Por Luiz Bernardo Pericás1
Em 18 de setembro de 1970, Joaquim Câmara Ferreira, membro histórico do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e na época dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), aconselhava, numa carta a militantes de sua organização, que eles lessem dois livros que considerava importantes para sua formação naquele momento. O primeiro deles era Os sertões, de Euclides da Cunha. O outro, As táticas de guerra dos cangaceiros, escrito pela jovem pesquisadora Maria Christina Russi da Matta Machado. Não custa lembrar que o próprio Marighella dava grande valor ao estudo da gesta lampiônica e achava fundamental compreender a dinâmica das atividades dos afamados bandoleiros sertanejos nordestinos.
“Temos que ser como Lampião”, disse em certo momento o inimigo número um da ditadura. A forma como atuava Virgulino Ferreira e a longevidade de suas ações, portanto, certamente interessavam muito ao fundador da ALN, assim como ao seu sucessor no grupo (MAGALHÃES, 2012, p. 396; MAGALHÃES, 2015)2.
A obra de Machado, publicada no Rio de Janeiro em 1969, pela Editora Laemmert - na época dirigida pelo então jornalista e ideólogo da Organização Marxista Revolucionária (ORM), conhecida como Política Operária (Polop), Luiz Alberto Moniz Bandeira -, de fato, teria grande repercussão. Basta recordar que, quando o autor de O caminho da revolução brasileira foi preso, o comandante da Marinha que o interrogou no Centro de Informações da Marinha (Cenimar) chegou, inclusive, a mencionar o livro de Machado. Apesar de tudo, na ocasião, o texto polêmico não seria apreendido pelos militares (MONIZ BANDEIRA, 2010).
A Laemmert havia lançado no período obras emblemáticas, como A questão agrária, de Karl Kautsky, Da Noruega ao México e Revolução e contra-revolução, de León Trótsky, Poemas do cárcere e A resistência do Vietnã, de Ho Chi Minh, História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, e O imperialismo e a economia mundial, de Nikolai Bukhárin, entre vários outros. O livro de Christina Matta Machado, incluído na série Cultura Popular, seria mais um nessa lista. E teria destaque. Afinal, na época em que As táticas de guerra dos cangaceiros foi editado, o Brasil passava pelo auge da ditadura, com perseguições, prisões e torturas de militantes de esquerda se tornando algo cada vez mais comum. E com a luta revolucionária se mostrando como única alternativa para diferentes grupos que apoiavam a resistência armada ao regime militar.
Nascida em 9 de fevereiro de 1938, em São Paulo, filha de Max Barbosa da Matta Machado e Adalgysa Russi da Matta Machado, Maria Christina Russi da Matta Machado concluiria o ginásio no Colégio Rio Branco, em 1954, e o curso clássico no Instituto Mackenzie, cinco anos mais tarde.
A jovem estudante se licenciou em história pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae da Pontifícia Universidade Católica (PUC) paulista (onde havia sido diretora de seu Centro Acadêmico) em 17 de dezembro de 1963, conseguindo, dois anos depois, uma bolsa de estudos obtida através do Serviço de Ensino Vocacional (SEV) de São Paulo, promovido pelo Ministério da Educação Federal, com o objetivo de treinar professores para a renovação do ensino secundário.
Ainda atuaria como membro da equipe de educação de base do Movimento Universitário de Desfavelamento (MUD) - nesse sentido, em 1965 participou do Seminário Nacional de Estudos do Problema Favela, organizado por essa entidade - e chegou a se matricular, em 1968, na Escola de Sociologia e Política (MACHADO, 1963a).
Em última instância, daria continuidade a seus estudos na Universidade de São Paulo (USP), onde ingressaria na pós-graduação, tendo como orientador de doutorado, inicialmente, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, de quem também foi aluna. Seria dispensada pelo eminente intelectual, segundo o próprio, por ele ter solicitado e obtido sua aposentadoria3 - outra versão, contudo, indica a mudança de tutor após ela ter se desentendido com o autor de Raízes do Brasil por desacordos sobre sua interpretação do tema (PAULA, 1973, p. 139-141).
Por causa disso, acabaria sendo orientada pelo professor Eurípedes Simões de Paula e prepararia a tese Cangaço: aspectos socioeconômicos, que mais tarde recebeu o título Aspectos do fenômeno do cangaço no Nordeste brasileiro4. Clique aqui
O prazo final para a sua entrega na secretaria seria 31 de agosto de 1972, ainda que o trabalho, ao que tudo indica, estivesse bem adiantado. Ou seja, ela possivelmente depositaria o material antes da data exigida pela burocracia acadêmica (é provável que fizesse isso no ano anterior ao solicitado) (OFÍCIO/CIRCULAR, 1972).
Já tinha uma banca montada informalmente, que seria composta por Ruy Galvão de Andrada Coelho5, Pasquale Petrone6, Carlos Guilherme Mota7 e Sebastião Witter8. Todos haviam se comprometido, extraoficialmente, a participar da arguição da candidata9. Mas isso nunca chegou a ocorrer.
Afinal, ela daria seu último suspiro na madrugada do dia 23 de outubro de 1971, dentro de seu próprio quarto, no apartamento em que morava com os pais, na Avenida Paulista, na capital do estado.
A causa: edema agudo do pulmão, insuficiência cardíaca, leucemia e anemia. Machado planejava se casar um dia após sua defesa na USP e partiria, em seguida, para a França, onde faria um segundo doutorado na Universidade de Paris (com uma bolsa concedida pelo governo daquele país). O projeto era ficar na Europa até o fim de outubro de 1972, onde seria orientada por Frédéric Mauro. Sua trajetória, interrompida abruptamente, portanto, impediu que desenvolvesse seus estudos e impossibilitou que pudesse sofisticar ou mesmo reavaliar os argumentos apresentados em seu livro de juventude (PAULA, 1973).
Mesmo seu derradeiro trabalho acadêmico poderia ter sido modificado e aprofundado. Afinal, o professor Simões de Paula aparentemente discutiu com a estudiosa vários aspectos do texto, seu método, fontes e bibliografia, todos elementos que não foram incorporados em suas páginas finais, por não ter havido tempo (PAULA, 1973). Além disso, o trabalho deixado, ainda em fase de desenvolvimento, foi revisado por seu pai (um advogado aposentado), que não conhecia o assunto. O esforço do progenitor certamente foi louvável, mas não impediu que restassem diversos erros na versão final (problemas que ocorreram também em seu livro e que passaram despercebidos pela própria autora e pelos revisores da Laemmert e da Editora Brasiliense, que publicaria uma nova edição do livro em 1978).
É verdade que Machado havia feito, por quatro anos, uma extensa pesquisa de campo, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Teria percorrido, acompanhada da mãe, quase uma centena de localidades nordestinas por onde passou Lampião, gravou muitas entrevistas com ex-cangaceiros e acumulou um vasto material de arquivo sobre o tema10. A jovem doutoranda chegou a possuir uma quantidade significativa de livros, caixas de microfilmes, fichamentos, fitas cassete e recortes de jornal ligados à sua investigação.
Como resultado parcial de seus esforços, escreveu, nos tempos de estudante, “Nordeste da seca não é Nordeste da miséria”, “O sertanejo tem no sangue a liberdade” (monografia preparada para o curso de Literatura Brasileira, no qual esteve inscrita em 1966), “Visão geral do Nordeste”, “O sertão não progrediu” e dois trabalhos baseados na disciplina ministrada por Sérgio Buarque, “Canudos e a política de Antônio Conselheiro” e “A política dos coronéis”. Entre 1966 e 1967, ela participaria de seminários do eminente escritor, que ocupava a cadeira de História da Civilização Brasileira (MACHADO, 1963b).
Chegou a publicar os artigos “Aos que se comunicam” e “Aqui ali mulher” no Diário de S. Paulo, ambos em 1967, e “Memórias do cangaço”, no Jornal da Tarde, no mesmo ano. Havia ainda preparado “Classes sociais no meio rural” para a Revista de Sociologia (MACHADO, 1963b). Em Realidade, em 1968, sairia uma entrevista com Dadá, a mulher de Corisco (MACHADO, 1968), assim como, no ano seguinte e na mesma revista, a reportagem “A vida depois do cangaço” (juntamente com seu noivo, o jornalista Humberto Mesquita, com fotos de Jorge Bodanzky), na qual mostrava o reencontro de antigos bandoleiros do grupo de Virgulino Ferreira que haviam sobrevivido à tragédia da Grota do Angico (Zé Sereno, Sila, Marinheiro e Criança) com o soldado da volante Adriano Ferreira de Andrade em um restaurante de São Paulo, em um almoço promovido pela própria pesquisadora (MACHADO; MESQUITA, 1968)11 (duas outras matérias para a mesma publicação, “O último dos místicos” e “Lampião”, foram preparadas, segundo a autora).
Em 1969 lançaria também seu As táticas de guerra dos cangaceiros. E entre 1973 e 1974, finalmente, os capítulos de sua tese Aspectos do fenômeno do cangaço no Nordeste brasileiro (MACHADO, 1973a; 1973b; 1973c; 1974a, 1974c)12 seriam publicados postumamente em cinco partes, em diferentes edições da Revista de História, obra que, em seu conjunto, foi considerada por Melquíades Pinto Paiva como um “importante estudo de natureza sociológica” (PAIVA, 2012, p. 223).
Não custa lembrar que aquele era um período de bastante interesse pelo cangaço, com periódicos como Jornal do Brasil, O Cruzeiro, Diário de Notícias, Fatos e Fotos, Manchete e Realidade levando à luz entrevistas e matérias investigativas sobre o assunto, escritas por nomes conhecidos como Oswaldo Amorim, Jorge Audi e Nonnato Masson, entre outros (AMORIM, 1969; AUDI, 1968; MASSON, 1961; NOBLAT, 1972; 1973; SILVA, 1970).
A tese de Christina Matta Machado se destaca, especialmente, pelos depoimentos de cangaceiros, coiteiros, volantes e políticos, personalidades como Dadá, Saracura, Labareda, Zé Sereno, Zé Rufino, Sila, João Siqueira, Balão, Eustáquio Jovino Ribeiro, Luiz Caldeirão e João Bezerra, entre outros. Ou seja, a autora dá voz aos personagens. O recurso da história oral é, portanto, um elemento fundamental em seu trabalho. Também inclui trechos de matérias jornalísticas da época, mostrando o papel da imprensa na difusão da informação e na construção da imagem dos cangaceiros.
Maria Chrsitina e o ex-cangaceiro Anjo Roque Labareda.
O caráter irredentista do cangaço, por sua vez, é bastante desenvolvido por ela. A parte IV da tese, que discute aspectos culturais do sertão, como os valores dos bandoleiros, suas formas de convivência, o comportamento da mulher, a questão do machismo, o misticismo, as superstições, as crendices e os padrões de honestidade, talvez seja a melhor do conjunto da obra, que alterna momentos favoráveis com outros de menor rigor metodológico.
Ainda assim, é possível apontar diversos problemas no trabalho. É certo que ela utiliza autores clássicos em sua tese, como Caio Prado Júnior, Oliveira Viana, Nelson Werneck Sodré, Vitor Nunes Leal, Marcos Villaça, Roberto C. de Albuquerque, Walfrido Moraes, José Américo de Almeida, L. A. Costa Pinto, Wilson Lins, Ulisses Lins de Albuquerque, Raimundo Nonato, Estácio de Lima, Optato Gueiros, Josué de Castro, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Ranulpho Prata, Gustavo Barroso, Eric Hobsbawm e Rui Facó. Ainda assim, a bibliografia é insuficiente e usada de forma instrumental13.
A metodologia aplicada às entrevistas também é bastante frágil. A autora realizou arguições com um número limitado de indivíduos, classificando-os à sua maneira e extraindo conclusões peremptórias de amostragens aleatórias e exclusivistas14. Os números apresentados e as porcentagens não convencem os pesquisadores mais exigentes. O verniz cientificista, portanto, não se sustenta nesse caso (exemplos claros disso podem ser encontrados no capítulo “Coronel e seca” ou no “Anexo 1”, por exemplo). Além disso, a tendência a ver o mundo de forma maniqueísta, com poucos matizes, pode ser encontrada em profusão nos trabalhos da estudiosa, assim como algumas contradições na narrativa, como no trecho em que afirma:
Provavelmente a partir de 1930, com a desintegração das antigas oligarquias, os jagunços procuraram o cangaço como forma de defesa, uma vez que seus antigos protetores já não possuíam o mesmo prestígio.
Desta forma, o cangaço aumentou com todos esses elementos perseguidos, mas enfraqueceu-se em seus princípios e normas.
Percebemos, na década de 30, o início da desintegração do movimento. (MACHADO, 1973b, p. 187 - grifos nossos).
É possível notar a influência de Eric Hobsbawm (Rebeldes primitivos, 1959)15 assim como do livro Cangaceiros e fanáticos, do jornalista Rui Facó (1963a)16. Mas, se o intelectual pecebista realizava seus estudos a partir de uma perspectiva político-partidária, a pesquisadora da USP analisaria o fenômeno de um ponto de vista acadêmico. Ou seja, a obra de Machado é claramente um reflexo de sua época, traduzindo para o meio universitário uma discussão candente no ambiente político da esquerda brasileira.
Um dos depoimentos incluídos na tese é emblemático. Um entrevistado da jovem pesquisadora diria: “Lampião tinha qualquer coisa de extraordinário - era sua tática de guerrilha. Quando Mao Tsé-tung fazia guerrilha no remoto Oriente, Lampião o fazia aqui no Brasil muito melhor” (MACHADO, 1974a, p. 179)17. Em outro momento, ela chegaria a afirmar que os cangaceiros “não roubavam dos pobres, e, muitas vezes, o produto do furto, efetuado contra os ricos, era distribuído com o povo” (MACHADO, 1974a, p. 195). Um argumento típico da interpretação de esquerda da época, mas que não corresponde necessariamente à realidade...
A pequena obra da autora certamente tem importância, ainda que esteja intrinsecamente ligada ao momento histórico em que foi produzida. Mas, se ela tem o mérito de ter sido pioneira nesse sentido, é difícil dizer que suas elaborações tenham resistido ao tempo.
O caso de As táticas de guerra dos cangaceiros é emblemático. É certo que houve quem admirasse tal estudo. A antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros chegou a dizer que aquele seria “um dos mais interessantes livros sobre a história de Lampião [...] pela riqueza de informações sobre o cotidiano do cangaço”, destacando a “beleza da narrativa” (BARROS, 2007, p. 81). O fato de ter sido orientada na USP por dois renomados professores, de acordo com Barros, tornava aquele “trabalho obrigatório para quem estuda este tema” (BARROS, 2007, p. 81).
A mesma admiração tinha Expedita Ferreira Nunes, filha do “rei dos cangaceiros”. Foi Christina Matta Machado que possibilitou a ida de Expedita a São Paulo para conhecer a ex-bandoleira Sila, que morava na cidade. Este, um dos papéis desempenhados pela jovem estudante de doutorado: colocava em contato indivíduos ligados a Lampião ou a seu grupo, em recepções organizadas por ela.
A jovem Vera Ferreira (neta de Lampião e Maria) e sua mãe, Expedita
durante encontro histórico em São Paulo.
De acordo com Expedita, foi Machado que a fez ver “melhor” seus pais e a enxergá-los de uma maneira diferente daquela apresentada por outros escritores. Teria sido por causa da historiadora que deixou de ter vergonha deles. O livro da autora paulista, portanto, era o de que mais gostava dentre todos que havia lido (SOUZA; ORRICO, 1984, p. 116-117).
Expedita, a escritora e Vera
O encontro que reuniu ex-companheiros do rei do cangaço.
A própria Sila escreveria sobre sua experiência no cangaço e incluiria Maria Christina nos agradecimentos de uma de suas obras (SOUZA; ORRICO, 1984, p. 116-117). A intimidade da pesquisadora uspiana com Sila era tal que ela se tornou madrinha de casamento de uma das filhas da ex-cangaceira, numa cerimônia lotada, que contou até mesmo com a presença de uma equipe de televisão para registrar o acontecimento (SOUZA, 1995, p. 82).
Alguns destes ex-companheiros de armas não se viam desde o fim do cangaço
Ainda assim, houve aqueles que apontaram uma diversidade de problemas sérios na obra.
Possivelmente o principal deles tenha sido Frederico Pernambucano de Mello (um dos mais importantes pesquisadores do cangaço). Para ele, o livro de Machado estava “eivado de erros imperdoáveis, além de não conter em suas páginas nada que diga respeito ao título” (MELLO, 2004, p. 156).
No livro é possível encontrar, assim como na tese, uma bibliografia que abarcava autores conhecidos e fundamentais para o desenvolvimento do tema, como André João Antonil, Capistrano de Abreu, Manuel Correia de Andrade, Roger Bastide, Eduardo Barbosa, Antônio Callado, Euclides da Cunha, J. Pandiá Calógeras, Luís da Câmara Cascudo, Rodrigues de Carvalho, Paulo Dantas, Celso Furtado, Gilberto Freyre, José Alípio Goulart, Leonardo Mota, Walfrido de Moraes, Edmar Morel, Graciliano Ramos, Franklin Távora e Luís Viana, entre muitos outros.
A pesquisa hemerográfica, por sua vez, incluía periódicos nordestinos do auge do cangaço, como A Tarde e Diário de Notícias (Salvador), Correio de Alagoas e os sergipanos Correio de Aracaju, A República e A Gazeta. Além disso, também utilizou anotações da disciplina de pós-graduação “Cangaço na realidade brasileira”, da Cadeira de Literatura Brasileira, que ela cursou na USP, em 1966, trabalhando as informações da monografia do professor Bernardo Issler.
Em outras palavras, ela possuía bom material para construir sua análise. Ainda assim, o resultado ficou bem distante do ideal.
O livro tem como características principais, portanto, o viés narrativo e factual, a tentativa de reproduzir a linguagem e os diálogos locais, e a preocupação com os aspectos estratégicos, táticos e militares dos cangaceiros (principalmente no capítulo “Tática de luta”), reforçando a imagem daqueles brigands como algo semelhante aos “bandidos sociais”18 (ainda que não utilizasse explicitamente o termo em suas páginas).
Tanto as notas de referência como as explicativas são elaboradas, em geral, de maneira bastante displicente, com pouca preocupação com os detalhes bibliográficos ou indicação de datas e locais onde colheu os depoimentos e relatos dos entrevistados. Por sua vez, na terminologia aplicada pela autora, sem maior rigor, palavras e conceitos como “estilo medieval”, “regime puramente feudal” (no período colonial), “camponês” (para designar os sertanejos nordestinos)19 e mesmo “movimento armado contra a injustiça” (MACHADO, 1969, p. 203) para descrever o cangaço (ela classifica a modalidade de “fenômeno” em outro momento do livro) são usados pela pesquisadora, que até mesmo fala sobre uma “estratégia do coronelismo e seus mercenários”.
Na tese, ela afirmaria que “o cangaceiro é um herói que se rebela contra uma perseguição injusta da polícia” (MACHADO, 1973b, p. 196 - grifos nossos). Algo similar é dito no livro publicado pela Laemmert, dessa vez sobre Lampião (figura central de seu trabalho), que para ela havia sido “o anjo da guarda dos pobres”! (MACHADO, 1969, p. 68). Afinal de contas, ele “não foi o flagelo do sertão, mas o flagelo dos coronéis” (MACHADO, 1969, p. 207).
A autora naturaliza, de forma determinista, os traços psicológicos de indivíduos e grupos humanos. Já no início da obra, ela afirma que “os cangaceiros nunca foram entendidos, porque jamais foram pesquisados” (MACHADO, 1969, p. 9), negligenciando uma série de estudos importantes realizados sobre o fenômeno (com diferentes graus de qualidade, profundidade e sofisticação, por certo) ao longo de vários lustros antes da publicação de seu livro.
Afinal, seja qual for a opinião do estudioso (e seu perfil político e ideológico), não se pode desconsiderar os trabalhos de autores como Estácio de Lima, Luiz Luna, Leonardo Mota, Antonio Xavier de Oliveira, Pedro Baptista, Optato Gueiros, Abelardo Montenegro, Walfrido Moraes, Abelardo Parreira e Ranulpho Prata, entre tantos outros, muitos dos quais, por sinal, ela conhecia e havia utilizado em seus textos.
Também no começo do livro, ela diria, em relação à mentalidade dos portugueses, que “quando vieram para o Brasil [no período colonial], trouxeram sua arrogância de grandes senhores” (MACHADO, 1969, p. 14). Ao final, por sua vez, depois de afirmar que “o sertão talvez progredisse, porque o elemento humano é bom e trabalhador, possuindo energia suficiente para lutar por seus direitos, por sua terra e família” (MACHADO, 1969, p. 203), a pesquisadora paulista conclui:
“A verdade é que o coronel de ontem é o mesmo de hoje, com a mesma mentalidade medieval, com os mesmos costumes, e acreditando ainda na sua prepotência, com o mesmo orgulho, e representando o maior entrave para o desenvolvimento social, econômico e político do Nordeste” (MACHADO, 1969, p. 208).
A resolução dos problemas regionais, contudo, é deixada em aberto...
Mesmo que hoje o nome de Christina Matta Machado seja pouco lembrado pelo grande público, ela produziu um dos livros de bolso dos guerrilheiros na época da ditadura militar e foi lida com grande interesse por toda uma geração de jovens no início dos anos setenta do século passado20.
Seus trabalhos, apesar de todas as limitações, continuam emblemáticos e ainda são usados como referência bibliográfica pelos estudiosos do cangaço na atualidade.
SOBRE O AUTOR
LUIZ BERNARDO PERICÁS é professor de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e autor de, entre outros, Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo, Troféu Juca Pato – intelectual do ano, 2016). E-mail: lbpericas@hotmail.comhttps://orcid.org/0000-0001-8201-1181
REFERÊNCIAS
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Pesacado em Revistas USP
A matéria foi ilustrada pelo Lampião Aceso.
2 comentários:
Parabéns ao autor e ao amigo Kiko Monteiro pela disponibilidade desse interessante material.
Maria Chrsitina foi muitas vezes negligenciada, mas seus esforços marcaram um primeiro movimento de trazer a voz dos cangaceiros para a escrita do tema. Muito se fala de Chandler, Amaury e Frederico (autores relevantes e importantes) renegando ao esquecimento essa jovem historiadora que partiu tão cedo.
Precisamos estudar melhor as contribuição de Maria Chrsitina. O texto escrito pelo historiador Pericás e disponibilizado aqui, pode ser um ponto de partida!
muito bom , é possível ainda adquirir o livro dela?
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