Um Lampião que escurece: a ética do bandido
Por: Matheus Almeida Lima
Lampião foi o pseudônimo de Virgulino Ferreira, um dos maiores criminosos da historiografia brasileira que, entre a década de 1920 até sua morte em 1938, submeteu o sertão nordestino à carnificina e à arbitrariedade mortal sob seu comando.
No seu auge, mostrou-se um homem independente da sociedade a sua volta, um poder próprio superior á qualquer aparato social que ousava conter sua vontade, um ser temido, incompreensível, irrefreável e adornado por misticismo e superstição, uma verdadeira força da natureza. Contudo, como poderia um mero mortal conciliar sua humanidade com mãos tão cheias de sangue? Sob maior análise de sua vida, torna-se fascinante a dissonância entre as facetas de Virgulino, pai e católico fervoroso e ao mesmo tempo facínora assassino, e assim, mais interessante é a compreensão daquilo que ele tinha, grosseiramente, como sua ética.
Tal incongruência em suas ações é comum a vilões da mesma estirpe; todo ditador, todo assassino em massa teve seus momentos de sensibilidade, o que difere Lampião é como compartilhava sua corrupção de caráter com um bando de dezenas de pessoas próximas e fiéis a ele, e, principalmente, como não considerava suas ações nem ruins nem justificáveis para algum bem maior.
A sua vida como criminoso não serviu ao fim lógico de vingar sua família, e sim o propósito irascível de perpetuar seu desejo de matar e saquear, sem razão porque, isto também sendo uma peculiaridade da sua situação, não havia grande proveito da sua enorme esfera de poder e dinheiro, ele continuava no meio do mato, fugindo eternamente e mal sobrevivendo, mas mantendo sua posição de estar fora do alcance das regras.
Essa disposição ao massacre sacrificou qualquer concepção usual de alegria, o relegou a uma vida ao mesmo tempo miserável e poderosa, um dualismo nunca deixado até sua morte, mesmo em face das mais variadas intempéries. O que passava por sua mente, por exemplo, ao viajar pela caatinga no breu absoluto com um bebê, filho de um dos cangaceiros que o seguiam, amordaçado para não chorar e avisar a polícia de sua localização? Ou a andar quilômetros sob o sol escaldante, junto de sua esposa, a mulher que lhe deu uma filha e que ele amaria, após dias sem tomar banho?
Para assistir a cenas como essa, cotidianas e corriqueiras no cangaço, e não sentir a repulsa ao horror, a vontade de agir, de abdicar de sua força e sair do cangaço para algo bom, mesmo que para o bem de si mesmo e de sua família, é estar completamente imbuído na barbárie e não constatar nada disso como ruim, é ter sua humanidade há tempos escamada e encrostada em favor de uma monstruosidade sanguinária, animalesca, que valoriza o poder e a liberdade fora da lei em prejuízo da autopreservação e da ordem, o que deixa seu norte moral diametralmente oposto à civilização.
Ainda mais, é necessário salientar a religiosidade de Lampião, um grande devoto de Padre Cícero e ligado ao misticismo católico próprio da região, e como foi lhe foi possível, em sua cabeça, manter um sentido lógico entre os epítetos de cristão e homicida em série. É óbvio o quão incongruente tal associação é; Lampião se fez tão cristão quanto o soldado romano que coroou Jesus Cristo, com o diadema de espinhos, pois a violência de ambos apenas arranha e fere uma noção contundente de cristianismo.
Entretanto, não é nessa fé tradicional que Virgulino se baseia, é numa interpretação pessoal e adulterada da vontade de Deus sobre o mundo que ele mistura ao catolicismo e as superstições vigentes e então chama de religião.
Ele mirava sua arma num inocente e dizia que se ele acertasse a bala e o outro morresse, era legítimo por ser o que Deus queria que acontecesse, caso contrário, não teria acontecido.
É nítido o teor cínico nessa crença, mas mais pungente ainda é a maneira indulgente que ele usava o divino para ratificar sua aniquilação sobre o Nordeste brasileiro.
Uma visão quase insultante da fé, aproveitada para fundamentar sua sujeira moral.
Ademais, a manutenção dessa percepção só serviu de terapia covarde para sua psique, talvez assim garantindo o silêncio de uma consciência mirrada, diminuta, e espantando qualquer arrependimento, pois era a vontade de Deus, pensava, ao cortar uma cabeça como prêmio.
O autor |
Foi um rebelde contra as bases da vida humana, uma causa totalmente individual e desprovida de mérito. Se fez não como um herói contra a opressão dos mais pobres, não como um Übermensch do modelo nietzschiano de moral autônoma; Foi um mísero sertanejo que se dedicou ao caos e à matança em prol de nada.
*Aluno do 3º Ano do Colégio José Augusto Vieira, de Lagarto, SE.
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