O Cangaço em "Fogo Morto"
Por Cristiane Laudemar Rodrigues Assis e Thalita Doretto Brito
Monografia para Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP Faculdade de Biblioteconomia e Ciência da Informação. São Paulo Junho de 2010.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo analisar como o tema “cangaço” aparece na obra “Fogo Morto”, do autor paraibano José Lins do Rego.
Lins do Rego nasceu em 03 de julho de 1901, no município de Pilar, na Paraíba. Filho de João do Rego Cavalcanti e Amélia Lins Cavalcanti, foi criado pelo avô materno, José Lins Cavalcanti Albuquerque, em decorrência da morte prematura de sua mãe. Tal circunstância colocou-o, ainda menino, em contato com o ambiente que seria presença marcante em sua obra literária: a zona rural nordestina e o engenho de açúcar. Mais do que registrar tal contexto, Lins do Rego foi cronista coevo do processo de modernização pelo qual passou a produção açucareira nordestina, e da decadência que assolou boa parte dos donos dos antigos engenhos, que se viram preteridos pelas modernas usinas açucareiras, que alteraram significativamente o modo de produzir e as relações de trabalho no nordeste, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
Conviveu de perto também com o fenômeno social conhecido como cangaço, que só existiu no nordeste brasileiro, entre 1900 e 1940. Portanto, estas serão duas marcas registradas dos romances de José Lins do Rego: o cangaço e a decadência da antiga aristocracia açucareira nordestina, da qual seu avô fazia parte. Sua obra insere-se na escola literária do modernismo, com características regionalistas, onde destaca o Nordeste brasileiro. Nesse contexto, mostrava os problemas e desigualdades sociais de nosso país. Apresentava linguagem simples e coloquial, somente ocasionalmente desrespeitando a norma culta da língua portuguesa. Produziu duas séries de livros temáticos, uma dedicada à cana-de-açúcar e outra ao cangaço.
No ciclo da cana de açúcar publicou Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936). Esses romances apresentam o processo de decadência dos engenhos da Paraíba, substituídos pelas usinas mais modernas. Apesar do autor não considerar Fogo Morto (1943) um elemento desse ciclo, o declínio da aristocracia açucareira aparece retratado na obra. O segundo ciclo temático das obras de José Lins trata do fenômeno social denominado cangaço. Os títulos publicados foram Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953).
1ª edição |
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Como testemunha ocular do desenvolvimento desse movimento no sertão nordestino, o autor descreve a vida desses bandidos e suas crueldades e peripécias. Podemos afirmar que Fogo Morto também apresenta o assunto, mostrando as lutas entre o cangaceiro Antônio Silvino e o chefe da volante Tenente Maurício. Publicou outros romances sem temas interligados como Meus Verdes Anos, livro de memórias, Histórias da Velha Tetônia, literatura infantil, Pureza, Riacho Doce, Água Mãe e Eurídice.
2. O CANGAÇO
2.1 Origens O termo cangaço vem de canga, que segundo DÓRIA (1982, p. 24) era “o nome dado ao armamento do indivíduo que andava de bacamarte passado sobre os ombros, tal qual boi no jugo, sobrecarregado ainda de uma quantidade de outras armas”.
O cangaço pode ser classificado como um movimento de banditismo social. Esse termo é utilizado para designar o indivíduo, membro de uma sociedade rural que, pelas injustiças sofridas ao longo da vida, torna-se um fora da lei perante o Estado e a elite latifundiária. Ele se torna um bandido e pratica crimes comuns, como assassinatos, estupros e outros tipos de violência. Seu diferencial é agir contra a as autoridades locais, encarnando uma espécie de justiceiro para as classes sociais menos favorecidas. Geralmente esse tipo de fenômeno acontece em sociedades rurais que passam por um momento de ruptura, que pode ser da mudança entre uma organização tribal ou de clã para uma forma mais moderna de associação como a sociedade capitalista.
Portanto, esses movimentos significariam uma resistência às mudanças sociais, econômicas e políticas de uma região. Geograficamente, o cangaço aconteceu em uma única região brasileira: o sertão nordestino. Originou-se entre as últimas décadas do século XIX e os primeiros anos de século XX. Em meados do século XIX, muitos destes homens eram moradores e/ou agregados de grandes latifundiários e proprietários de gado.
Como seus dependentes, esses jagunços contribuíam com a proteção desse território, cumprindo sempre os pedidos do seu senhor. Juridicamente eram civis, que em momentos específicos pegavam em armas para defender seu coronel ou vingar algum tipo de afronta. “Os bandos de homens armados não eram constantes e sim temporários, agrupando-se e desfazendo-se ao sabor das disputas e dos conflitos”. (QUEIROZ, 1997, p. 24).
Com o tempo, os bandos se tornaram independentes dos grandes latifundiários, especialmente em momentos de grandes calamidades, como períodos muito longos de seca. Nesse contexto, costumava ocorrer a migração do dono da terra e sua família para regiões não atingidas pela seca, abandonando temporariamente a fazenda e regressando posteriormente. Tal fenômeno fora registrado por vários autores, como Graciliano Ramos, em “Vidas Secas”. As alterações climáticas desorganizavam a economia sertaneja, forçando também a migração de parte da população residente. Neste contexto, roubar passava a ser uma opção perfeitamente plausível, e ser cangaceiro se tornava um meio de vida e sobrevivência.
2.2 Fatores
As causas principais para a ocorrência do cangaço como fenômeno social podem ser divididas em estruturais e conjunturais1. Dentro dos fatores estruturais podemos apresentar três motivos: o tipo de sociedade formada na região, o oferecimento de poucos postos de trabalho e a resistência à instalação dos aparatos do Estado. Nas relações sociais no sertão nordestino, as comunidades eram formadas por grupos de parentela numerosa, unidas por laços de sangue ou de compadrio. No interior destes arranjos, brigas entre grupos familiares diferentes eram constantes, muitas vezes motivadas por honra e vingança. Tais circunstâncias criavam, para os latifundiários, a necessidade de recrutamento de um verdadeiro exército de jagunços, sempre a postos para os mais variados serviços. Segundo nomenclatura proposta por Queiroz (1997).
Contudo, a regra na caatinga era a escassez de postos de trabalho. E, com a seca, as pessoas se deslocavam para regiões mais prósperas, como a Zona da Mata. Quando essas regiões também se encontravam em dificuldades, os assaltos eram constantes. Após o advento da República no Brasil 2, inicia-se a instalação de todo um aparato político-administrativo estatal na região. Havia a necessidade de criar Câmara de vereadores, juizado e órgãos de cobrança de impostos, que nunca estiveram presentes na vida das pessoas que viviam nessa sociedade. Neste contexto, o cangaço é um movimento de resistência a tal “modernidade”. Existem muitos exemplos, citados por Queiroz (1997), sobre cangaceiros que cortavam as linhas de telégrafo, invadiam vilas para desmoralizar as autoridades ou impediam a construção de ferrovias.
É preciso compreender tais ações sob duas perspectivas. Por um lado, o comportamento dos cangaceiros correspondia à defesa natural de seus interesses, uma vez que quanto mais distante as forças repressoras estatais estivessem, mais livres estariam para agir como melhor lhes ocorresse. Por outro, é a reação a um governo longínquo, quase uma abstração, que só era reconhecido pela população em seus agentes repressores, os chamados volantes. Contudo, tais as características não servem, sozinhas, para explicar a ocorrência do cangaço, uma vez que muitas ainda persistem no Nordeste. Para descobrir, portanto, as causas mais prementes para o surgimento desse movimento, é necessário analisar as causas conjunturais, ou seja, os fatores mais imediatos e datados que justificam a origem do fenômeno.
Esses motivos seriam: crises constantes na produção açucareira, a modernização das usinas de açúcar, a falta de compradores para os produtos excedentes do sertão, redução sazonal da oferta de trabalho. A produção açucareira no Nordeste brasileiro foi implantada no século XVI, e foi decaindo a partir da concorrência com açúcar holandês, cultivado nas Antilhas Holandesas3, a partir da segunda metade do século XVII. Apesar disso, o produto nunca deixou de constar na pauta da produção nordestina. A partir de 15 de novembro de 1889.
3 América Central.
Porém, a partir de 1850 a produção brasileira passou a sofrer muito mais com a concorrência internacional. Além de perder espaço no mercado dos Estados Unidos para a produção de Cuba e de áreas coloniais norte-americanas como Porto Rico, o açúcar brasileiro sofreu também forte concorrência do açúcar de beterraba produzido na Europa. O acirramento da competição no plano internacional foi consequência de vários fatores. Ao açúcar brasileiro era praticamente impossível concorrer em condições de igualdade com zonas produtoras tecnicamente mais avançadas, como as colônias européias na América Central e o sul dos Estados Unidos.
Além disso, tarifas alfandegárias protecionistas nos Estados Unidos e na Europa dificultavam o acesso a estes mercados. Tal situação, aliada ao surgimento de outras áreas produtoras com técnicas novas, como nas Ilhas do Caribe e Egito, elevou a qualidade e aumentou a quantidade do açúcar produzido. Com isso, os preços do produto caíram e o mercado mundial tornou-se instável para os brasileiros – dificultando qualquer tentativa isolada de investimento em maquinário moderno e alterações significativas na forma de se fazer açúcar. Sem conseguir acompanhar a rápida modernização mundial, o Brasil perdeu espaço no comércio internacional, voltando sua produção açucareira para o mercado interno. No caso nordestino, isso se traduziu em produzir, além do açúcar, a rapadura e a cachaça.
Porém, tal mercado era limitado e não impediu a decadência da produção açucareira nordestina. O período do cangaço (1900-19040) coincidiu com esta crise, e com a tentativa de modernizar a produção através da implantação de grandes usinas, que serviram de catalizador da ruína dos engenhos tradições sem, contudo, proporcionar melhorias nas técnicas de plantio da variedade e tampouco nas relações de trabalho que vigoravam no campo. Assim, rareavam os trabalhos possíveis no sertão e, em períodos de seca, havia o desespero dos que precisavam de alguma ocupação para se sustentar.
Queiroz (1997, p. 61 e 62) resume assim as principais causas para o ingresso das pessoas no cangaço: “Menor produção, menor ganho, rebaixamento do nível econômico, maior tempo livre para aventuras e conflitos, era o resultado para o sertão, de crise da cana e do algodão, que se estendeu por todo o começo do século XX”.
2.3 Mito do bom cangaceiro
Os bandos de cangaceiros proliferaram pelos sertões nordestinos. Três personagens principais entraram para a história: Antônio Silvino, Lampião e Corisco. Esses homens se tornaram mitos, e foram transformados pela literatura, cinema e outros instrumentos da arte em justiceiros, lutadores e preocupados com os pobres e oprimidos. Mas será que esses bandidos foram realmente defensores dos necessitados de toda ordem? Os pesquisadores na área afirmam que não.
Essa visão de que o cangaceiro é bom justificou-se porque ele seria um fruto de uma injustiça social e portanto, sensível a elas ao longo de seu percurso como bandido. Segundo Queiroz (1997), os cangaceiros eram somente defensores de seus próprios interesses, sem levar em consideração as necessidades do outro. Para tanto, a autora arrola uma série de características colhidas desses homens por cronistas coevos, que nos dão uma boa idéia de quem eram, na realidade, esses homens. Desta forma, os cangaceiros eram cruéis e sanguinários com todas as classes sociais, não se importando com a miséria do sertanejo mais pobre ou com a fortuna do grande latifundiário. O dinheiro que era roubado não era distribuído aos pobres.
Essa repartição do roubo era feita entre os membros do bando e entre os coiteiros fiéis a eles. Todos os “rivais” eram mortos, sem distinção. Mesmo na literatura de cordel, onde o mito do cangaceiro bom é muito forte, percebemos vozes dissonantes que demonstram que a realidade não é como a arte a recriou. Curran (2003 p. 61 e 62), afirmou o seguinte sobre esse mito: Mais do que em qualquer outro tema do cordel, vê-se aqui o processo folclórico de idealizar a realidade, convertendo-a em mito ou lenda. (...) Virgulino Ferreira, que aterrorizou o Nordeste durante vinte anos, converteu-se totalmente em mito: suas ações sangrentas foram quase esquecidas, e o matador feroz transformou-se em vítima de uma sociedade injusta.
Essa visão romântica do cangaceiro teve sua origem, segundo Queiroz (1997), na década de 50, como figura que demonstrava a nacionalidade do povo brasileiro. Esse é um fenômeno que surge entre intelectuais brasileiros nesse momento histórico. Desta forma, esses pensadores contrapuseram o Nordeste legitimamente nacional e pobre e o Sul do país que era estrangeiro e rico. O cangaceiro torna-se o herói humano e justiceiro, em oposição aos entreguismos ao capital estrangeiro vigente na época. Esse discurso do cangaço retirou a sua realidade, idealizando-o de forma exagerada.
Curran (2003, p. 75 e 76) observa a representação desse fenômeno na literatura de cordel: Os cinquenta anos seguintes [após o fim do cangaço] trarão ainda muitas histórias novas – algumas baseadas em velhos folhetos, outras totalmente ficcionais, ampliando o mito do cangaço. Esse fenômeno tornou-se a epopéia moderna do Nordeste e o cangaceiro, arma política utilizada pela esquerda para disseminar sua visão da política. Chandler (1986, p. 15) demonstra como a realidade do cangaceiro é transformada em mito: Nas sociedades rurais subdesenvolvidas, o banditismo sempre captou o interesse e a fantasia do povo. Na verdade, o fascínio que estes bandidos exercem e a criação de lendas sobre eles (...) parecem ter sido universalmente difundidos.
O homem, ou ocasionalmente, a mulher, que vive fora da lei como um celerado errante, aparentemente livre de qualquer restrição da sociedade, desperta uma fibra de nossa imaginação, principalmente quanto mais remotas forem sua colocação no tempo e no espaço (...) As vidas destes homens serviam de assunto a trovadores e a outros contadores de histórias populares, cuja tendência era a de mitificá- los, exagerando alguma boa ação que por acaso tivessem feito, mas omitindo a realidade histórica.
3. O CANGAÇO EM FOGO MORTO
Em Fogo Morto, o cangaço aparece através da figura do bando do cangaceiro Antônio Silvino, perseguido na região da Paraíba pelo chefe das tropas “volantes”, Tenente Maurício. Apesar da narrativa sobre o tema ser secundária, ela demonstra a visão de José Lins do Rego sobre o assunto. Como filho e neto de senhor de engenho, ele demonstra, ao desenrolar da história, a mesma visão apontada pelos estudiosos sobre o assunto, o cangaceiro cruel e sanguinário, que amedronta boa parte da população, encanta alguns membros das classes sociais mais baixas e manipula a ação dos poderosos da região. Os personagens apresentam comportamentos diferenciados sobre o tema. Mostramos abaixo as principais reações a esse fenômeno.
3.1 José Amaro
O seleiro, que vivia de favor na fazenda de Seu Lula, era um homem amargo e vítima de muitas injustiças. Seu drama pessoal no decorrer do romance é o de ter uma família que não o aceita. Sua esposa, d. Sinhá e sua filha, Marta, parecem seres estranhos para esse homem, que se sente solitário e injustiçado. Amaro é admirador do cangaceiro Antônio Silvino, mesmo sem nunca tê-lo visto. Desta forma, ele demonstra uma idealização do personagem, demonstrada nas seguintes passagens: Em diálogo com o coiteiro Alípio, José Amaro demonstra sua adoração pelo cangaceiro: E foi assim que se viu com um tipo bem perto dele parado. Quis correr para que não o visse, mas não o fez, chegou-se mais para perto.
-Boa noite. É mestre Zé Amaro?
-Ás suas ordens.
-Não é nada não, mestre, mas estou aqui a mando do capitão Silvino. O bando está acoitado na Fazendinha, e o capitão me mandou por aqui para saber da tropada Tenente Maurício. Falaram que os macacos passaram o dia de ontem no Santa Rosa.
O mestre estremeceu com a palavra do homem. O nome de Antônio Silvino exercia sobre ele um poder mágico. Era seu vingador, sua força indomável, acima de todos, fazendo medo aos grandes. Quando o aguardenteiro Alípio.
-È você Alípio?
-Sou eu mesmo, mestre Zé. Eu gosto do capitão. Não vou para o bando dele por causa da minha mãe que ainda tem filha para casar. (Lins do Rego, 1980 , p.57)
Em outra passagem do romance, Zé Amaro demonstra sua admiração por Antônio Silvino: (...) O seleiro não escutava o negro. O capitão Antônio Silvino voltava a tomar conta de seus pensamentos. Admirava a vida errante daquele homem, dando tiroteios, protegendo os pobres, tomando dos ricos. Este era o homem que vivia na sua cabeça. Este era seu herói . (Lins do Rego, 1980, p. 66)
Desta forma, no decorrer da obra, o seleiro se transforma em coiteiro, fazendo alpargatas para o bando ou comprando alimentação para o cangaceiro. Também faz o papel de informante, observando as movimentações do Tenente Maurício.
O homem se foi ,e na casa do mestre José Amaro ficou o terror na sua mulher, e uma sinistra alegria no coração do seleiro. Ele matava galinha e dava para o Capitão Antônio Silvino que mandava em toda cambada de senhores de engenho .Cazuza Trombone,de Maçangana, mudara-se com medo para cidade com medo dele. O velho José Paulino dera um banquete ao Capitão Antônio Silvino. Disseram até que a filha do grande servirá a mesa ,como se fosse ama dos cangaceiros. Sinhá torrara duas frangas para o homem que ele mais admirava neste mundo. (Lins do Rego, 1980, p. 72).
Apesar de toda a admiração que Zé Amaro demonstra por Antônio Silvino, ele acaba por desiludir-se no final do romance, posto que acaba preso e torturado pela volante do Tenente Maurício e o cangaceiro não aparece para salvá-lo e vingá-lo. Nesse trecho, exprime sua angústia, sobre não saber o paradeiro de seu herói. : “Não tinha quem o protegesse. Só esperava alguma coisa do Capitão Antônio Silvino ,que só ele era homem para ajudar um pobre em sua situação. Onde estava ele aquela hora?”(Lins do Rego. 1980 p.268).
Depois de deixar a cadeia, triste e amargurado, o seleiro volta para casa, mas já não existe motivo para sua existência. A mulher a qual ele acusava de seus infortúnios na vida, foi embora, cuidar da filha doente. Aquele no qual depositava todas suas esperanças o havia abandonado quando ele mais precisava. O mestre desiste da vida e com a faca de cortar sola (seu instrumento de trabalho) se mata, desistindo assim de esperar o “salvador da pátria”.
3.2. Coronel Lula de Holanda
Personagem decadente do sertão nordestino, o coronel Lula não simpatiza com o cangaço e não aceita as ameaças de Antônio Silvino. Mesmo depois do cangaceiro mandar- lhe recado para que não expulsasse José Amaro de sua propriedade, Lula de Holanda não lhes dá ouvidos. Quando o cangaceiro Antônio Silvino invade sua propriedade, em busca do ouro deixado por herança por seu sogro, o latifundiário não cede e acaba tendo uma grave crise de epilepsia, doença que o acompanha ao longo do romance. É sua esposa, D. Amélia, que acaba por interagir com os cangaceiros, afirmando que a propriedade é pobre. E voltando-se para o velho:
- Coronel, eu sei que o senhor tem muito dinheiro.
- Como?
- Não é preciso esconder leite, coronel. O dinheiro é seu. Mas para que esconder?
- Capitão, aqui nesta casa não há riqueza.
- Minha senhora, eu sei que tem. Soube até que muita moeda de ouro. Eu vim buscar um pedaço para mim.
(Lins do Rego, 1980, p. 224) 3.3 Capitão Vitorino Carneiro da Cunha Vitorino Carneiro da Cunha era pobre, mas aparentado com senhores de engenho rico (Coronel José Paulino) e metido com política coloca-se completamente contrário ao cangaço. Afirma em seus longos discursos, que a culpa do fenômeno é do governo, como expressa nesse trecho: “Quem é? ora quem é...O governo, tenente. Se eu fosse governo não havia cangaço.”(Lins do Rego. 1980 p.263).
Quando o Santa Fé é invadido pelo capitão Antônio Silvino, ele mais uma vez lembra a seu primo José Paulino que a culpa de tudo aquilo é dele: “De tudo isto o culpado é você mesmo. Deram gás a este bandido.”(Lins do Rego. 1980 p.260).
Em outro momento, enfrenta o cangaceiro dizendo: “O que eu lhe digo, Capitão Antônio Silvino é o que digo a todo mundo .Eu Vitorino Carneiro Cunha ,não me assusto com ninguém.” (Lins do Rego. 1980 p.256).
Por essa ousadia é espancado, chamado de louco, pois poucas pessoas se atreviam a expressar sua opinião a um cangaceiro como Antônio Silvino sem ser morto. Sua fama em toda região de maluco, sonhador, alienado é um dos motivos que impede sua morte; tanto tropa quanto os cangaceiros o viam como uma pessoa inofensiva.
3.4 – Outros Personagens
Alguns personagens demonstram medo quando o assunto é abordado. É o caso das mulheres, como sinhá Adriana, esposa de Vitorino ou D. Sinhá, mulher de Zé Amaro. “(...) A sua mulher temia com o pavor das notícias do Capitão Antônio Silvino. Marta já de pé, perguntou-lhe o que queria dizer tudo aquilo”. (Lins do Rego. 1980, p. 71).
Outro trecho que demonstra o medo desses personagens pode ser expresso nesse trecho: “O homem se foi, e na casa do mestre José Amaro ficou o terror na sua mulher, e uma sinistra alegria no coração do seleiro”. (Lins do Rego. 180, p. 72).
O Coronel José Paulino, que aparece pouco no romance, mas que acaba mostrando sua influência ao longo do texto, pagava para que o cangaceiro não perturbasse a sua fazenda rica e próspera. Portanto, fazia com que o cangaceiro fosse um aliado, para que suas terras não fossem invadidas. Era inevitável sua aliança com os cangaceiros, pois se houvesse algum atrito entre eles toda sua safra poderia ser saqueada ou mesmo seu engenho.
Os grandes latifundiários como José Paulino, alimentaram muitos anos os cangaceiros ,oferecendo-lhes dinheiro em troca de proteção. “Quer dinheiro capitão? A figura do coronel José Paulino encheu a sala de respeito” (Lins do Rego. 1980, p.258).
Oferecer dinheiro a alguém , é uma forma de mantê-lo sob controle .Enquanto o cangaço fosse útil ao mesmo ,valeria a pena o investimento.
Poster do Filme |
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cangaço é tema presente e recorrente na história do Nordeste e também do Brasil. Surgido entre o século XIX e o século XX, foi um fenômeno que causou um impacto muito grande entre pobres e ricos do Sertão, modificando as relações sociais. Com as constantes secas e catástrofes naturais, o cenário do semi-árido nordestino presenciou o agrupamento de grupos de bandidos, injustiçados pelas mazelas sociais e que incorporavam os valores daquele povo, onde a violência e a honra são temas muito importantes. Contudo, os cangaceiros se tornaram um mito, reiterado constantemente pela arte popular (literatura de cordel) e pela arte burguesa (filmes e livros). Representante da nacionalidade brasileira, o bandido violento e cruel, que não respeitava classe social e que não dividia seus roubos com os mais pobres, se torna um justiceiro, herói do povo que representa. Com essa transformação, percebemos mudança da figura histórica e da figura mítica dos cangaceiros.
Em Fogo Morto, José Lins do Rego mostra tanto o lado mítico, idealizado pela figura de José Amaro, quanto mostra seu lado violento, ao descrever os ataques ao Pilar e à fazenda do Coronel Lula. Esse conhecimento da realidade do cangaço se deve à convivência, em sua infância, com esse fenômeno. Por isso, Lins do Rego acaba desmistificando o cangaço perante o olhar do leitor, mostrando, no final do seu romance, o abandono de José Amaro, que morre sem a salvação de cangaceiro algum.
Referências bibliográficas
CURRAN, Mark J. História do Brasil em Cordel São Paulo: EDUSP, 2003.
DÓRIA, Carlos Alberto. O cangaço São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. (Coleção Tudo é História). FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: Gênese e Lutas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. FAUSTO, Boris História do Brasil São Paulo: EDUSP, 2004 (Coleção Didática).
LINS DO REGO, José. Fogo Morto São Paulo, Editora Klick, 1980.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de História do Cangaço São Paulo: Global, 1997 (Coleção História Popular).
RODRIGUES, Alfredo O cangaço na obra de José Lins do Rego Tese de Livre Docência. UNESP Araraquara, 1984.
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