Quando Elise Jasmin falou sobre a influência ainda exercida pelo cangaceiro na cultura brasileira
Por ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
Originalmente uma tese de
doutorado para a universidade
francesa, o trabalho recebeu o
prêmio de melhor pesquisa científica concedido pelo jornal "Le
Monde" e pela PUF (Presses Universitaire Françaises), que está
publicando a obra.
"Lampião" é ao mesmo tempo
uma biografia do cangaceiro e um
ensaio sobre o seu mito na cultura
nordestina e brasileira. A história
de Virgulino Ferreira da Silva,
nascido em torno de 1897 e morto
em 1938, é traçada pela historiadora por meio de variados registros:
documentos, imagens, depoimentos, reportagens jornalísticas e versos de
cordel.
As diferentes fontes narram as
sucessivas "vidas" e "mortes"
criadas para o bandido, em suas
duas décadas de cangaço e depois.
Em Lampião, a sociedade brasileira projetou múltiplos conteúdos simbólicos, que expressavam
as suas contradições concretas a
respeito da posse da terra, das diferenças raciais, da violência, do
sertão e da unidade nacional. "A
história de Lampião é um vai-e-vem contínuo entre imaginário e
real", diz Grunspan-Jasmin, 34.
Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha - O que levou uma historiadora francesa a se interessar pela
história de Lampião?
Élise Grunspan-Jasmin - Primeiro, porque seu mito impregna até
hoje a cultura do Nordeste, onde
eu vivi durante um tempo, em Recife. Depois, porque a fotografia
foi parte integrante desse mito. Eu
trabalhava anteriormente sobre
os traços históricos nas fotografias e fiquei impressionada com a
profusão de imagens desse personagem, desde o início de sua trajetória até a sua morte. Creio que a
primeira foto que vi de seu grupo
de cangaceiros foi a das cabeças
cortadas e exibidas publicamente
pelas forças da ordem. A imagem
me chocou muito, pelo cuidado
extremo de encenação fotográfica
e a dimensão simbólica que foi visada na cenografia dessa morte.
Folha - Por que a encenação da
morte é importante no caso de
Lampião?
Grunspan-Jasmin - A encenação
da morte, feita pelo poder público, ocorre tanto com Lampião
quanto com Antonio Conselheiro. Esses personagens simbolizam o sertão como um espaço de
barbárie, que não poderia ser penetrado pela dita civilização, e a
impossibilidade para o Brasil de
obter a sua unidade nacional. Assim, em ambos os casos, as práticas de poder visam à destruição
do mito e a uma despossessão
pós-morte. No caso de Conselheiro, as autoridades impuseram que
seu cadáver fosse desenterrado e
fotografado em seguida, para só
depois ter direito à decapitação.
Como ele havia se apropriado de
uma terra, ele é tirado dela, não
tem o direito de ficar ali. No caso
de Lampião, é o ato de decapitação, de separar o corpo em dois,
que é determinante. Como ele
não tinha terra, mas dominava
um território e carregava suas riquezas sobre o próprio corpo, então é sobre esse corpo que se deve
agir. Efetivamente, sua cabeça é
cortada e o resto do corpo é deixado sem sepultura.
Folha - Da parte de Lampião, não
haveria também um desejo de encenação do cangaço?
Grunspan-Jasmin - Claro. Esse é
um dos aspectos geniais do personagem. Ele utilizava a mídia, a fotografia, tudo que diz respeito ao
visual, como a vestimenta, para a
construção de seu próprio mito e
de sua própria imagem. Isso é
uma das grandes particularidades
e um dos traços modernos desse
personagem.
Folha - Por que o sertão interessou pouco os historiadores, como a
sra. afirma em seu livro?
Grunspan-Jasmin - Isso está mudando progressivamente. O sertão simbolizou para o Brasil essa
impossibilidade de encontrar
uma forma de unidade nacional.
Era uma espécie de encrave arcaico, uma região considerada fora
do tempo e da história, que não
poderia ser desenvolvida. Ainda
hoje, é bastante estigmatizado.
Trata-se de uma questão que permanece aberta, a saber: como um
país se constrói a partir dessa cristalização de uma região que sofre,
como uma ferida sempre aberta, e
revela frequentemente a essa nação a sua incapacidade de representar um corpo sem sofrimento.
Folha - O Brasil que a sra. descreve é um país guerreiro e violento, muito diverso da imagem dominante de um povo pacífico e conciliador.
Grunspan-Jasmin - No início, meu trabalho era sobre o cangaço e certos aspectos da cultura nordestina por meio da violência. Para mim, que não conhecia direito o país, essa violência se amplificava nas imagens que via. O que me interessou em Lampião e em todas as projeções que fizeram dele é que se trata de um certo momento da história do país em que se vê uma violência exacerbada, seja dos cangaceiros, seja das forças da ordem. Ao mesmo tempo, vê-se uma força de vida, uma potência do imaginário e da criatividade muito grande. É uma ambivalência que faz a história desse período ser muito interessante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário