... Despedida
O tema Cangaço é instigante de qualquer jeito, seja em roda de conversa, em palestras e seminários, em leituras e até nas imaginações mais irreais ou ilusórias. Contudo, nada igual ao conhecimento de perto dos cenários e paisagens daquela brutal e perversa realidade. Não para engrandecer ou glorificar os feitos cangaceiros, mas pelo conhecimento, pelo confrontamento do que se imagina com a realidade das caatingas, dos coitos, dos locais de combate, com suas causas e consequências.
Uma cruz esquecida no meio do tempo, um tronco de velha árvore ainda marcada por disparos, uma casinha de oração, uma sepultura já quase desfeita pela voracidade do tempo, uma casinha com seu barro caído e cheio de escritos da história. Tudo isso precisa ser conhecido, de modo a juntar o que se sabe e o que se imagina, com o que resta daqueles medonhos cotidianos nos sertões nordestinos. Após cada contato com o que restou do cangaço, então dizer: Meninos, eu vi! E talvez o visitante ou pesquisador diga que o encontrado e o avistado são mais importantes do que todos os livros já lidos sobre a saga cangaceira.
Meu pai Alcino vivia no rastro dessa história, vivia rastejando cada passo cangaceiro nos sertões de Poço Redondo e mais além. Ouviu testemunhos dos personagens da saga, duvidou do que o livro dizia perante o que encontrou, e, pela própria percepção e sabedoria matuta, foi construindo suas próprias histórias, e tão reais que ainda é possível avistar em meio às caatingas o que ele escreveu. Eu não tenho essa maestria do meu pai, não tenho o dom de traduzir em letras o que meu pai tão bem descreveu, ainda que tivesse apenas o estudo primário.
Mas eu, filho de Alcino, já fiz o que podia. Já visitei coitos, marcos históricos, locais de combates. Já visitei muitas cruzes, muitas casinhas de oração, locais de ex-votos pelos inocentes mortos pelos cangaceiros, locais onde o sangue espargiu pela violência dos bandoleiros e volantes. Na minha imaginação, eu vi Lídia amarrada ao umbuzeiro, e sabendo que logo seria morta por Zé Baiano. Eu vi Zé Bonitinho ser degolado e o sangue se espalhar pelo batente. Eu vi Adelaide dando seus suspiros finais embaixo do umbuzeiro. Eu vi o menino Galdino e seu avô Monteiro sendo covardemente mortos pela sanha assassina de Gato. Eu vi o ex-cangaceiro Juriti morrendo ateado em fogo. Eu vi Clemente, Doroteu e João transformados apernas em túmulos e em cruzes da memória. E vi muito, muito mais. Meninos, eu vi!
Mesmo num misto de dor, de prazer pelo conhecimento absorvido, e de revolta ante aquele mundo sem lei e sem dono, tudo isso eu vi e registrei. Hoje conto apenas o que sei pelo que conheci. Mas não mais farei isso. A Expedição Rota do Cangaço Poço Redondo 2025, comandada pelo amigo Aderbal Nogueira e marcada para acontecer dia 21 de julho nos sertões de Poço Redondo, será a última que acompanharei os visitantes e estudiosos do tema Cangaço. Em nenhum outro evento estarei presente, nem como acompanhante nem como palestrante ou mesmo mero participante.
Sei o que sei. Sei o que já aprendi. E já tá bom demais. Nem no Memorial nem na Casa de Pedra receberei turistas ou interessados em informações sobre o Cangaço ou sobre o mundo sertanejo. Não queria que fosse assim, mas sou forçado a me recolher de toda a vida cultural, histórica e turística de Poço Redondo.
At.te Rangel Alves da Costa