do Recife. Mais à frente, a atriz que interpreta “Lídia de Zé Baiano”, que na série tem outro nome (como veremos adiante) usa uma expressão que não era dela, ao dizer que "o cangaceiro quis 'abusar' dela". Quanto refinamento nas palavras de pessoas tão rudes. Não acredito que condiz com a realidade da época e lugar.
Outras cenas do enredo, que acredito estarem dentro da chamada licença poética, não da história real, é a que mostra a recém parida Maria Bonita, fugindo, cavalgando de pernas escanchadas no animal, bem como o batizado de Expedita, com apenas Lampião e sua companheira, sem nenhuma segurança, um fato impensável para quem entende o mínimo de cangaço. Nesse episódio do batizado, foi realizado um ataque da força volante, isso, por conta de uma delação de um irmão de Maria de Déia. Depois, por conta dessa suposta traição, o irmão de Maria Bonita foi ferrado pelo cangaceiro Zé Bispo (Zé Baiano) e, depois assassinado, novamente pelas costas, pelo tenente Silvério Batista. Tal evento nunca existiu na História do cangaço! Está apenas na fantasia de série.
No capítulo quatro, Maria Bonita é quem flagra a mulher do cangaceiro Zé Bispo (Zé Baiano), com Lourdes (Lídia) em adultério com o cabra Curió. Na trama, prevendo o que poderia acontecer, a companheira de Lampião deu dinheiro à imprudente bandoleira, para que ela e o amante pudessem fugir. Pura fantasia. Por outro lado, como na vida real, a mulher adúltera foi morta a pauladas pelo seu companheiro, sendo diferente da realidade o desfecho, pois na série, dois cangaceiros foram mortos, o “urso” e o cangaceiro que também queria foliar com Lídia, ou melhor: com Lourdes, quando sabemos que o bandoleiro que corneou Zé Baiano, protegido pelo chefe Corisco, não foi morto nesse episódio. Por falar no chamado “Gorila de Chorrochó”, no filme, o deixaram com um tom de pele mais claro e tiraram-lhes os cabelos. O Zé Baiano (Zé Bispo) da série é moreno claro e careca.
Ainda, uma coiteira baiana de nome “Fideralina” (referência à baiana Dona Generosa, ou à matriarca cearense da família Augusto? À segunda não deve ser, pois essa faleceu em 1919) é incumbida por Lampião de comprar terras para ele, mas termina o traindo para roubá-lo, sendo mutilada como punição. Na ficção, essa coiteira é muito culta e tem uma filha que canta em inglês e toca no piano músicas clássicas. Fideralina acompanha a filha, pois é uma talentosa soprano. Puro glamour em meio às caatingas baianas.
No capítulo cinco, outra licença poética do enredo, pois Maria Bonita é presa, quando ia fugindo, após o volante Silvério Batista, sempre apresentado como sádico e covarde, ameaçar matar a pequena Expedita, apontando-lhe uma arma na sua cabeça. Neste mesmo episódio, uma cena inimaginável para quem estuda cangaço: furiosa, Dona Déia confronta Lampião, o chamando de maldito, por conta de ele ser o responsável pela morte de um dos seus filhos, no caso, o seu cunhado, três anos antes. O detalhe que chama atenção nesse capítulo, é o agravamento da tuberculose de Lampião. Essas cenas teoricamente se passam em 1935. Corroboram para esse pensamento, a passagem em que Maria Bonita é Baleada. Na vida real, tal evento ocorreu em julho daquele ano, em terras pernambucanas de Serrinha do Catimbau, então distrito de Garanhuns, Pernambuco. Nessa passagem, foi dada mais emoção ao caso, pois a baianinha, que estava presa, foi resgatada a cavalo pela cangaceira Dadá, mas quando fugia em sua garupa, o tenente Silvério (sempre ele) atirou nela pelas costas. De acordo com a História, sem contar Angico, a única vez que Maria de Déia foi baleada, foi em 20 de julho de 1935, em local já citado.
Nesse mesmo episódio, dar-se um pulo no tempo, mostrando Maria já curada na data de 7 de março de 1938 e, dizendo que já são sete meses depois dos ferimentos da bandoleira, portanto, tal ação teria ocorrido em agosto de 1937. Outro confronto de datas da vida real para série, é que aparece ao bando, Benjamin Abrahão, capturado e desconhecido de Lampião e seus cabras. Historicamente as datas não batem. O chamado Turco já era conhecido de Lampião desde 1926, em Juazeiro. Outra coisa: as filmagens de Benjamim foram realizadas em 1936, portanto, um ano antes do que mostra o filme. Também achei o vocabulário dos cangaceiros do filme bem refinado, o que não condiz com o linguajar sertanejo de homens sem instrução daquela época.
No último episódio, um primeiro tenente (Silvério Batista, no enredo, é segundo tenente) chega à sede de operações policiais e, ao perceber o desleixo dos militares, fala que “sabe porque essa praga comunista que chamam de cangaço não se acaba.” Essa passagem nos chamou atenção, tendo em vista, que na História já se tentou ligar o cangaço ao comunismo, mas, isso com pouca frequência. Em um desses episódios, Frederico Pernambucano de Mello, citando o jornal Gazeta de Notícias de 26 de agosto de 1936, nos conta em seu “Estrelas de Couro a Estética do Cangaço” o seguinte:
O secretário do Interior e Justiça do Ceará, Martins Rodrigues, membro da poderosa Liga Eleitoral Católica, a LEC, movimento direitista simpático ao governo, em visita à cidade de Juazeiro do Norte no mês de agosto de 1936, em discurso às lideranças locais, disse com ares de mistério que tinha consultado ‘certos documentos’ no Rio de Janeiro, que lhe permitiam sustentar que os dirigentes do extremismo vermelho não tinham escrúpulos de lançar mão de todos expedientes e elementos, até mesmo de cangaceiros como Lampião, para serviço de seus sinistros planos.
Para nós, do meio “cangaceiro”, uma grata surpresa no último episódio da série, por conta da aparição do talentoso poeta Neto Ferreira, de Campina Grande, declamando em uma típica feira nordestina, pouco antes de eclodir um tiroteio entre Lampião e policiais. Uma cena emocionante, que gostei, foi a que aparece Maria Bonita, triste, imaginando estar com a filha Expedita, sentindo a sua falta. Acredito que isso deve sim ter acontecido por várias vezes, afinal, a bandoleira era mãe. Por falar na filha de Lampião, no seriado Expedita teria sido criada por uma tia, e não pelos vaqueiros Manuel Severo e sua mulher Aurora. Neste mesmo episódio, Lampião e Maria Bonita abandonam seu bando, com o propósito de fugir, depois se arrependem e voltam para os seus comandados. Passagem impensável para quem conhece do assunto.
Outras disparidades históricas da série, por mim observadas: a morte de Zé Baiano se dá em 1938, e não em 1936, como aconteceu de verdade e, ao invés de ser morto por civis, na ficção, ele é assassinado por um outro cangaceiro. Nas cenas finais, não aparece a figura do coiteiro Joca Bernado, nem toda trama que culminou na morte do rei do cangaço e parte de seu bando. No enredo dos Estúdios Disney, quem entregou o coito de Lampião foi um cangaceiro desgarrado do bando e, depois da delação, foi (novamente) covardemente assassinado pelo tenente Silvério Batista. No dia do combate em Angico, Corisco sozinho, é quem faz o parto de Dadá e, por isso não atravessou o rio para se encontrar com Lampião no coito. No início da das cenas do combate de Angico, Lampião orienta Maria Bonita “a pegar Sila e Inacinha e fugir. Como assim?! Inacinha tinha sido presa em Piranhas, dois anos antes, portanto, não estava em Angico. Para ser mais específico, a frase dita pelo Lampião da série foi:
Tu (Maria Bonita) pega Sila e Inacinha e as outras, e arriba!
Outra fantasia dessa passagem, é que todos os cangaceiros viram quando os homens do Exército estavam chegando e cercando o local para ataca-los, diferente do que realmente aconteceu em Angico, onde a força chegou na surdina. Aliás, o local da morte de Lampião, no filme, é bem diferente de onde aconteceu o fato. Em “Maria e o Cangaço”, a batalha final se deu em campo aberto, numa planície. Na minha opinião, já que a equipe do seriado estava na região, bem que poderiam ter usado o cenário real, a Grota de Angico, para essa filmagem. Neste tiroteio do filme (Angico), morreram três mulheres, isso ainda quando Maria Bonita atirava ao lado de Lampião, quando se sabe que na história do derradeiro combate de Lampião foram duas as mulheres a morrer; Enedina, mulher de Zé de Julião, o Cajazeira, e a própria Maria Bonita.
Nos créditos da produção aparece como tendo dado consultoria à equipe da série, o Mestre Frederico Pernambucano de Mello e Jairo Luiz Oliveira, de Piranhas, dois experientes estudiosos do cangaço. Por tudo que vimos nos seis capítulos do filme, ficou a impressão de que a dupla de pesquisadores não teve acesso à totalidade do roteiro, ou mesmo a ideia de que suas opiniões não foram levadas em conta, pois são erros bobos, que poderiam muito bem não aparecer no filme. Se tivesse que dar uma nota à série, como entretenimento, minha nota seria alta, mas isso, analisando a película como fantasia, pois se a nota fosse dada pela análise da História, seria pequena, pois, da maneira como foi produzido, acredito que o filme vá muito mais confundir a cabeça dos que estão iniciando suas pesquisas cangaceiras.
Em MINHA opinião, a série “Maria e o Cangaço” é uma boa pedida como entretenimento, como História, não!