terça-feira, 25 de agosto de 2009

Entrevistas memoráveis

O Ex Cangaceiro "Balão" falou à Revista Realidade, em Novembro de 1973

Na casinha, branca de janelas azuis, em Monte Belo, subúrbio de São Paulo, mora Guilherme Alves, o ex-cangaceiro Balão.

Ajudado por um de seus 25 filhos, nascidos de três casamentos, ele se concentra sobre os volantes da Loteria Esportiva espalhados pela única e modesta mesa. Antigamente, "volantes" para Guilherme tinha outro significado. - eram as patrulhas policiais que ele e Lampião enfrentaram nas caatingas.

Tempos ruins que Guilherme, 63 anos, lembra com detalhes — e dos quais guarda sinais concretos: oito anéis nos dedos e uma bala encravada na perna.

Eis o seu relato:

No ano passado eu estava subindo uma ladeira em São Paulo, quando um policial, já velho, começou a me olhar. Eu me esquivei, mas ele falou com uma voz fina, de caboclo: `Eu o conheço. “Não digo de onde, porque você vai achar ruim”. Depois, rindo: "Uma vez matei dois cabras seus na Várzea do Juá. Você é o ex-cangaceiro Balão".

Que olho! Aquilo acontecera havia mais de trinta anos. Entrei para o cangaço em 1929 e fiquei até ver Lampião com uma bala na testa, em 1938. Eu Morava em Paulo Afonso, na Bahia. Uma tarde passou pela minha casa uma força do sargento Inocêncio, de Alagoas.

Meu pai e meu irmão foram mortos e eu fugi com meu primo, o Azulão, que já estava no cangaço. Minha vida de cangaceiro começou num tiroteio, em Aroeira, contra a volante de Mané Neto. Eu tinha 19 anos. Lampião havia me dado 615 balas e, quando a luta terminou, perguntou-me: "E as balas?"
"Só tenho cinco”, respondi. "E as outras?" "Por aí, capitão, voando atrás dos macacos.", Ele riu e me admitiu.
Vivi de fogo em fogo durante 9 anos. A gente aprende a brigar: Soldado morria porque vinha de peito aberto. Cangaceiro não dá o peito nem as costas, briga de quina. Um homem de quina é uma faca. Também não brigávamos sem preparo. Só atraíamos a volante depois de construir a trincheira. E lá ficávamos, ajoelhados ou em pé, escorando firme o coice da espingarda.

Se matei muitos não sei. Quem mata é o mosquetão, e o Capitão Lampião é quem ordena. A gente obedece, vai atirando. Se o tiro pega, ouve-se o grito: "Ai, Nossa Senhora! Valei minha mãe". Vi uns filmes de cangaceiros. Tudo falso. Todo mundo bonito, a cavalo, como mocinhos. Nós andávamos quase sempre a pé, calçando alpercatas.

A mulher foi a perdição do cangaço:

Enquanto não apareceu mulher no cangaço, o cangaceiro brigava até enjoar. Depois, diante de qualquer perigo, logo se podia ouvir: "Ai, corre, corre!" Quando entrei, Lampião tinha duzentos homens, separados em grupos para despistar as volantes. Muitos dos "oficiais" já tinham mulheres: Corisco, Luís Pedro, Pancada. No fim, até os cabras. Elas não lutavam. Uma única vez vi uma delas brigar como um homem, Foi Dadá, no dia em que o seu marido, Corisco, caiu baleado nos dois braços.

Maria Bonita usava uma pistola Mauser, de 11 tiros, mas também não atirava nada. Não era bonita: baixinha, grossinha, pernas meio tortas, cintura fina, quadris bem largos, atrás era batidinha como uma tábua. Tinha o rosto cheio, redondo, andava com botas de couro de bode, bem coladas nas pernas. Usava saia de couro abaixo dos joelhos e uma blusa de couro. Ela sempre tentava me derrubar, a gente brincava muito. Lampião não ligava. Olhava e recomendava: "Depois não vão se zangar".

Aos poucos, o bando foi ficando cheio de mulheres. E homem de batalha não pode andar (Relação) com mulher. Se o cangaceiro tem uma relação sexual, perde o poder da oração (uma espécie de amuleto), e seu corpo fica como uma melancia: qualquer bala atravessa. Por isso, antes, seriam necessários alguns cuidados:

O cangaceiro deve tirar a oração do corpo e entregá-la a um amigo por quinze dias. E antes de usá-la. Novamente precisa tomar um bom banho, lavar bem as roupas do pecado.

Nasceram muitas crianças, enquanto eu estive no cangaço. As mães davam à luz à noite, e mal o dia clareava, estavam correndo da polícia. E, que eu saiba, nunca perderam um filho. As crianças eram entregues a algum padre ou fazendeiro, e os pais prometiam ir buscá-las um dia — se sobrevivessem.



Lampião andava todo furado de balas. Eu pensava: é oração, ele não morre mais. Lampião era alto, magro, as pernas secas. Lia e rezava muito. Só ele e Corisco sabiam ler. O bando sentava-se sob as árvores, ouvia suas explicações sobre o que estava escrito na Bíblia, principalmente no Velho Testamento. De madrugada todos se reuniam de novo para rezar o ofício sagrado.

Aprendi o Padre-Nosso com Lampião. Ele dizia ser essa a única oração ensinada por Deus e que todo o resto fora inventado pelo povo. Repartia a comida com suas próprias mãos, em porções iguais. Às vezes passávamos fome. Chegamos a ficar uma semana comendo só raiz de imbuzeiro.

Até hoje o povo pensa que Lampião matava por qualquer coisa. Mas nunca o vi mandar matar alguém a sangue frío. E as fazendas por ele destruídas eram dele mesmo. Lampião havia comprado as terras em sociedade com um tal de Petro de Alcântara Reis: Tronqueira, Cachoeirinha, Formosa. Mas Petro as registrou apenas em seu próprio nome. Lampião zangou-se. Eu mesmo ajudei a matar muito gado a tiro, na Cachoeirinha. Petro fugiu para Alagoas.

Os fazendeiros que se recusavam a dar dinheiro ou gado para o bando nunca eram mortos, mas Lampião expulsava da fazenda todos os vaqueiros. Eles só podiam voltar com sua permissão.

Uma vez me perdi do bando e fiquei um ano nas caatingas de Bebedouro, Jeremoabo, Cipó de Leite, sem ver uma alma viva. No começo eu estava com Anjo Roque e sua mulher. Ele, porém, era ciumento e nos separamos. Fiquei só. Pensei em me entregar, mas seria morte certa. Vaguei pela caatinga como um porco-do-mato, comendo raiz de imbuzeiro, folhas e carne de bode. Do cipó de mucunã tirava a água: a gente corta, assopra e ela vai caindo, avermelhada, mas doce. Quem não conhece o truque morre de sede pisando na água.

Cangaceiro não vive só de briga. Lampião sabia tocar uma gaita de oito baixos como ninguém. E seus homens gostavam de dançar. Uma vez, na Fazenda Cuiabá, ficamos oito dias e oito noites dançando. Nessas ocasiões todos se enfeitavam, e já cheguei a ver cangaceiro tomando banho morno, - preparando-se para o baile. Havia preferência pelos enfeites de ouro. Muitos levavam moedas esterlinas no chapéu.

Maria Bonita ia carregada de ouro, em voltado pescoço, prendia o lenço com várias alianças e usava até dois anéis em cada dedo. Ah, era bonito. E o perfume, então! Todos os cangaceiros usavam — e não economizavam. Madeira do Oriente e principalmente um chamado trina, que durava até seis meses, no corpo. As volantes às vezes achavam o nosso rastro só pelo cheiro.

A traição de Pedro, e a morte de Lampião:
"Nunca pensei que Lampião morresse."
Estávamos acampados perto do Rio São Francisco. Lampião acordou às 5 da manhã e mandou um dos homens reunir o grupo para refazer o oficio Nossa Senhora. Enquanto lia a missa, em voz alta, todos nós ficamos ajoelhados, ao lado das barracas, respondendo "amém" e batendo no peito na hora do "Senhor Deus".

Um caboclo na selva de Pedra
Doc. O ultimo dia de Lampião

Terminado o oficio, Lampião mandou Amoroso buscar água para o café. Mas, quando ele se abaixou no córrego, veio o primeiro tiro. Havia uma metralhadora atrás de duas pedras a 20 metros da barraca de Lampião. Pedro de Cândido, um dos nossos, havia nos traído, e acho que tinha dado ao sargento Zé Procópio até a posição das camas.

Numa rajada de metralhadora serrou a ponta minha barraca. Meu companheiro Merguião, levantou-se de um salto, mas caiu partido ao meio por nova rajada. Eu permaneci deitado, com jeito coloquei o bornal de balas no ombro direito, o sobressalente no esquerdo, calcei uma alpercata. A do pé esquerdo não quis entrar, e eu a pendi também no ombro.

Quando levantei vi um soldado batendo com o fuzil na cabeça de Merguião. De repente, ele estava com o cano de sua arma encostada minha perna, e eu apontava meu mosquetão contra sua barriga. Atiramos. Caímos os dois e fomos formar uma cruz junto ao corpo de Merguião. Levantei-me devagar. O soldado estava morto, e minha perna não fora quebrada.

Então vi Lampião caído de costas, com uma bala na testa. Moeda, Tempo Duro; Quinta-feira, todos estavam mortos. Contei os corpos dos amigos. Nove homens e duas mulheres. Maria Bonita, ferida, escondeu-se debaixo de algumas pedras. Mas foi encontrada e degolada viva. Não havia tempo para chorar. As balas batiam nas pedras soltando faíscas e lascas, ouviam-se; os gritos por toda parte, um inferno. Luis Pedro ainda gritou: "Vamos pegar o dinheiro e o ouro na barraca de Lampião". Não conseguiu, caiu atingido por uma rajada. Corri até ele, peguei seu mosquetão e, com Zé Sereno, consegui furar o cerco. Tive a impressão de que a metralhadora enguiçou no momento exato. Para mim foi Deus.

No rancho do Minduim encontramos os cangaceiros: Cobra Verde, Novo Tempo, Candeeiro, todos feridos. De lá fomos para a Fazenda Cuiabá. , Muitos se entregaram. Eu resolvi seguir com um grupo, para Pinhão, onde estava Corisco. Mas no caminho fomos cercados pela: forças do sargento Zé Luis. Os cangaceiros Cruzeiro, Amoroso, Zé de Vera foram mortos.

Consegui esconder-me ate escurecer e então comecei a descer, seguindo o rio. Os soldados, porém, não haviam desistido logo eu os senti na minha pista Resolvi tentar driblá-los. Voltei e consegui outra vez furar o cerco No caminho derrubei um soldado que gritou, antes de morrer: "Pelo amor de Deus, eu não tenho culpa!" Depois contei mais de quinhentos buracos de bala, na minha roupa e nos bornais.

Como é que gente não morre?

Em Pinhão encontrei Corisco, Zé Sereno e Anjo Roque. Corisco era chamado também, de Diabo Louro; brigava muito. Nunca si entregou. Zé Rufino o matou. E como são as coisas: Dadá, mulher de Corisco, foi quem mais tarde colocou a vela nas mãos de Zé Rufino, que morreu pedindo perdão.

O descanso da guerra na cidade grande:

— Estávamos cansados de brigar. Ficamos nos divertindo em Pinhão, passeando dançando. Era a despedida - íamos nos entregar. Fomos bem recebidos em Jeremoabo, pelo capitão Aníbal. Não ficamos presos, mas apenas detidos. O capitão Aníbal era nosso amigo e algumas vezes chegou a desviar as volantes para evitar um encontro. Tive até privilégio de ter até um ordenança, à minha disposição, chamado Doutor.

Depois de soltos, tivemos de nos acostumar aos poucos com a civilização. Nas caatingas de Sergipe vi pela primeira vez um zepelim. Parecia um fim de mundo. Nesse tempo, em 1939, diziam que o mundo todo estava em guerra, e eu me apavorei: "Corre, gente, é um bombardeio".

Todos se esconderam numa moita de mucunã. Numa cidade, Anjo Roque não deixou um homem ligar o rádio perto de bando: “Essa máquina é de prender, vai nos deixar sem movimento!"

Viajei muito. Trabalhei em Minas, como pagador da estrada de ferro. Um serviço perigoso na época, mas nenhum assaltante se meteu comigo. Depois morei muito tempo em Marília, no interior de São Paulo, e finalmente vim para a capital. Há algum tempo comecei a trabalhar numa construção. Tomava o trem às três e meia da madrugada e entrava no serviço as oito na Lapa. Havia perigo de desabamento, no poço que estávamos cavando, e eu já avisara o engenheiro. Mas ele não ligou.

Um dia aconteceu: veio tudo abaixo. Eu, que enfrentara tanto fogo sem sofrer um arranhão, quebrei a espinha, cinco costelas e perdi oito dentes. A espinha nunca mais sarou. Tenho a impressão de estar com ela atravessada por uma porção de agulhas. Segundo o advogado do INPS, a firma, terá de me indenizar.


"Até agora, nada, e já faz um ano. 
Mas vou deixando. Eu sou caboclo, não me afobo, eu espero".

Esse depoimento do "Balão" é muito interessante, pois traz muitas informações importantes, sobretudo s/ o combate de Angicos, local da morte de Lampião.

Um abraço a todos e obrigado pela atenção.
Ivanildo Silveira
NATAL/RN

Bônus


Aspecto recente da fazenda Cuiabá em Canindé do São Francisco/SE, local citado por Balão em que estiveram vários cangaceiros, após o "combate de Angicos". 

Observem o estado de abandono, em que se encontra a casa sede da fazenda pertencentes aos "Britos" (grandes coiteiros ):
 

Cortesia do escritor/pesquisador do cangaço, Dr. Sérgio A. S. Dantas.


9 comentários:

José Mendes Pereira disse...

Amigo Ivanildo Alves Silveira:
Não sei se já tenho condições de diferenciar fotos de cangaceiros, ou se alguma fonte que eu pesquisei, por motivo de displicência, tenha trocado os nomes de alguns deles. Mas para mim, esse que aparece de óculos, com o nome Moreno, é o cangaceiro Azulão, que está na foto juntamente com: Dadá, Enedina e Sabonete. Se realmente eu estiver enganado, o escritor não me julgue como crítico, pois eu sou apenas um principiante do cangaço brasileiro, querendo aprender com os senhores da literatura lampiônica.
José Mendes Pereira - Mossoró-Rn.

Blog do Trajano disse...

Nossa que entrevista. muito bom. sou fascinado por essa história. procuro sempre saber mais sobre o cangaço, essa parte marcante da história do Brasil, mais precisamente do nordeste.

Unknown disse...

Entrevista com riqueza de detalhes.
muito boa!!!

Unknown disse...

Estou super emconioando ...meus parabens pela cobertura Deus abencoe

Unknown disse...

Verdadeira história viva, muito bom esse testemunho, saber que a história foi contada pelo próprio personagem com todos esses detalhes, é como se estivesse também dentro da cena naquele momento. Parabéns pelas pesquisas e por partilhar essa entrevista, que foi sensacional. Parabéns!!

milene ketlyn disse...

Meu avô Guilherme (balão) que deu essa entrevista.

Unknown disse...

Com quantos anos ele morreu e em que ano? Já procurei essas informações mas nunca achei

Unknown disse...

Meu vozinho como queria o senhor aqui vivo... (Balão)

Unknown disse...

Meu Avô Guilherme (Balão) como que vc estive vivo....