quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

A ferida que não cicatriza

Quando Elise Jasmin falou sobre a influência ainda exercida pelo cangaceiro na cultura brasileira

Por ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

 

O maior bandido da história brasileira chegou à Sorbonne e comparece agora nas livrarias da França em "Lampião - Vies et Morts d'un Bandit Brésilien" (Vidas e Mortes de um Bandido Brasileiro), escrito pela historiadora Élise Grunspan-Jasmin.


Originalmente uma tese de doutorado para a universidade francesa, o trabalho recebeu o prêmio de melhor pesquisa científica concedido pelo jornal "Le Monde" e pela PUF (Presses Universitaire Françaises), que está publicando a obra.


"Lampião" é ao mesmo tempo uma biografia do cangaceiro e um ensaio sobre o seu mito na cultura nordestina e brasileira. A história de Virgulino Ferreira da Silva, nascido em torno de 1897 e morto em 1938, é traçada pela historiadora por meio de variados registros: documentos, imagens, depoimentos, reportagens jornalísticas e versos de cordel.


As diferentes fontes narram as sucessivas "vidas" e "mortes" criadas para o bandido, em suas duas décadas de cangaço e depois. Em Lampião, a sociedade brasileira projetou múltiplos conteúdos simbólicos, que expressavam as suas contradições concretas a respeito da posse da terra, das diferenças raciais, da violência, do sertão e da unidade nacional. "A história de Lampião é um vai-e-vem contínuo entre imaginário e real", diz Grunspan-Jasmin, 34. Leia a seguir trechos da entrevista.

Folha - O que levou uma historiadora francesa a se interessar pela história de Lampião?
Élise Grunspan-Jasmin -
Primeiro, porque seu mito impregna até hoje a cultura do Nordeste, onde eu vivi durante um tempo, em Recife. Depois, porque a fotografia foi parte integrante desse mito. Eu trabalhava anteriormente sobre os traços históricos nas fotografias e fiquei impressionada com a profusão de imagens desse personagem, desde o início de sua trajetória até a sua morte. Creio que a primeira foto que vi de seu grupo de cangaceiros foi a das cabeças cortadas e exibidas publicamente pelas forças da ordem. A imagem me chocou muito, pelo cuidado extremo de encenação fotográfica e a dimensão simbólica que foi visada na cenografia dessa morte.

Folha - Por que a encenação da morte é importante no caso de Lampião?
Grunspan-Jasmin -
A encenação da morte, feita pelo poder público, ocorre tanto com Lampião quanto com Antonio Conselheiro. Esses personagens simbolizam o sertão como um espaço de barbárie, que não poderia ser penetrado pela dita civilização, e a impossibilidade para o Brasil de obter a sua unidade nacional. Assim, em ambos os casos, as práticas de poder visam à destruição do mito e a uma despossessão pós-morte. No caso de Conselheiro, as autoridades impuseram que seu cadáver fosse desenterrado e fotografado em seguida, para só depois ter direito à decapitação. Como ele havia se apropriado de uma terra, ele é tirado dela, não tem o direito de ficar ali. No caso de Lampião, é o ato de decapitação, de separar o corpo em dois, que é determinante. Como ele não tinha terra, mas dominava um território e carregava suas riquezas sobre o próprio corpo, então é sobre esse corpo que se deve agir. Efetivamente, sua cabeça é cortada e o resto do corpo é deixado sem sepultura.

Folha - Da parte de Lampião, não haveria também um desejo de encenação do cangaço?
Grunspan-Jasmin -
Claro. Esse é um dos aspectos geniais do personagem. Ele utilizava a mídia, a fotografia, tudo que diz respeito ao visual, como a vestimenta, para a construção de seu próprio mito e de sua própria imagem. Isso é uma das grandes particularidades e um dos traços modernos desse personagem.

Folha - Por que o sertão interessou pouco os historiadores, como a sra. afirma em seu livro?
Grunspan-Jasmin -
Isso está mudando progressivamente. O sertão simbolizou para o Brasil essa impossibilidade de encontrar uma forma de unidade nacional. Era uma espécie de encrave arcaico, uma região considerada fora do tempo e da história, que não poderia ser desenvolvida. Ainda hoje, é bastante estigmatizado. Trata-se de uma questão que permanece aberta, a saber: como um país se constrói a partir dessa cristalização de uma região que sofre, como uma ferida sempre aberta, e revela frequentemente a essa nação a sua incapacidade de representar um corpo sem sofrimento.



Folha - O Brasil que a sra. descreve é um país guerreiro e violento, muito diverso da imagem dominante de um povo pacífico e conciliador.
Grunspan-Jasmin -
No início, meu trabalho era sobre o cangaço e certos aspectos da cultura nordestina por meio da violência. Para mim, que não conhecia direito o país, essa violência se amplificava nas imagens que via. O que me interessou em Lampião e em todas as projeções que fizeram dele é que se trata de um certo momento da história do país em que se vê uma violência exacerbada, seja dos cangaceiros, seja das forças da ordem. Ao mesmo tempo, vê-se uma força de vida, uma potência do imaginário e da criatividade muito grande. É uma ambivalência que faz a história desse período ser muito interessante.

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