A contagem regressiva para a morte de Lampião
Uma Interessante Entrevista Com
Joca Bernardo, o Homem Que em Agosto de 1938 Informou a Polícia Quem
Conhecia a Localização do Esconderijo de Lampião e Foi o Responsável
Pelo Massacre de Toda Uma Família, Perpetrado Pelo Cangaceiro Corisco,
Que Buscou Vingar a Morte do Rei do Cangaço.
Autor do texto – Jornalista Roberto Vilanova – Maceió, Alagoas.
Fonte – O blog TOK DE HISTÓRIA
informa que recebeu o material original dessa reportagem com o nome do
autor, o número da página (12), mas sem a indicação de data de
publicação e do nome do jornal, ou revista. Sabemos que o Jornalista
Roberto Vilanova publicou reportagem semelhante no Caderno B do Jornal
do Brasil, edição de 11 de maio de 1977, página 5, sugerindo uma época
da publicação original desse texto, que agora apresentamos. Com Exceção
das Fotos Originais da Reportagem, Todas as Outras Fotografias Aqui
Publicadas, São de Responsabilidade do blog TOK DE HISTÓRIA.
A
história não reservou para Joca Bernardo, quase 80 anos de idade, uma
linha sequer. Mas é bem melhor assim, porque ele entrou para a história
intima do sertão como traidor de Virgulino Ferreira – o Lampião, e,
talvez por arrependimento, recusou receber o prêmio maior pela delação: a
patente de sargento da Polícia Militar de Alagoas. Por causa disso sua
esposa, desde essa época, lhe abandonou depois de argumentar e tentar
convencê-lo de que não deveria jogar fora a sorte. Como jogou, ela
preferiu ir embora para São Paulo no primeiro pau-de-arara que cortou as
estradas secas do sertão, não lhe dando mais notícias.
Mas não é fácil encontrar Joca, apesar
dele viver discretamente no distrito do Piau, pertencente a Piranhas, a
mais de 350 quilômetros de Maceió, porque o sertanejo é, também, antes e
tudo, muito desconfiado. Aliás, a sua própria existência só é sabida
por quem conhece a fundo a história de Lampião, como o presidente da
Arena de Piranhas, Antônio Rodrigues, que lhe descobriu para essa
reportagem.
Medo da morrer
A troca de identidade, complementada pelos
cumprimentos à mão estendida, durou pouco, mas Joca Bernardo
mantinha-se olhando por baixo dos olhos, como se estivesse diante de um
Tribunal. À pergunta se escondia com medo de morrer, respondeu que não. E
explicou que era para evitar comentários que, na certa, iriam lhe
trazer recordações. E ele não deseja recordar as inconveniências
naturais de um traidor. Nesse pé a conversa se expandiu e tomou gosto,
porque se Joca se manteve, durante todo esse tempo, calado, chega mesmo
um momento, principalmente na sua idade, em que o peso da consciência
rompe a barreira do silêncio que se impõe por conveniências.
O silêncio é
quebrado também pelo conflito interno que Joca passou a viver logo
depois da morte de Lampião, não porque traiu o bandido, mas porque, para
escapar da morte que Corisco espalhou como vingança, acabou delatando
um inocente. Ou seja, disse a Corisco, com quem se encontrou mais tarde,
que o vaqueiro Domingos Silvino, empregado do sogro do tenente Bezerra,
é quem havia delatado Lampião à polícia. Corisco foi à casa de Domingos
e matou ele, a mulher, uma visita e três só deixou vivo apenas o de
menor idade, Antônio Silvino, que mora hoje em Piranhas e não quer ver
Joca na sua frente.
Foi
o próprio Antônio Silvino quem relatou o massacre a sua família e,
conforme Corisco disse a seu pai, Joca é o único responsável. Silvino
falou que um dos cangaceiros chegou a puxar o punhal para matá-lo, mas
Corisco o conteve. Nessa época, ele, Antônio, tinha 6 anos de idade e
recebeu a missão de conduzir, de burro, as cabeças de toda a sua família
que deveria ser entregue ao tenente Bezerra, em Piranhas, com um
bilhete atrevido.
“Quando
eu passei pelas ruas de Piranhas era dia de feira. O Corisco juntou as
cabeças dentro de um caçuá e mandou eu tanger o burro. Nas ruas o povo
pensava que o sangue que escorria era carne de bol. E quando eu parei na
porta do tenente Bezerra foi que juntou gente”, conta Silvino.
Nega tudo
Joca Bernardo nega a delação ao vaqueiro
Domingos Silvino, mas confirma que se encontrou com Corisco. Até o seu
relato do encontro – surpresa e, até mesmo, as circunstâncias dele, Joca
parece não mentir. Mas na reprodução do diálogo ele acaba revelando uma
certa frieza:
“Eu tava juntando o gado quando o Corisco
pulou de cima de um lajedo. O Corisco e mais uns cinco cabras, inclusive
a Dadá, que foi a minha salvação. Aí o Corisco falou se era verdade que
tinham matado Lampião Eu respondi que ouvi dizer. Até ele disse: vou
matar muita gente para vingar a morte. E vou começar logo por você. Aí a
Dadá ”ó xente, home. Que história é essa? A gente mata quem tem culpa,
inocente não,” relatou.
A
História, segundo se sabe através do Sr. Antônio Rodrigues, de
tradicional família de Piranhas e político influente na região, é bem
diferente. Corisco soube que Joca havia traído Lampião e foi procurá-lo.
No encontro, disse que ia matá-lo e Joca, com medo, falou que se
morresse, seria inocente. E lamentou que tivesse servido de coiteiro
para Lampião e, agora, “qual o pagamento que recebia?”. Corisco
titubeou, principalmente diante da interferência de Dadá, e resolveu
tirar a história a limpo. Foi então que Joca Bernardo lembrou,
maliciosamente, “onde Lampião teria passado antes de ir para Angicos”,
seu até então inexpugnável esconderijo.
Lampeão, antes de atravessar o rio São
Francisco, passou na fazenda do sogro do tenente Bezerra (o fazendeiro
Antônio Brito). Com isso, Joca quis insinuar que o vaqueiro Domingos
Silvino Ventura, sempre à disposição para cumprir ordens fazer recado do
bando, teria denunciado os planos de Lampeão de se alojar em Angico por
alguns dias. A verdade é que Corisco aceitou a justificativa, se não
teria evitado o massacre da família Silvino Ventura, de quem sobrou, a
propósito, apenas Antônio Silvino, o filho mais novo, na época, do
vaqueiro.
Traição a Lampião
Na verdade, Joca Bernardo não tinha nada
contra Lampeão – a quem ajudava, na medida do possível, para poder ir
levando a vida sem ser molestado pelo seu bando, se bem que tivesse de
enfrentar as inconveniências da polícia que sempre se confundia, pelas
arbitrariedades cometidas, com os cangaceiros, às vezes, praticando
horrores em nome da Lei que a bem da verdade era material, porque estava
simbolizava na mira de um fuzil “bem azeitado e municiado”.
Assim, dentro do possível ou de acordo com
os conformes, Joca e tantos outros coiteiros se prestavam ao serviço de
acoitar Lampião e seu bando porque não tinha mesmo escolha. E entre ser
morto pelos cangaceiros ou pela polícia, o que dá, no fundo, no mesmo,
era preferível morrer tentando ser fiel a Deus e ao diabo, mesmo sem se
saber quem era quem. Ou seja, quem era Deus e quem era Diabo.
Mas como a miséria só quer começo, um dos
maiores coiteiros de Lampião, Pedro de Cândido – ninguém duvidava da sua
ligação com Lampião, mas Pedro vivia imune em Piranhas, no dia em que
os cangaceiros se arrancharam em Angico, foi comprar queijo que Joca
fabricava. E apesar de sempre levar dinheiro suficiente, dado por
Lampião acabava usurpando o chefe e não pagava as mercadorias, o que
criava, naturalmente, um clima de animosidade não só para ele, como para
o bando.
Tiro fatal
Naquele dia, porém, Pedro de Cândido,
inadvertidamente, engatilhou a arma que desfechou em Lampião o tiro
fatal. Utilizando-se da fama de valente, talvez imposta pela condição de
coiteiro chefe de Lampião, Pedro bateu à casa de Joca Bernardo para
comprar “todos os que queijos que tivesse na hora ou a fazer durante os
próximos 15 dias”, que era o tempo de descanso dos cangaceiros.
Joca respondeu que tinha uma encomenda de
queijo do Juiz de Pão de Açúcar e não podia ceder o volume já encontrado
pronto. O argumento não foi levado em consideração, porque Pedro de
Cândido retrucou abusado: – “Cabra safado, eu tou pedindo o queijo e não
quero saber de história. Vou levar tudo agorinha mesmo”, recorda Joca.
Apesar de se saber que Pedro era coiteiro
de Lampião Joca ainda duvidou para quem seria tamanho carregamento de
queijo até que descobriu:
– “Eu pensei assim” – conta ele – “o Pedro
não negocia e se quer tanto queijo só pode ser pra muita gente. se é
para Muita gente, Lampião tá por aqui.”
Joca
não reagiu e Pedro de Cândido levou todo o carregamento de queijo que
havia sido encomendado pelo Juiz de Pão de Açúcar. Mas naquele mesmo dia
o sargento Aniceto, que tinha ficado em Piranhas, enquanto o coronel
Lucena, o tenente bezerra e o aspirante Chico Ferreira saíram em
diligência por Delmiro Gouveia, atrás de Lampião foi informado da
situação. O relate ainda é de Joca.
“Eu fui procurar o tenente Bezerra, mas
ele não estava. Encontrei o sargento Aniceto e lhe contei: sargento,
saber eu não sei não senhor, mas o senhor quiser saber onde Lampião tá
escondido, aperte o Pedro de Cândido que ele diz. Agora só digo uma
coisa ao senhor: Lampião está aqui por perto e não veio com pouca gente
não. Têm uns 100 homens com ele. E contei também o caso dos queijos que o
Pedro me tomou.”
A partir daquele momento começou a
contagem regressiva da vida de Lampião e seu bando. Mas como o próprio
Joca admite a delação não tinha a intenção de trair Lampião porque, do
jeito que até hoje alguém afirme que o cangaceiro não morreu, naquele
tempo acreditava-se na sua imortalidade, pelo menos à bala ou à faca.
Joca desejava que Pedro levasse uma surra, através do “aperto” da
polícia, e não admitia que a polícia desse fim a Lampião, porque o
bandido sempre escapava aos cercos ileso, Mas não foi assim: o
cangaceiro morreu mesmo.
Recusa
O
sargento Aniceto se encarregou de assegurar junto ao tenente Bezerra e
ao coronel Lucena o trabalho decisivo de Joca Bernardo, ajudando à
Polícia. Aí os dois oficiais chamaram Joca a Piranhas e anunciaram o
prêmio: 5 contos de réis e a patente de sargento da Polícia Militar de
Alagoas, que lhe seria dada pelo Governo do Estado. Joca recusou as
divisas e aceitou apenas o dinheiro, que acabou não recebendo em toda
sua totalidade.
– “Eu acho que o Governador mandou o dinheiro todo, mas o portador ficou com um pedaço. Eu só recebi 1 conto e réis,” relembra.
Ele recusou as divisas de sargento, porque
teria de vir morar na Capital e um sargento, naquela época, não ganhava
suficiente para sustentar uma família. Então, Joca preferiu continuar
tangendo gado e fazendo queijo, sem pagar aluguel de casa e sem ter
outros gastos que naturalmente teria de assumir se mudasse de cidade e
de vida. Mas sua mulher não aceitou a argumentação e como não pôde
fazê-lo receber a patente, preferiu abandonar a casa. Foi morar em São
Paulo.
Por ironia, quem recebeu as divisas foi o
Pedro de Cândido. Joca, que pensava em se vingar da sua violência, não
só lhe proporcionou a reaproximação com as autoridades de Piranhas e de
Alagoas, como lhe deu a própria chance de ser autoridade, porque logo em
seguida ser incorporado à polícia como sargento, Pedro foi nomeado
delegado no sertão. E morreu assassinado por culpa, ao que se sabe, de
seus dotes de “dom Juan”, sem que lhe respeitassem, ao menos, a posição
de delegado.
Joca
amarga a fama de traidor – na verdade o traidor é ele mesmo e se não
fosse a aposentadoria do Funrural, engordada pelo frete que consegue
tangendo urro carregado d’água, estaria na miséria. Sequer conseguiu o
intento de fazer Pedro de Cândido levar uma surra porque Pedro, ao ser
preso, não reagiu e nem foi difícil contar o esconderijo de Lampião.
Pescado no Tok de História
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