Entre a ficção e um dolorosa realidade
Por Rangel Alves da Costa
"Abri a porteira e caminhei por uma estradinha de chão. Logo adiante avistei uma moradia de fazenda e um curral logo ao lado. Tanto a casa como o curral em silêncio absoluto, ouvindo-se apenas o murmurejar do vento e do balançar de folhagens. Pelas portas e janelas fechadas, pela quietude do lugar e também pela ausência de qualquer vestígio de presença humana, então resolvi observar se havia pegada recente de animais pelo curral, mas apenas o barro duro e o estrume de canto a outro. Segui adiante. Somente após abrir o primeiro colchete é que tudo começou a mudar.
Aquele silencio e aquela mansidão de mais atrás, de repente começaram a totalmente se transformar. Após o segundo colchete, então o mato pareceu se agitar, a ter olhos, a guardar segredos perante seus tufos, a dialogar com alguma presença humana. Não há que se negar que tal situação causa espanto e medo em qualquer um.
Mas eu tinha de prosseguir, pois sabia muito bem o que queria encontrar. Pelas histórias muitas vezes ouvidas, logo nas proximidades daquele local, no ano 32, havia começado um dos mais terríveis episódios da história do Cangaço, ou uma das maiores covardias já perpetradas por cangaceiros liderados por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Caminhei um pouco mais até me deparar com uma lagoa seca em meio aos descampados.
Lancei o olhar de canto a outro e foi como estivesse na presença de terríveis e sanguinários cangaceiros, depois um sopro voraz de ventania me contou que aqueles desumanos bandoleiros eram Gato, Azulão, Suspeita, Medalha e Cajueiro, todos liderados pelo primeiro. Eu já nem sabia em que mundo, tempo ou realidade estava. E mais estranho ainda quando comecei a ouvir uma voz que começou a relatar todo o acontecido naquelas distâncias dos sertões de Poço Redondo.
Gato |
Com sotaque de velho sertanejo, mas sem aparecer fisicamente, então contou-me: ‘O ano era 32. Montados em cavalos, Lampião e seus cabras chagaram na região do Couro, já na divisa de Sergipe e Bahia. Umas selas e uns arreios dos cangaceiros foram enterrados, mas depois encontrados por um rapazote que por ali residia.
E deu ordens para que Gato e seus comandados fizessem uma investida pela região e passassem a punhal e a mosquetão o que encontrassem. E assim a fúria perversa e sangrenta começou a agir. Mataram logo dois e depois seguiram matando, mais três e mais dois. Sete ao todo. Morreram os inocentes Antônio Monteiro, o menino Galdino, de apenas sete anos, Alfredo, Clemente e seus filhos Doroteu e João, ainda um doidinho chamado Zé Bonitinho.
- E o que você está procurando está logo ali, depois daquele embrenhado de mato. Não é a capelinha que você está procurando, a capelinha levantada em memória dos dois primeiros mortos da Chacina do Couro, que foram Antônio Monteiro e o menino Galdino? Tá tudo já caindo, mas vá até lá e reze por aquelas pobres almas. Vá rezar, vá orar por mim, pois sou uma daquelas almas ali esquecidas no tempo’.
E depois apenas o silêncio.
E a minha entristecida presença ao lado dos restos dos restos, do que amanhã talvez nada reste, senão as memórias de um tempo de dor e de sofrimento”.