Revisitando o Caldeirão – Beato José Lourenço é o último “Conselheiro”
Por Tarcísio Marcos Alves (1940 – 2016) – Professor – Autor do livro A Santa Cruz do Deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920-1937.
Fonte – Suplemento Cultural. Estado de Pernambuco. Ano XII. Outubro/Novembro 1997, págs 24 e 25. Imagens – Tok de História
Em 1897, quando as tropas federais
destruíram Canudos, o beato José Lourenço Gomes da Silva iniciava, no
Sítio Baixa D’Anta, no Juazeiro do Norte — Ceará, a organização de uma
comunidade camponesa igualitária que, após, alguns anos, realizara no
Sítio Caldeirão, no Crato — Ceará. A experiência realizada pelo beato
José Lourenço representou a última tentativa de um beato e seus
seguidores de organizar uma comunidade camponesa de cunho religioso nos
sertões nordestinos.
Isto
porque a política modernizante-autoritária do Estado Novo, aliada às
facções fascistas da Igreja Católica, destruíram sistematicamente os
movimentos populares — de beatos e cangaceiros — filhos do século XIX;
Caldeirão foi devastado em 1937, e, um ano depois, Lampião e seus
sequazes foram assassinados pelo capitão João Bezerra, seguido, meses
depois, pela dizimação dos restos de beatos que viviam em Pau de Colher,
na Bahia, pelo implacável caçador de beatos e cangaceiros Optato
Gueiros…
O Estado Novo encerrou assim, para sempre,
um ciclo de revoltas populares características do século XIX, que desde
então estarão historicamente ultrapassadas.
José Lourenço chegou ao Juazeiro do Norte
na época dos “milagres” (1889), quando a aldeia fervilhava de romeiros
que afluíam de todas as regiões sertanejas para a terra do Padre Cícero
Romão Batista. Duas coisas importantes os atraíam: as terras férteis do
Vale do Cariri e a certeza de alcançarem a salvação na cidade do santo
milagreiro. O próprio Padre Cícero constatou o fato, ao afirmar que
“Juazeiro tem sido um refúgio dos náufragos da vida”. É que para lá iam
multidões de miseráveis, refugiados das regiões castigadas pelas secas…
O
beato José Lourenço logo se integrou na aldeia e tornou-se penitente.
Morou alguns anos no Juazeiro e depois foi com a família viver no sítio
Baixa D’Anta. Lá começaram a desenvolver uma experiência de trabalho
coletivo com base no mutirão, o que levou a um esboço de organização de
uma comunidade camponesa de cunho cooperativista. Mas o que mais marcou a
sua vida no sítio e o tornou conhecido na região foi o episódio do boi
“Mansinho”. Tratava-se de um garrote que o Padre Cícero ganhara de
presente e dera ao beato para criar. Como era um animal pertencente ao
Padre Cícero, toda a comunidade dedicava um tratamento especial ao boi.
Em pouco tempo surgiram boatos de que o boi “Mansinho” estava fazendo
milagres…
Por essa época (cerca de 1920), além das
perseguições religiosas contra o Padre Cícero, a imprensa fazia uma
feroz campanha contra Floro Bartolomeu. Este passou a ser acusado pelo
Deputado Federal Morais e Barros como o “Deputado de bandidos e
fanáticos”. Sob pressão, Floro Bartolomeu foi obrigado a agir: mandou
prender o beato José Lourenço e matar o boi “santo”.
Solto
e humilhado, com fama de “fanático” José Lourenço voltou para o sítio
Baixa D’Anta, onde viveu mais alguns anos, quando o proprietário da
terra vendeu a propriedade e expulsou-o de lá. O beato passou algum
tempo em Juazeiro, onde, pelas suas práticas religiosas, adquiriu fama
de “homem santo” e passou a ser tratado como “beato”. Em 1926 retirou-se
com algumas famílias para o sítio Caldeirão dos Jesuítas, terra
pertencente ao Padre Cícero. O Padre entregou as terras ao beato quando o
seu testamento já estava pronto, no qual doara todas as suas
propriedades aos Salesianos, inclusive o sítio Caldeirão. Encerrava-se a
história do boi “Mansinho” e começava a do beato José Lourenço, que em
breve tornar-se-á o beato mais célebre da região do Cariri e liderança
indiscutível de uma comunidade camponesa contando com alguns milhares de
trabalhadores pobres.
Na comunidade, a experiência vivida
expressou-se em uma experimentação concreta da fé, a materialização de
uma nova forma de vida: o trabalho tornou-se um meio para a salvação da
alma. A principal testemunha dos acontecimentos do Caldeirão, o senhor
Henrique Ferreira, recentemente falecido, assim descreve o trabalho como
penitência na comunidade do Caldeirão: “É os penitentes, é os pobres
penitentes, que todo pobre é penitente. O trabalhador é um pobre
penitente! Tá na penitência do trabalho!” Nestas condições, a pobreza da
vida tornou-se suportável e até prazerosa. Foi a partir desta
perspectiva religiosa – o trabalho como penitência —, que a comunidade
camponesa do Caldeirão se organizou.
O
sítio era uma pequena propriedade abandonada, com cerca de 900
hectares, do outro lado da Serra do Araripe, distante vinte quilômetros
do Crato. Encravado entre serras e morros, de acesso extremamente
difícil, era lugar ideal para o isolamento. Lá instalados, o beato e
seus seguidores deram início aos trabalhos de limpeza dos matos e
construções e reparos de cercas. Construíram a casa do beato e as
primeiras e pequenas casas de taipa e, como a terra era seca, iniciaram
também a construção de pequenas barragens nos grotões e socavões dos
morros, garantindo assim razoável abastecimento de água para as épocas
de secas. Nas terras altas deu-se início a plantação de algodão, milho e
feijão. Nas terras baixas, irrigadas por processos primitivos,
plantou-se cana-de-açúcar e arroz. Pequena engenhoca levantada nas
imediações do pequeno povoado passou a produzir rapadura, batidas e
melaço suficientes para o sustento da comunidade. Construíram ainda a
casa de farinha e produziam sabão, a partir de uma planta nativa da
região, conhecida por “pingui”. Em pouco tempo, o que era uma terra
deserta e abandonada transformou-se em um pequeno arraial.
Nessa fase inicial, a comunidade
trabalhava basicamente na agricultura e na construção de casas em
mutirão para os novos moradores. Cada nova família que lá chegava era
bem recebida, e os que já viviam no sítio construíam logo a nova
moradia; alastraram-se as casinhas a partir do sopé dos morros,
formando, gradativamente, um cinturão em redor da pequena planície onde
floresciam as primeiras plantações. A divisão do trabalho era simples:
os homens trabalhavam na limpeza dos terrenos, na construção de casas,
de caminhos, cercas e na agricultura, enquanto as mulheres, além dos
trabalhos caseiros, carregavam água para molhar as plantas, ajudadas
pelas crianças maiores. O problema da água será resolvido
definitivamente através da construção de dois açudes.
O
beato estava sempre à frente de todos os trabalhos e tudo era feito sob
a sua orientação. Trabalhava-se das seis da manhã às seis da noite, sob
o ritmo dos benditos, puxados pelo beato… A incrível capacidade de
trabalho e liderança do beato é atestada por todos, inclusive por
aqueles que não nutriam simpatia por ele, como é o caso do tenente Góis
de Barros – que comandou a invasão e destruição do sítio em 1936 —, que
afirmou espantado em seu Relatório: “Aliás, faça-se justiça, o
espetáculo de organização e rendimento do trabalho, com que nos
deparamos ali, era verdadeiramente edificante”. Toda a produção e
consumo eram controlados por Isaías, espécie de “ministro do
planejamento e da economia” da comunidade. Os produtos eram armazenados
em celeiros e redistribuídos de acordo com as necessidades de cada
família.
Não circulava dinheiro na comunidade e a
organização social era rígida, dentro de padrões de uma religiosidade
quase ascética. Outras pessoas ajudavam o beato José Lourenço na
administração da vida da comunidade, destacando-se o papel exercido por
Severino Tavares, que, apesar não viver no sítio, exercia o papel de
“aliciador” de romeiros para visitar a comunidade. Seu trabalho como
divulgador da vida no Caldeirão muito contribuiu para o aumento da
população do sítio, pois muitas pessoas que iam apenas conhecer o beato
lá permaneciam…
Com
o crescimento populacional do sítio diversificaram-se as atividades
produtivas. No meio de tantos trabalhadores que chegavam ao Caldeirão,
encontravam-se profissionais das mais diversas especialidades.
Organizaram-se então as primeiras oficinas, passando-se a fabricar os
mais diversos instrumentos de trabalho e utensílios domésticos. Em pouco
tempo a comunidade produzia praticamente tudo o que necessitava para a
sua sobrevivência. Apenas o sal e o querosene, assim como remédios, eram
comprados pelo beato, com o dinheiro que arrecadava com a venda de
rapadura e algodão.
Paralelamente desenvolveu-se a criação de
animais, bovinos, caprinos e suínos, além das mais diversas espécies de
galináceos. Através deste quadro sintético da organização econômica e
social da comunidade do sítio Caldeirão, fácil é perceber que ela
formava um vivo contraste em relação à situação dos trabalhadores dos
latifúndios do Sertão. Ali reinava a fartura, fruto do trabalho intenso
de milhares de pessoas em mutirão – a população do sítio alcançou na
fase mais populosa, cerca de duas mil pessoas —, o que duplicava a
produtividade do trabalho, fazendo com que os celeiros estivessem sempre
cheios. Foi esta fantástica organização do trabalho visando a plena
satisfação das necessidades fundamentais da comunidade — que se tornou
praticamente autossuficientes —, que caracterizou a experiência
realizada no sítio Caldeirão pelo beato José Lourenço, e que o
transformou em uma ilha de fartura em meio à miséria reinante no Sertão
da época. Era uma comunidade pobre, evidentemente, mas bem alimentada
material e espiritualmente. A religiosidade popular, que perpassava
todos os atos cotidianos da comunidade, tornava suportável a penitência
do trabalho e fácil a vida…
As
reservas de víveres permitiram que a comunidade sobrevivesse à grande
seca de 1932, apesar de o número de habitantes do sítio ter sido
acrescido de cerca de 500 pessoas no período. É que o beato abriu as
portas do sítio para receber todos os flagelados da seca que lá
quisessem entrar e permanecer!
Após a morte do Padre Cícero, em 1934 —
época em que os habitantes do Caldeirão passaram a se vestir todos de
preto, em luto perpétuo pelo “santo” do Juazeiro —, grande parte dos
romeiros que iam a Juazeiro visitar o túmulo do Patriarca fazia questão
de ir ao Caldeirão pedir a bênção ao beato José Lourenço. Isto se devia
ao fato de José Lourenço representar o único sobrevivente dos “santos”
do Juazeiro.
Os romeiros ao visitarem a comunidade
contribuíam com o desenvolvimento econômico do sítio, pois levavam
valiosos presentes, que iam desde cargas de alimentos, animais a até
objetos preciosos. Entretanto, a morte de Padre Cícero – amigo e
protetor do beato -, anunciava também as tempestades que se avizinhavam.
O crescimento constante da popularidade do beato, aliado à prosperidade
crescente do sítio, despertou a atenção das elites políticas e
religiosas do Crato.
Os jornais iniciaram a campanha contra o
beato e sua comunidade. O artigo intitulado “Os fanáticos do Caldeirão”,
publicado no jornal “O Povo”, afirmava, entre outras coisas: “Dois
malandros do Ceará, José Lourenço e Severino Tavares, andam explorando
no Vale do Cariri a memória do Padre Cícero.”’ Para a hierarquia
católica, o Caldeirão parecia representar uma ameaça: o beato poderia
tornar-se um novo “santo” como o Padre Cícero… E, nesse caso, com o
agravante de estar fora do controle da Igreja: seria um novo Antônio
Conselheiro!…
Assim,
alarmados, os proprietários vizinhos e as elites políticas e religiosas
atacavam sistematicamente o beato e sua comunidade: “Setores
conservadores ligados à política regional, insuflados pelos
proprietários de terras e do clero, encarregam-se de espalhar boatos
sobre o beato José Lourenço e os habitantes do Caldeirão. Diziam que o
beato oficiava sacramentos reservados ao clero de forma bárbara e
sacrílega, que vivia em concubinato com as beatas, possuindo harém de 16
mulheres, que explorava a ignorância e o fanatismo dos camponeses,
usando a sua força de trabalho para enriquecer”.
Era, enfim, a orquestração de uma
formidável avalanche de inverdades — como a de que o beato, então com 65
anos, tivesse capacidade sexual de manter um harém com 16 concubinas!
—, com o objetivo de destruir a experiência comunitária do Caldeirão,
que, além de atrair trabalhadores de todas as partes, “as relações de
produção e consumo tendiam abertamente para o comunismo”, na expressão
do Tenente Góis de Barros…
Os padres salesianos, herdeiros das terras
do Padre Cícero, decidem tomar o sítio sem indenizar o beato pelos
benefícios lá realizados. Para isto, contratam o advogado Norões
Milfont, deputado da Liga Eleitoral Católica — LEC (de cunho fascista),
que passa a defender a causa dos mesmos. O advogado passa a divulgar que
o Caldeirão era uma nova Canudos, que o beato José Lourenço possuía
armas escondidas e que a comunidade representava uma séria ameaça ao
Estado, por ser de franca tendência comunista…
A
hierarquia católica confirma: “Nos sermões, os padres falam do perigo
do ajuntamento de fanáticos e da infiltração de agentes vermelhos a
serviço do totalitarismo ateu. Os boatos chegam aos ouvidos das
autoridades estaduais.”’ Era, enfim, a união da Igreja, do Estado e das
elites políticas e latifundiárias contra a comunidade camponesa
igualitária do sítio Caldeirão… O advogado dos salesianos, Norões
Milfont, não se limitou a espalhar boatos denegrindo a comunidade; para
provar suas denúncias e incriminar ainda mais o beato e seus seguidores,
enviou um espião ao Caldeirão. A escolha feita, por si só, revela as
intenções subjacentes ao ato: decidiu-se enviar “um dos maiores
bandidos-autoridade de que se teve notícias no Ceará”, na expressão de
Optato Gueiros.
Era
o Capitão José Gonçalves Bezerra, conhecido na região como um
implacável caçador de cangaceiros, sendo, na verdade, um deles, só que
escondido por trás da farda policial. Escolhido o espião, as autoridades
iniciaram as investigações. O tenente José Góis de Campos Barros
encarregou-se de comandar a destruição, que descreveu depois no seu
“Relatório”. Nele afirma que o número de habitantes do Caldeirão havia
tomado tamanho vulto que as autoridades locais alertaram o Capitão
Cordeiro Neto, Chefe de Polícia, de “certos fatos singulares, que ali
estavam passando”.
Para esclarecer os “fatos”, foi ao sítio o
Capitão José Bezerra, disfarçado em industrial interessado nas
possibilidades econômicas da região, em relação à indústria de oiticica.
Admitido na residência do beato, o Capitão Bezerra tudo observou,
especialmente as riquezas acumuladas no sítio, fruto do trabalho
sistemático da comunidade, o que logo lhe despertou o interesse…
No
seu relatório, refere-se à existência de “uma nova Canudos, coito de
fanáticos e do terrível perigo comunista,”’ e conclui solicitando
urgente intervenção.
Depois das investigações realizadas pelo
Capitão José Bezerra, o interventor e Governador do Estado, Menezes
Pimentel, reuniu o advogado dos salesianos Norões Milfont, O Bispo do
Crato, Dom Francisco de Assis Pires, Andrade Furtado, Martins Rodrigues,
O Capitão Cordeiro Neto, Chefe de Polícia e o Delegado do DEOPS, o
tenente José Góis de Campos Barros. Com exceção dos dois militares,
todos os outros pertenciam à LEC. Decidiu-se pela intervenção. O Tenente
José Góis de Campos Barros comandou a expedição, no mês de setembro de
1936.
O beato José Lourenço conseguiu fugir,
escondendo-se na Serra do Araripe, acompanhado de algumas famílias. Em
meio a todo tipo de violência, inclusive estupros, os militares atearam
fogo em todas as casas, expulsaram os moradores, destruíram e saquearam o
sítio…
O
Tenente José Góis, em seu relato, diz que após juntar todos os
habitantes, explicou a eles para que viera: acabar com a comunidade,
porque “o Estado não podia permitir aquele ajuntamento perigoso”. As
ordens eram que cada família juntasse seus pertences e voltasse para os
seus locais de origem. Ofereceu passagens de trem e de navio, que foram
unanimemente rejeitadas: “E, fato singular, ninguém tinha bens a
conduzir. Tudo o que ali estava, diziam, era de todos, mas não tinha
dono”.
O beato José Lourenço continuou por algum
tempo refugiado na Serra do Araripe. Severino Tavares e seu filho
Eleutério foram presos em Fortaleza. A imprensa da época calculou que,
após a destruição do sítio, pelo menos mil pessoas foram juntar-se ao
beato José Lourenço, na Serra. Entrementes, Severino Tavares e seu filho
foram soltos da prisão e dirigiram-se para Serra do Araripe. Enquanto o
beato José Lourenço ganhava tempo para iniciar negociações visando
voltar para o sítio, Severino Tavares planejava vinganças… (Afirma-se
que uma das moças estupradas pelo Capitão Bezerra era sua filha…)
Os jornais começam a publicar notícias
alarmantes, informando que os beatos ameaçavam invadir fazendas e a
feira do Crato. Segue uma patrulha comandada pelo Capitão José Bezerra
para debelar os “fanáticos”. Severino Tavares montou uma emboscada com
alguns seguidores e, em luta corpo a corpo com a patrulha, morreram o
Capitão, um filho seu e o próprio Severino Tavares, além de outros
soldados e camponeses.
Seguiu-se
o bombardeio na Serra, quando três aviões, comandados pelo Capitão José
Macedo, autorizado pelo Ministro da Guerra, General Eurico Gaspar
Dutra, conduzindo bombas, metralhadoras e grande quantidade de munições,
metralharam e bombardearam os agrupamentos de camponeses oriundos do
Caldeirão…
Por terra, atacavam as forças policiais. O
Capitão Cordeiro Neto avaliou a chacina em cerca de duzentos mortos,
enquanto outras fontes orais afirmam que o número de mortes teria
atingido uma cifra bem maior: entre setecentas a mil pessoas…
O beato José Lourenço escapou do
bombardeio na Serra. Após muitas negociações, conseguiu voltar ao sítio
Caldeirão, em 1938. Lá passou mais dois anos, trabalhando e
reconstruindo o sítio, junto com poucas famílias de camponeses — o
acordo não permitia mais “ajuntamentos”.
Em
1938, quando já reorganizara a produção no sítio, foi novamente expulso
pelos salesianos. Na ocasião, o Sr. Júlio Macedo conseguiu junto ao
Juiz de Direito do Crato a devolução do dinheiro que fora entregue ao
Juizado por ocasião do leilão do que restara dos bens do sítio após a
destruição e saque do mesmo.
De posse de pequena quantia, o beato ainda
conseguiu adquirir uma pequena propriedade no município de Exu, em
Pernambuco. Lá, no sítio que denominou de União, o beato, acompanhado de
umas poucas famílias, viveu em paz durante oito anos. Morreu no dia 12
de fevereiro de 1946, vitimado pela peste bubônica…
Seu corpo foi transportado através da Chapada do Araripe pelos seus fiéis seguidores, até o Juazeiro…
O que o beato não sabia era a recepção que
o seu corpo teria da Igreja: levado para uma capela onde seria
realizada a missa de corpo presente, o padre, na última condenação da
Igreja ao beato, negou-se a cumprir o ritual…
NOTAS
1 — CAVA, Ralph Della. Milagre em Juazeiro. Rio de Janeiro-RJ, Paz e Terra, 1976, pág. 122
2 — Henrique Ferreira, entrevista ao autor, 12/07/1983
3 — CARIRY, Rosemberg. O Beato José
Lourenço e o Caldeirão de Santa Cruz. In Revista Itaytera, Crato – CE,
n°26, pp. 189-199-1982
4 — BARROS, Ten. José Góis de Campos, A Ordem dos Penitentes. Imprensa Oficial, Fortaleza – CE, 1937, pág. 31.
5 – Jomal “O Povo” – Fortaleza – CE, 02/03/1935
6 — Jornal “O Povo” — Fortaleza — CE, 02/03/1935
7 — CARIRY, Rosemberg, in op. cit., pág. 195
8 — GUEIROS, Optato. Lampeão: Memória de um oficial ex-comandante de forças volantes. Recife – PE, 1952, pág. 252.
9 – ANSELMO, Otacílio. “Tragédia de
Guaribas”. In. Revista Itaytera., n° 25,1972, pág. 13. 10 – BARROS, Ten.
José Góis de Campos. In op. cit., pág. 30.
Lampião, verdadeiro gentleman, é
um galã de finas qualidades
Como um cronista parisiense vê o terrível bandoleiro galantear, com
sentimentalismo, as senhorinhas.
Transcrito por Antônio Corrêa Sobrinho
Léon Treich é um dos mais curiosos cronistas parisienses. Ele é o tipo autêntico do cronista de sucesso, que adultera os fatos e fantasia de tal modo os assuntos, a ponto de afastar-se da verdade dos fatos, só para dar expansão ao seu jornalismo sensacional tão apreciado na França. E, nesse objetivo comete os maiores desatinos que a imprensa pode comportar. Os sertões brasileiros, bem mais civilizados que os da velhíssima África que aterrorizaram o pacatismo Landor (Savage), não podiam escapar à sanha jornalística do mal avisado repórter.
E Lampião, o vulto de maior expressão do Nordeste, foi o homem escolhido para personagem do cronista do Gringoire, onde Léon Treich emprega a sua atividade de “touriste mental”.Mas o jornalista Léon é um bicho! Adultera tudo. A começar pelo nome de Lampião.
Lampião, para o jornalista francês é “Lampeô”. E o nome do bandido não é Virgulino Ferreira e sim Virgulino de Oliveira. Escondendo, porém, o nome e o vulgo do bandoleiro, Léon descobre coisas notáveis. Descobre, por exemplo, que Lampião é um “gentleman na extensão do termo”. Passa, então, a contar o noticiarista francês coisas excepcionais: os traços característicos dos enormes óculos de vidro negro que abrigam seus olhos incendiados e sapolitesse meticuleuse, raffinée. Isso de polidez com Lampião, cujo acervo de assassínios já sobe a 160, só como pilhéria e da boa. Mais adiante, Lampião, para o cronista, comanda vinte “gentils garçons”.
Corisco – “gentil garçom”...
Continua, porém, o jornalista Léon chamando a Lampião “belle Virgulino”. Quase “cheirosa criatura”... E acentua: “Porque o belo Virgulino é grande amante de mulheres”, prognosticando, em seguida: E isto é quase certo, será o que o perderá um dia – como já aconteceu a tantos outros”. Conta ainda o episódio amoroso, salientando as “belas maneiras de Virgulino:
Uma moça apertada em seus braços, ameaçou-o, um dia, meio sincera, meio gracejadora: - Eu tenho vontade de vender você à polícia. Ele a apertou fortemente contra o peito, prendeu seus lábios e simplesmente: - Não me vendas. Eu valho mais. Entrega-me simplesmente!” Outra aventura galante descoberta pelo gênio novelesco de Léon Treich: Foi no Piauí. Lampião assalta uma pequena casa do comércio local. E uma senhora, a proprietária do estabelecimento: - O dinheiro – ou eu atiro –, bandidos. - Nunca! Respondeu a mulher. O dinheiro – ou eu atiro –, retrucou um outro, metendo-se no diálogo. - Se o Lampião estivesse aqui, você não falaria assim. Virgulino tomou a dianteira: - Eu sou Lampião, senhorinha. Que deseja? - O Lampião não desampara as mulheres sós, disse a pobre moça, concentrando a sua coragem e tornando-se pálida como cera.
O bandido inclinou-se e descobriu-se: - É verdade, senhorinha, algumas vezes. Entretanto, quando elas têm a imprudência de não ser bonitas... E depois de ter beijado a mão da jovem comerciante, ele ordenou aos seus homens que se retirassem”.
Para as nossas sentimentais a figura de Lampião galanteador, beijando a mão das damas fazendeiras suplicando, terno e amoroso: “Entrega-me, simplesmente”, deve assumir proporções imprevistas.
Falta, entretanto, a visão do repórter do Gringoire, o it dos cronistas elegantes e modernos. Tivesse o jornalista Léon essa visão um pouco mais apurada e descobriria “Lampeô” nas caatingas cearenses ou nos altos sertões baianos, não chefiando, de fuzil em punho, vinte gentils garçons, mas guiando uma luxuosa barata, do mais recente modelo a convidar as incautas e jovens sertanejas para um passeio à praia mais próxima, ou um “aperitivozinho”, às 5 horas nas elegantíssimas restingas por entre os mais lindos e evocativos suspiros e beijos apaixonados e quentes, como na mundaníssima Biarritz, que o jornalista do Gringoire, preocupado com os sertões brasileiros, não teve tempo ainda de conhecer... (Do Diário da Bahia)
Notas: 1. Gringoire – Jornal francês fundado em 1928 por Horace de Carbuccia. Foi um dos grandes semanários entre as duas grandes guerras mundiais. 2. Léon Joseph Marie Eugene Treich (17 de março de 1889 – 13 de junho de 1974), foi um jornalista, autor e escritor francês. 3. Biarritz (raramente aportuguesada para Biarriz) – é uma comuna francesa da região administrativa da Aquitânia, no departamento dos Pireneus Atlânticos. 4. Walter Savage Landor (30 de janeiro de 1775 - 17 de setembro 1864) – foi um escritor e poeta Inglês.