Frederico respondeu!
Na semana passada o Blog
Lentes cangaceiras havia levantado a questão através de um artigo do confrade
Alcino a respeito da ultima entrevista concedida pelo pesquisador e escritor Frederico Pernambucano de Mello.
Essa mesma matéria foi publicada pelo
Jornal da Cidade com circulação no Estado de Sergipe.
Alguns amigos solicitaram que o Lampião Aceso também publicasse. Preferi esperar por este momento em que o "réu em questão"... (Risos) Se pronunciasse.
Frederico enviou suas considerações para o Lentes cangaceiras e agora lhes apresento ambas explanações. Quem já leu... lê novamente quem não leu aprecia por completo a elegância destes dois cangaceirólogos.
Ah! Aproveito para lembrar que minha frequência em pesquisas diminuiu o ritmo. Já não posso correr atrás de tudo que é relacionado. Já temos a honra de semanalmente sermos agraciados com mensagens de vários
coiteiros.
Portanto: Os demais confrades que desejarem ver os seus artigos, vídeos ou qualquer notícia ou eventos locais com relação aos temas por aqui explorados mandem para nosso email:
lampiaoaceso@hotmail.com
Quando enviarem pra um enviem geral. Parafraseando o mesmo mestre Alcino
"Somos todos vaqueiros correndo atrás de uma mesma boiada".
Att Kiko Monteiro
A PERGUNTA
Publicado no Jornal da Cidade - Aracaju/SE Edição de 11 de Novembro de 2010, No caderno B sessão "Opinião" pelo escritor Alcino Alves.
A Globo News, no dia 07 de novembro de 2010, no horário das 22 horas, exibiu para todo o Brasil a tão esperada entrevista do notável historiador e pesquisador do cangaço e de Lampião, Frederico Pernambucano de Melo.
Com a competência e o seu imenso saber sobre as coisas do cangaço, o ilustre historiador discorreu sobre fatos e passagens da vida cangaceira, do viver e proceder de Virgolino Ferreira da Silva – Lampião.
Mesmo sabendo e reconhecendo a profundidade do conhecimento e da ilimitada aptidão que Frederico possui em relação a seus escritos, as suas afirmações, os seus registros e o zelo que ele tem em favor da própria história, eu não consegui absorver e nem aceitar algumas de suas respostas a Francisco José, o repórter da Globo.
Eis pelo menos duas:
A primeira foi ao responder uma pergunta do entrevistador, que lhe inquiriu sobre qual a relação possível havida entre o cangaço e o litoral. O nosso querido mestre e amigo deixou-me atarantado. A sua resposta foi deveras surpreendente, pois, afirmar que o cangaço nasceu da insurreição ao modo de vida e da grandeza do litoral, deixou-me abismado.
A segunda resposta causou-me admiração. Indagado sobre a escolha dos chefes dos subgrupos, Frederico disse sem pestanejar que os mesmos eram escolhidos pela sua capacidade de bordar.
Estas duas afirmativas fizeram com que eu me sentisse envolvido por uma perplexidade muito além do imaginado. Dizer-se que o cangaço nasceu e floresceu em virtude de uma insurreição sertaneja para com o viver e a grandeza do litoral, é de uma fragilidade monstruosa, sem nenhum embasamento, distante, muito distante da realidade histórica do campônio, quase que primitivo, de nosso mundão caboclo.
Estou longe, muito longe, do conhecimento cultural deste monumental vaqueiro da história, não só do cangaço mas, também, do nordeste brasileiro. No entanto, não posso deixar de emitir através deste artigo a minha posição sobre o nascimento do cangaço e dizer que, para ser justo comigo mesmo, não concordo e não aceito esta afirmação de nosso fabuloso pesquisador.
Como nasceu o cangaço e o cangaceiro? Na minha visão, a raiz do cangaço está na tremenda medição de forças, que varou os anos, entre as poderosas famílias sertanejas e a força prodigiosa dos grandes fazendeiros, especialmente aqueles que se tornaram coronéis legitimados e outorgados que foram, primeiro pelas Velhas Ordenanças e, depois, pela Guarda Nacional do Regente Feijó, em 1831.
Inicialmente, o fazendeiro e o coronel tiveram no jagunço a sua proteção e garantia. Com o passar dos anos surgiram os cangaceiros, estes libertos e errantes. Aqueles que fazem parte do seleto grupo de Jesuíno Brilhante, nascido de uma intriga com determinada família, passando por Antônio Silvino, Sinhô Pereira e outros de luz de menor claridade, até chegar a Lampião, a grande e inigualável estrela que colocou os bandos cangaceiros no ápice do andejar pelos campos e caatingas das terras bem distantes das quebradas do mar.
Quanto à segunda afirmação, aquela em que foi dito que Lampião privilegiava com a chefia dos subgrupos de seu numeroso contingente, aqueles que sabiam bordar, é uma assertiva descabida e que não merece ser levada em consideração. Dizer-se que Zé Baiano, Zé Sereno, Mariano, Corisco, Labareda, Jurity e outros só foram escolhidos para chefiar alguns dos subgrupos porque sabiam bordar é uma verdadeira aberração. Com certeza nenhum pesquisador comunga com esta afirmativa.
Que me desculpe e me perdoe Frederico Pernambucano, essa sua declaração não condiz com tudo aquilo que você representa e nos enche de orgulho em tê-lo como nosso vaqueiro-mor da história sertaneja e da “Era Lampião”.
Não é minha intenção desmerecer a imensa, justa e merecida capacidade e conhecimento deste admirável caçador de nossa história cabocla. Não se pode esconder a admiração que todos nós, que vivemos a rastejar as pegadas de Virgolino Ferreira pelas veredas, bibocas e cafundós da terra cabocla e árida de nossos sertões, temos por este admirável ser humano de tantos e tantos predicados. Todavia, mesmo sentindo um aperto em meu coração e com receio de ferir a sensibilidade deste homem que pautou a sua vida em favor da dignidade e do bom proceder, senhor de valores ilimitados, professor dotado de cuidadoso zelo, cuidado e carinho para com os seus registros, feitos e atitudes; mestre que é um paradigma da narração de fatos notáveis ocorridos na vida do povo sertanejo; mesmo assim, meu querido mestre, a minha formação, a minha inquietude em relação às incontáveis histórias, historietas e estórias dos tempos do cangaço e da própria vida do homem do campo, fazem com que eu fique completamente dominado por esta vontade de, mesmo que quase impossível, me aproximar das verdades dos fatos e contestar aqueles que me parecem inverossímeis.
É este o motivo deste artigo. Em minhas pesquisas e em meus estudos, especialmente sobre os últimos nove anos de Lampião e seu bando nas terras do Sertão do São Francisco, em Sergipe, jamais conversei ou entrevistei alguém que dissesse que a maioria dos cangaceiros, especialmente os subchefes de grupos, bordava. Até parece que ser mestre em costurar e bordar era a condição maior para que eles pudessem alcançar tal privilégio, o privilégio de chefiar um bando.
E o uso dos punhais, era uma influência das facas dos pampas?
(*) Escritor, pesquisador. Sócio da SBEC.
Jornal da Cidade
A RESPOSTA
O pesquisador Alcino Costa, a quem respeito como investigador dos fatos do cangaço, assistiu à entrevista que acabo de dar à Globonews sobre meu novo livro, Estrelas de couro: a estética do cangaço, São Paulo, Escrituras Editora, 2010, prefácio de Ariano Suassuna, e manifesta três indagações, ou objeções, a que respondo abaixo, na ordem em que foram expostas:
1 – sobre o divórcio cultural entre o litoral e o sertão, fruto de falha no processo secular de colonização do Nordeste do Brasil, fazendo com que os homens de uma e outra dessas áreas não se reconhecessem entre si, o que digo é muito simples: o poder político e a opinião pública nuclearam-se sempre no litoral. Toda a repressão aos levantes indígenas, aos quilombos e às revoltas sociais, fenômenos irmãos do cangaço como expressões de insurgência popular rural e armada, partiu sempre do litoral, derramando-se sobre o sertão. Mesmo quando foram cooptados jovens sertanejos para as fileiras das forças policiais - casos de Pernambuco, em 1923, e da Paraíba, no ano seguinte - o comando não saiu do litoral.
Quando me levantei, ainda em 1985, no livro Guerreiros do sol, contra o simplismo dos marxistas em considerar o cangaço filho exclusivo da luta de classes envolvendo coronéis e cangaceiros, identifiquei no divórcio litoral-sertão as verdadeiras placas tectônicas que aqueciam os conflitos na região. E mostrei que os grandes cangaceiros, Lampião à frente, foram sempre os queridinhos dos coronéis sertanejos, com exceções difíceis de identificar. Nesse sentido, o cangaço sai à luz como uma espécie de conspiração tácita sertaneja, irmanando coronéis e cangaceiros na luta surda contra inimigo comum: o poder litorâneo, fonte de toda repressão.
A mais não fui. Nem disse na entrevista.
2 – sobre a importância da costura e do bordado no cangaço, tenho a esclarecer que jamais ampliei o domínio destas em critério único de prestígio hierárquico no bando de Lampião. Seria uma tolice afirmá-lo. Alguma coisa como equiparar o bando de Lampião ao ateliê parisiense de Christian Dior. Em história não há causalidade única, até as pedras o sabem. Disse claramente na entrevista – e desenvolvo no livro que espero venha a ser lido por Alcino - que a valentia e a capacidade de urdir planos vinham na cabeceira dessa criteriologia de ascensão hierárquica no bando, da qual passou a fazer parte, de início timidamente, e depois como concausa cada vez mais relevante, especialmente no meado dos anos 30, a habilidade com as agulhas e as linhas, assim como o domínio da máquina Singer de mesa.
É claro que não estamos falando de norma escrita. De ato de Lampião publicado no Diário Oficial do Estado. Não chegamos a tanto, nem mesmo em Sergipe. O preceito há de ser inferido pelo historiador a partir da observação de uma prática reiterada, reveladora de tendência que finda por se consolidar em norma não-escrita. Estamos falando de indução lógica, procedimento abonado largamente pela ciência, segundo o qual, de várias situações singulares comprovadas, se extrai uma proposição de caráter geral.
Se Lampião costurava e bordava de maneira exímia, no pano e em couro, fazendo-se fotografar alegremente em meio à prática por Benjamin Abrahão (ver Estrelas de couro, p. 83); se o mesmo acontecia com Luís Pedro (ver foto deste, também na Singer, ladeado por Juriti que, atento, parece querer aprimorar-se no ofício, no livro do padre Maciel, 1976, v. III, p. 160), o poderoso lugar-tenente do bando; se Virgínio fazia outro tanto com habilidade (ver depoimento detalhado de Moreno ao cineasta Wolney Oliveira, para filme em preparo); se Zé Sereno, Português e Pancada não ficavam atrás, segundo Barreira e Adília, de que mais necessitamos para inferir a norma? Estão aí os maiorais do cangaço.
Quantos mais não lhes seguiram os passos na arte cangaceira, sem que disso tenha restado testemunho? Estão aí as máquinas de costura ao lado das cabeças cortadas. Estão aí os bornais amaneirados no luxo de concepção, de costura e de bordado. Agradeço a Deus ter salvo essas provas materiais para a história. Está aí o cangaceiro Candeeiro, em Buíque, Pernambuco, do alto dos seus 96 anos de lucidez, para dizer a quem queira ouvir que os principais cangaceiros, à frente Lampião, costuravam com habitualidade e sucesso no que produziam. No filme documentário A musa do cangaço, de José Umberto Dias, Salvador, 1981, Dadá sustenta gostosamente que “Lampião era um sucesso na máquina de costura”.
Há mais: o tenente volante pernambucano Pompeu Aristides de Moura, amigo de Antônio Ferreira antes de tomar a farda, contou-me, em depoimento gravado, ter visto o irmão de Lampião passar “o dia inteiro na máquina de costura, fazendo bornais para o bando, em 1925, no Juazeiro de Joaquim Cândido”, localidade de Floresta, Pernambuco. O cangaceiro Barreira, quando hospedou-se em minha casa por uma semana, em 1990, repetiu várias vezes que Lampião não gostava dele. Até que resolvi perguntar a razão. E ele, no que me pareceu incompreensível à época, respondeu-me de chofre: “Porque eu não sabia costurar”.
3 – Por fim, Alcino insinua que eu teria dito que o uso do punhal pelo nordestino seria uma influência da faca dos pampas, quando eu não disse senão que o cangaceiro portava o punhal na parte frontal do corpo, sob as cartucheiras, enquanto que o gaúcho conduz a faca transversalmente às costas. Uma anotação etnológica. Uma curiosidade. Somente.
Agradeço a Alcino a oportunidade de prestar esses esclarecimentos. Quem questiona o que digo ou escrevo, aperfeiçoa meu trabalho. Com livros na praça, o que mais temo é o silêncio.
(*) Escritor, pesquisador. Sócio da SBEC.
Lentes Cangaceiras