quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Cangaço e imprensa

Lampião no marketing fúnebre

Por: Geraldo Duarte*

O tenente João Bezerra da Silva, pernambucano e comandante da Volante do 2º Batalhão do Regimento Policial do Estado de Alagoas, contava poucos dias do enfrentamento e do extermínio do bando de Lampião. O embate ocorreu na madrugada de 28 de julho de 1938, defronte à Grota de Angico, na fazenda de igual denominação, na área situada na divisa dos municípios de Poço Redondo e Canindé de São Francisco, em Sergipe.

O fator surpresa, no ataque ao bivaque da cangaceirada, consagrou-se decisivo para o êxito do confronto.

Dele, restaram mortos Virgolino Ferreira da Silva, “Rei do Cangaço”, sua amásia Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, “Rainha do Cangaço”, e nove cangaceiros. Todos, após as mortes, foram decapitados, tiveram suas cabeças salgadas e expostas à curiosidade popular.

Dera-se o fim da temida e sanguinária súcia de criminosos que, por vinte anos, aterrorizou os sertões nordestinos. O acontecimento mereceu manchetes e destacados espaços nos noticiosos da mídia nacional, bem como, fez-se replicar na estrangeira. Os fatos obtiveram invulgar acompanhamento público, ensejando comentários opiniões e análises no País. Durante semanas mantiveram-se como a temática maior dos brasileiros e, em especial, das populações do Nordeste.

Mesmo inexistindo, à época, a terminologia “marketing”, e a publicidade e propaganda sendo expressas como “reclame”, as comunicações de mensagens dos produtos ocupavam chamativos espaços na imprensa, nas emissoras de rádio e na panfletaria em geral. Assim, os divulgadores de então, “marqueteiros” do futuro no passado, ligaram aquela conhecida luzinha representativa da ideia e geraram anúncios de impacto, apesar de reprováveis pela ética e pelos princípios humanitários. A morte e os dias de guarda funéreos da cristandade não mereceram o mínimo de respeito para com o cangaceiro-chefe e a cangaceiragem. Ao contrário. Registraram-se, afora outras comemorações comedidas ou veladas, as comercialmente alardeadas como de vendagem promocional.

O jornal Correio de Aracaju, circulante em 8 de agosto de 1938, apresentava, com o destaque de cercadura e letras maiúsculas, uma campanha de vendas tétrica:
“DEPOIS DE MORTO LAMPIÃO TUDO PELO PREÇO DE CUSTO NAS CASAS NUNES. ATÉ 15 DE SETEMBRO PRÓXIMO. RUA JOÃO PESSOA, 156 E 179.”.

Dia seguinte, o macabro propagandear coube veiculação à Folha da Manhã, também noticioso aracajuano. De forma lírica, porém, não menos lúgubre. Poeticamente, os ledores viram o enaltecimento do propalado miraculoso Tônico Phos- Kola, sob o título "A Morte de Lampião":
“O tenente Bezerra – Herói do dia,
O bravo militar alagoano,
Há muito tempo já se consumia,
Arquitetando um plano,
Noite e dia,
Numa incansável obstinação:
É que jurara a Deus, que salvaria,
A gente sofredora do sertão,
Do flagelo que há tanto a perseguia,
Matando Lampião!

Mas ele não dispunha da memória,
Atrapalhado pelo esquecimento...
Daí o retardar-se a sua glória,
A sua grande glória do momento!

E era assim.
Aquilo parecia não ter fim...
A ideia chegava-lhe e... fugia!
Não havia um remédio, não havia,
Como gravar pudesse, na cachola,
O plano que traçara e em que se via,
De uma noite pro dia,
Transformado em herói, carregado em charola...

Foi quando resolveu tomar Phos-Kola
- o remédio prodígio,
Pra quem tem perda de imaginação.
Vem daí o prestígio,
Com que ora se alçou ao mais justo fastígio,
“O bravo militar que matou Lampião.”.
Segundo garantia o tal “remédio prodígio para quem tem perda de imaginação”, na embalagem, lia-se ainda: “Bom para a memória. Abre o apetite. Fortalece músculos, nervos e ossos”.

Crível, portanto, que o “capitão” Virgolino desconhecia o miraculoso fármaco usado pelo super tenente Bezerra. O conhecesse e fosse real o alardeado pelo produtor, dependendo da dosagem, o militar não teria cantado de galo no terreiro do caolho.

Sede do Laboratório Phos-Kola em Aracaju
 Fonte: Aracaju Antiga
Ninguém se arvore em falar de propaganda enganosa, defendentes ou não da autoridade ou do fora da lei, pois o delito era desconhecido e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor somente nasceu meio século depois.

As mensagens publicitárias citadas foram reproduzidas do livro "O Fim de Virgulino Lampião: o que disseram os Jornais Sergipanos", de autoria do professor e advogado Antônio Corrêa Sobrinho, obra na qual o cangaceirólogo e radialista José Clenaldo dos Santos, recebeu especial homenagem.

*Geraldo Duarte é advogado, administrador e dicionarista.

Fonte: Jornal da Cidade, Edição de 22 de Janeiro de 2014.
Créditos para Archimedes Marques

Um comentário:

Anônimo disse...

Detalhe: veja que, na época, o policial fora tratado como "herói". Hoje, basta ver qualquer noticiário, que se percebe uma terrível inversão de valores. Os heróis são outros.....
Abs
Sérgio.'.