segunda-feira, 27 de abril de 2020

Jornal o Globo, 5 deoutubro de 1975

O último dos cangaceiros do nordeste vai ser solto

Depoimento de Marcos Alexandre da Costa, vulgo Curió
transcrito por Antonio Correa Sobrinho

Preso desde 1945, Curió está na Penitenciária Agrícola de Itamaracá, trabalhando no viveiro e recebendo Cr$ 30,00 por semana, mas, antes disso passou 27 anos na antiga Casa de Detenção de Recife. Embora ele conte uma história diferente, os registros da Penitenciária mostram que Curió foi condenado por quatro crimes – e não por sua atuação no bando de Virgulino Ferreira – pois todos os crimes foram praticados após a morte de Lampião e a dispersão do bando.

Dos quatro processos que envolvem o nome do ex-cangaceiro, dois são por assassinatos praticados em Alagoas e no Maranhão e os outros dois por furto e latrocínio nos municípios, pernambucanos de Canhotinho e Nazaré da Mata. Mas Curió declara que antes de 1945 esteve preso em Alagoas porque se entregou:

- Foi no mesmo ano em que a Polícia matou Lampião – explica Marcos Alexandre da Costa – eu e mais 19 jagunços resolvemos nos entregar ao comandante do II Batalhão de Polícia de Alagoas, porque o bando tinha ficado sem chefe e nós queríamos acabar com as perseguições. Fiquei preso dois anos, até 1940, e depois o Presidente da República mandou soltar todo mundo. Aí viajei para São Paulo e foi entre as visitas que vinha fazer aqui no Nordeste que pratiquei os quatro crimes, porque faziam pilhérias comigo.

Curió acha que somente com emprego certo poderá terminar a vida tranquilo e parado num lugar porque desde menino sempre gostou de andar pelo mundo.

 

 Curió aos 34 anos, 
quando entrou pra cadeia...

GANHAS O MATO

Ele entrou para o bando de Lampião em 1934, com 27 anos, mas antes morava em Recife e negociava com cereais no Mercado de São José. O desejo de viver andando pelo mundo e o fato de ter matado duas pessoas durante uma briga levaram-no a sair da capital pernambucana e “ganhar o mato”.

Em Alagoas encontrou o bando de Lampião e, através de Velocidade, Pinga Fogo e Santa Cruz todos seus amigos e cangaceiros, foi logo aceito no bando para trabalhar como cargueiro, “a pessoa que ia fazer as compras quando o bando parava em alguma cidade”.


 O cabra Velocidade após as entregas

- Com o grupo eu fiquei até o dia em que mataram o chefe. Ganhei o nome de Curió porque gostava muito de subir em árvores, feito passarinho.

Curió conta que no dia da morte de Lampião estava dormindo juntamente com 21 cangaceiros a uma distância de um quilômetro do local onde se encontrava o chefe, Maria Bonita e mais nove jagunços.

- A Polícia matou todos eles e nós, quando ouvimos os tiros e corremos para lá só tinha gente morta, as cabeças de Lampião e Maria Bonita cortadas; mas tudo foi traição do tenente João Bezerra, que se dizia amigo do chefe e tinha jogado dados com ele no mesmo dia em que cometeu o crime.

 


 ... E após 30 anos de prisão, 
esperando a sonhada liberdade.
Acervo Guilherme Velame


ATAQUES DO GRUPO

Com o bando de Lampião, o ex-cangaceiro viajou por quase todo o Nordeste, “desde a Paraíba até São Luiz do Maranhão e tudo feito a pé ou a cavalo”. Mas sobre os ataques do grupo às cidades em que chegava. Curió nada explica. Diz apenas: - Lampião só matou para se defender e era amigo de todo mundo, dos policiais e dos fazendeiros, andando livre por todo canto.

Para Curió, Lampião é um ídolo; honesto, corajoso “e também não gostava muito que a gente andasse com mulheres porque tinha medo que começasse a falta de respeito”.

- Dinheiro – afirma Curió – foi coisa que nunca faltou. Lampião sempre dividia tudo com os jagunços, mas nada era roubado. Sempre ganhava o dinheiro e eu acho que os fazendeiros era os que davam, sem precisar brigar. Ele não se arrepende do tempo do cangaço, somente dos crimes que cometeu depois. Acha que a vida de lutas no sertão era uma aventura onde “se matava para não morrer”.



segunda-feira, 6 de abril de 2020

A mulher no cangaço

Feminismo acidental

Por Danielle Romani

Publicado originalmente na Revista Continente em 01 de Março de 2012


 Jô Oliveira

A imagem é reveladora: em plena caatinga, num intervalo entre combates com as volantes, Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, deixa-se flagrar em cena íntima. Diante da câmera do cinegrafista sírio-libanês Benjamin Abrahão, o Capitão Virgolino – de quem poucos podiam se aproximar – permite-se ser penteado pela companheira Maria Gomes de Oliveira, a Maria Déa, que viria a se tornar Maria Bonita. O ato de carinho aponta para uma mulher zelosa, ocupada do seu amado.

A felicidade conjugal da baiana Maria Déa, ou Maria do Capitão, era perceptível. Jovial, sorridente, a figura flagrada no ano de 1936 por Benjamin – no único filme que registrou o bando – mostra um momento de descontração num período de intensa perseguição aos cangaceiros. Imagem de uma sertaneja que não fazia a menor ideia da importância que teria na história nordestina.

Apesar de não poder antever esse futuro, Maria tinha consciência da importância do seu papel como mulher de Lampião. “Ela encarou as lentes da câmera com ar zombeteiro, mas imponente. Sabia que tinha poder”, diz o sociólogo Erivan Felix Vieira, autor de Coronelismo e cangaço no imaginário social.

Nas comemorações do centenário do seu nascimento – que se encerram este mês – , a história de Maria Bonita foi revista por vários pesquisadores. A fama de que era cruel – forjada no passado – foi rechaçada. Maria Déa é uma das poucas unanimidades entre os que se dedicam a estudar o tema, descrita como uma personagem determinada, corajosa e apaixonada.

“Maria Bonita tinha alguma coisa de superficial, de vaidosa. Um jeito meio de moleca, meio de meninona... Era amiga com quem simpatizava e arengueira com quem não gostava, mas fiel e ousada. Seguiu Lampião porque quis. Teve peito para desafiar a sociedade sertaneja. O Capitão, por sua vez, era apaixonadíssimo por ela e a chamava de Santinha. Os dois se amavam verdadeiramente”, descreve o historiador Frederico Pernambucano de Melo, que a considera a mais autêntica das cangaceiras.

OLHOS AZUIS 

No livro A dona de Lampião, lançado este mês, a jornalista e pesquisadora Wanessa Campos traça um perfil da mulher e do mito. E traz algumas informações recentes. A primeira delas é a possibilidade de Maria não ter nascido em 8 de março de 1911, data oficial do seu aniversário. Segundo uma certidão de batismo encontrada pelo sociólogo Voldi Ribeiro, de Paulo Afonso, na paróquia São João Batista de Jeremoabo, também na Bahia, ela teria nascido em janeiro de 1910. Mas não há consenso na veracidade dessa datação.


Maria Bonita e Lampião em foto de Benjamin Abrahão, datada de 1936. 
Foto: B.Abrahão/Aba-Film/Família Ferreira Nunes/Reprodução
do livro
Estrelas de couro - A estética do cangaço.

Outra especulação diz respeito à aparência física de Maria Déa, que teria os olhos claros. “Ela era morena clara, tinha mais ou menos 1,58m de altura, pernas grossas, busto pequeno (o que na época era valorizado), dentes perfeitos. Suas irmãs Antônia e Dorzinha, diziam que ela tinha olhos azuis. Uma geneticista que consultei me afirmou ser isso possível, visto que elas tinham uma avó holandesa. Mas achei melhor me acautelar e considerar que Maria teria olhos claros, mas não totalmente azuis”, pondera Wanessa. Maria entrou no bando aos 20 anos, em 1930, após um flerte iniciado com Virgolino, no início de 1929, no sítio Malhada de Caiçara, a 38km de Paulo Afonso. Nesse dia, segundo testemunhas, os dois conversaram muito. “Houve uma simpatia recíproca. Maria tinha então um pouco mais de 19 anos e Lampião, 30”, descreve a jornalista. Virgolino passou a visitar a fazenda, a despeito do marido de Maria, Zé de Neném, o José Miguel da Silva, com quem a sertaneja se casara aos 15 anos, e de quem já tinha se separado várias vezes. A presença do cangaceiro rapidamente atraiu a ira das volantes sobre a família, que teve de mudar-se para Alagoas. 

Foi então que a jovem escolheu seguir com Lampião. “Maria demonstrava alegria, quando largou a família. Trocou o vestido de voile estampado por uma mescla azul de mangas compridas, meias, perneiras de lona, alpercatas, lenço no pescoço, chapéu de abas largas, bornais, cintos, alforjes”, descreve Aglae Lima de Oliveira, no livro Lampião, cangaço e Nordeste.

Apesar de não ter sido considerado bonito, Lampião tinha charme e atrativos. “Aqueles homens, vestidos de forma diferente, com ouro à vista e chapéu de couro, despertavam sonhos. Avistar um deles era como estar diante de um ídolo, de um artista famoso e rico”, descreve Wanessa.

A beleza de Maria também suscita debates. O escritor Joaquim Goís, que a conheceu ainda adolescente, antes de Virgolino, descreve-a de forma impiedosa: “Uma cabocla apagada, rosto de linhas inseguras, olhar vago, corpo solto em desalinho, seios bambos”. Bem distante da musa cantada pelos cordelistas e cantadores.

Retrato questionado por cangaceiros que conviveram com ela e por suas irmãs. “Os que a conheceram dizem, inclusive, que ela não era fotogênica, que pessoalmente era muito mais bonita. Temos que levar em conta, ainda, que as mulheres do cangaço eram escolhidas pelos atrativos físicos. Lampião, certamente, encantou-se com seus atributos”, pondera a jornalista.

Nesse contexto, vale ressaltar que a alcunha “Maria Bonita” só veio a ser usada um ano antes de sua morte, e, ao que tudo indica, foi criada pela imprensa do Sudeste, para dar um tom mais atraente às manchetes de jornais. Quem conta a história do apelido é Frederico Pernambucano. “O nome não apareceu no Sertão. Foi coisa dos repórteres do Rio”, explica o historiador. O termo, por sua vez, originou-se de um romance de Afrânio Peixoto, do início do século, que foi transformado em filme homônimo, em agosto de 1937.


Sila (segunda, da esquerda para a direita) relatou, na maturidade 
(foto seguinte), sua passagem pelo bando no livro Angicos, eu sobrevivi. 
Foto: Reprodução

O fascínio da sertaneja pelo que lhe oferecia Lampião era compreensível. “Maria Déa queria apenas sair daquela vida ‘todo dia sempre igual’, deixar o marido infiel, livrar os pais da perseguição da polícia e dar um novo destino à própria vida. Afinal, o que ela tinha a perder? Amava Virgolino, sentia-se amada, ele era rico, iria ter uma vida diferente”, defende Wanessa.

Presidente do Núcleo de Estudos do Cangaço da União Brasileira de Escritores – Seção PE, a psicóloga social Rosa Bezerra defende que a decisão tomada por Maria foi a de uma mulher à frente do seu tempo. “Apesar de elas não terem consciência, o movimento dessas mulheres, de optar por seguirem os homens que amavam, gestou o feminismo no Sertão. A mulher sertaneja era treinada para ser doméstica e nada mais. No bando, uma vida nova se apresentava: elas não cozinhavam, não lavavam, eram tratadas como rainhas, uma vez que o cangaceiro era acostumado a fazer tudo. As mulheres só entravam nessa partilha se quisessem. Depois, porque puderam viver sua sexualidade abertamente, puderam usar saias no joelho (quando na época a altura dos vestidos era nas canelas), puderam usar joias, se enfeitar. Se a gente for observar as roupas que elas usavam, existem semelhanças com as que adotamos na década de 1970”, defende Rosa, que é autora do livro A representação social do cangaço.

Neta de Maria e Virgolino, a escritora e diretora da Sociedade do Cangaço, Vera Ferreira, assina o álbum Bonita Maria de Lampião, e diz que a avó não seguiu sozinha. “No caminho ao encontro de Lampião, Maria recebeu a companhia da ex-cunhada, Mariquinha, que também decidiu viver ao lado do cangaceiro Labareda. Uma interpretação em relação às sertanejas que se tornaram cangaceiras é de que elas, nativas de um ambiente árduo e sem perspectivas de mudanças, buscavam, acima de tudo, entrar num novo mundo, e com proteção.”

HÁBITOS 

Se os cangaceiros mudaram a perspectiva de vida dessas mulheres – estima-se que 40 delas se agregaram aos bandos, entre 1930 e 1936 –, elas também interferiram no cotidiano deles. Graças à presença feminina, os grupos se tornaram mais limpos, mais cordatos, menos violentos e mais vistosos nas roupas. No seu estudo, Wanessa Campos reforça essa ideia, batizando os anos entre 1930 a 1938 de período “mariadeano” (de Maria Déa).

“Quando Lampião se apaixona por Maria Bonita, a partir de 1930, quase todos os coitos se dão nas cercanias da Bahia e de Sergipe, onde havia afluentes dos rios. Eles se fixam numa região dadivosa, com águas potáveis, águas puras. Passam a tomar banho quase que diariamente, coisa que não faziam antes delas”, explica Frederico Pernambucano. O historiador destaca, também, que a convivência das cangaceiras com as mulheres e filhas dos coronéis poderosos, aliados de primeira linha dos cangaceiros, mudaram os hábitos das primeiras.

“Da convivência resultará o aprimoramento da estética presente em trajes e equipamentos, e o aburguesamento de maneiras: a máquina de costura, o gramofone, a lanterna elétrica portátil, a filmadora alemã em 35mm e a câmera fotográfica... É o tempo dos bailes perfumados, dos cheiros de Fleurs d’Amour, da casa Roger & Gallet, ou de Atkinsons, da Royal Briar”, explica Pernambucano.


Sila.
Foto: Acrisio Siqueira/Reprodução do livro
Angicos, eu sobrevivi

Ao admitir as mulheres, contrariando os ensinamentos do seu mestre, o cangaceiro Sinhô Pereira, Lampião não apenas dava novo rumo ao cangaço, como, sem querer, mantinha o costume brasileiro de acolher mulheres em campanhas militares. “Há registros dessa presença na Primeira Batalha dos Montes Guararapes, em 1648, às mulheres cabendo o amasso do pão na cozinha móvel do exército holandês. Ele retorna também à saga das vivandeiras, cantada em verso e prosa ao final do conflito da Guerra do Paraguai, quando as mulheres acompanhavam seus amados à guerra. Ou de Canudos, em 1897, quando a mulher precisou enrijecer-se de amazona, para fazer frente às jagunças”, explica Frederico.

Excelente estrategista, Lampião também se pautou na observação da Coluna Prestes, em 1926, que abrigava em sua formação centenas de mulheres, e que fez incursão pelo Nordeste. “As lições de 1926 devem ter vindo à mente do apaixonado de 1929 como um conforto providencial”, sugere o pesquisador.
As mulheres do bando não pegavam em armas nem participavam das batalhas. A elas era dado um revólver para a defesa pessoal e, no caso de Maria Bonita, havia sempre guardiões ao seu redor, inclusive um ajudante pessoal, para auxiliá-la nas suas tarefas diárias.

No livro Angico, eu sobrevivi, a sergipana Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, mulher de Zé Sereno, o José Ribeiro Filho, lembra que o maior temor das cangaceiras era serem presas pelas volantes. “Sabíamos que seriamos submetidas a estupros e atrocidades terríveis. Eles nos chamavam de prostitutas, e sonhavam em nos pegar para atemorizar nossos companheiros.” Sila, assim como Maria, nunca participou de batalhas.

Aliás, o fato de que Maria jamais usou de violência leva muitos pesquisadores a afirmar que a sua morte foi uma arbitrariedade, pois a ela não eram imputados crimes, a não ser o de seguir o bando. Tudo indica que ela foi “massacrada” no dia 28 de julho de 1938, pelo simples fato de ser a mulher de Virgolino. 

No seu livro, Wanessa relata a crueldade com que o soldado Panta de Godoy abateu a baiana: “Quando avistei Maria Bonita, ela deu meia volta, correu, gritou: ‘Valha-me, Nossa Senhora!’. Eu atirei nas costas dela e ela caiu, fez uma corcunda e se levantou quando um soldado gritou: ‘Segura a bandida!’. O soldado Santo cortou a cabeça de Lampião e, com o mesmo facão, eu cortei a cabeça de Maria Bonita. Ela ainda estava viva”.


Na história do cangaço, consta a maestria na produção de bordados por Lampião e Dadá. A máquina de costura era indispensável para a confecção de objetos em tecido e couro
Foto: Fred Jordão/Reprodução do livro Estrelas de couro - A estética do cangaço

DADÁ 

A pernambucana Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá, mulher de Cristino Gomes da Silva Cleto, o alagoano Corisco, era uma exceção nesse contexto. Exímia atiradora, valente – citada por alguns cangaceiros como “mais homem que os próprios homens”–, ela se notabilizou pela coragem e pela eficiência nos combates, usando revólveres, espingardas, rifles. Conta-se que era muito respeitada por Lampião, o que provocou os ciúmes de Maria Déa e o afastamento entre Virgolino e Corisco.

Além de guerreira, foi a responsável pela confecção de bornais de bordados floridos em cores vivas, que passaram a ser usados pelos cangaceiros, em meados da década de 1930, segundo afirma Antônio Amaury Corrêa de Araújo.

Frederico Pernambucano discorda dessa informação. Atribui a criação dos adereços ao próprio Lampião, que, segundo afirma, era excelente costureiro. “Dadá não tinha ascendência sobre o bando. Lampião, sim, ditava moda. Tenho peças bordadas por ele e por ela, e posso afirmar que as de Lampião são superiores em originalidade e qualidade”, diz.

Coautora do livro Bonita Maria de Lampião, professora de Artes e Design da Universidade Federal de Sergipe, e desenvolvendo uma tese de doutorado sobre a estética do cangaço, Germana Gonçalves de Araújo foge da polêmica em torno dessas autorias. “É bobagem questionar isso. Devemos desabilitar as definições ‘verdadeiras’ acerca de quem deu início à aparência exuberante dos cangaceiros. Na minha opinião, não há importância ou polêmica quanto a isso. Ou seja, Dadá pode ter sido responsável por parte da estética cangaceira, mas foi Lampião quem aceitou e definiu os construtos de uma identidade”, afirma.


Para Frederico Pernambucano de Mello, Lampião era exímio costureiro, superando outros “artífices” do bando. Foto: B.Abrahão/Aba-Film/Família Ferreira Nunes/Reprodução do livro Estrelas de couro - A estética do cangaço.

Ela ressalta que, depois da entrada da mulher, a imagem do cangaceiro passou a ser menos agressiva. “O traje uniformizado recebeu novos e inusitados elementos. Flores, estrelas, joias e moedas são alguns dos ornamentos que, com base na geometria regular, foram organizados por princípios de composição e se tornaram arranjos com ritmo e simetria.”

RAPTOS 

Apesar de apontados como cordiais companheiros, houve episódios que desabonam o discurso de que os cangaceiros eram gentis com as mulheres. Dois exemplos chocantes são os de Dadá e de Sila. As duas foram raptadas e desvirginadas aos 13 anos de idade, quando ainda brincavam com bonecas e temiam a presença daqueles homens imponentes, vestidos com roupas extravagantes.

No livro Gente de Lampião, Dadá e Corisco, Antônio Amaury Corrêa de Araújo transcreve o depoimento oral de Dadá sobre como ocorreu seu rapto. Primo distante, Corisco a conheceu na fazenda onde morava, e desde que a avistou preveniu o pai da menina que não a casasse com ninguém, porque ela seria sua. Tempos depois, inflamado por uma fofoca de que ele teria sido denunciado pela família de Dadá e de que a menina fora desflorada por um vizinho, Corisco foi à casa do pai de Sérgia, e comunicou: “Vim buscar a menina”.


Apesar de ter sido raptada e estuprada por Corisco, Dadá declarou posterior amor e afeto ao cangaceiro. Foto: B.Abrahão/Reprodução do livro Gente de Lampião - Dadá e Corisco.

Segundo Dadá, no mesmo dia, Corisco a violentou. Ela sofreu hemorragia, ficou traumatizada física e mentalmente. Criou aversão pelo seu raptor, e passou a evitá-lo a todo custo. Com o tempo, diante do homem aparentemente arrependido pela brutalidade, ela perdoou o que ele lhe havia feito.

Já idosa, ao relatar o primeiro encontro com Corisco, Dadá usou as seguintes palavras: “Eu, a Sussuaruna (como era chamada por um primo), não podia adivinhar que aquele estranho loiro, forte, alto, ombros largos, cabelos longos, olhos azulados, era Corisco, que iria ter influência decisiva na minha vida. Em companhia dele percorri, mais tarde, quatro estados, enfrentei lutas terríveis, tive momentos de grande alegria e outros de dor”.

A declaração de Sérgia para o pesquisador Antônio Amaury, que a recebeu em casa para depoimentos durante cinco meses, leva o estudioso a concluir que Dadá era verdadeiramente apaixonada pelo companheiro, o qual defendeu até a morte. “O amor deles era intenso. Um amor trágico, mas tão forte quanto o de Maria e Virgolino”, compara Amaury.

Na opinião de Rosa Bezerra, a relação entre Dadá e Corisco, que teria tudo para ser infeliz, acabou sendo contornada. “Corisco a ensinou a ler e escrever, e a tratava como uma deusa. Dadá conseguiu perdoá-lo e ver o grande homem que ele representava”, aponta a psicóloga.


As cangaceiras só usavam armas para defesa, ficando fora das batalhas.
Foto: B.Abrahão/Aba-Film/Família Ferreira Nunes/Reprodução do livro
Estrelas
de couro - A estética do cangaço.

Raptada da mesma forma por Zé Sereno, Sila também relembra o dia em que foi levada à força de casa. Poupada nas primeiras semanas, posteriormente foi violentada. O episódio é narrado por ela, no livroAngico, eu sobrevivi. “Comemos à vontade, pois a comida era farta e a pinga, saborosa. Naquela noite, conheci o sexo. Experiência ruim. Lua de mel tão amarga quanto as amarguras sofridas por mim nos dois anos seguintes do cangaço”, narra Sila, que aprendeu a gostar de Zé Sereno, com quem viveu até a morte dele, em São Paulo, na década de 1960.

Os cangaceiros não admitiam mulheres sem homem nos bandos. Caso ficassem viúvas, não poderiam permanecer no grupo, salvo se contraíssem matrimônio com outro integrante. “Se fossem rejeitadas, ou seja, se ninguém mais as quisesse, muito provavelmente seriam mortas. A informação difundida entre pesquisadores é de havia o temor quanto à possibilidade de que, ao voltarem à vida em sociedade, elas fossem pressionadas a contar onde ficavam os esconderijos do grupo”, afirma o historiador Jovenildo Pinheiro de Souza, que tem no prelo o livro Sertão sangrento: luta e resistência.

Outra conduta imperdoável era a traição feminina, punida com morte, sem apelação. “Homem podia, mulher não”, contou Dadá. Cristina, mulher do cangaceiro Português, teve um caso, fugiu e tentou refugiar-se no grupo de Corisco. Não aceita, quando era levada de volta à família, foi emboscada e assassinada pelos companheiros do ex-marido. Final ainda mais trágico coube à Lídia, mulher de Zé Baiano, outro integrante do bando de Lampião, morta a pauladas pelo companheiro por tê-lo traído com outro homem.



 Cristina e seu companheiro Português em 1936

Jovenildo ressalta, entretanto, que a traição era algo imperdoável em qualquer esfera social. “Fora do cangaço, ela também era punida sem piedade. Além disso, a mulher comum era maltratada e não tinha qualquer relevância. Com os cangaceiros, pelo menos, elas eram respeitadas, tinham deferências. Era uma sutileza, mas, no contexto da época, mostra a capacidade desses homens de respeitarem suas mulheres.”

Pescado no sítio da Revista

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Das 3 maiores batalhas

No fogo do Serrote Preto

Por Valdir José Nogueira de Moura.

Corria o ano de 1925, em fins do mês de março daquele ano, a cidade de Vila Bela, no sertão de Pernambuco, presenciava um intenso movimento de forças volantes, sob o comando do coronel João Nunes, que havia chegado aquela cidade do Pajeú no dia 23, com numerosa força policial deste Estado, incluindo mais dois Estados, da Paraíba e Alagoas, num total de 200 homens, cujo objetivo era proceder combate ostensivo ao terror impetrado na zona sertaneja pelo banditismo.


 João Nunes

No dia seguinte da sua chegada, o coronel João Nunes distribuiu essa numerosa força em vários contingentes que seguiram no encalço de Lampião, sob o comando dos capitães José Caetano, José Lucena, tenentes, Muniz de Andrade, Pedro Malta, Hygino e Clementino.

O coronel João Nunes ficou com os tenentes João Gomes e o belmontense Sinhozinho Alencar, este como seu secretário e aquele por se achar doente.

Durante a sua estadia em Vila Bela, foi o coronel João Nunes muito visitado no Paço do Conselho Municipal, onde ficou hospedado. A notícia da sua chegada ao Pajeú deixou a princípio a população local muito esperançosa, e muito confiante nas medidas que haviam sido tomadas pelos governos dos três Estados nordestinos, ora coligados para o extermínio do bando de Lampião. Entretanto, a chegada da força policial à Vila Bela gerou comentários nas rodas de amigos, nas calçadas, nas budegas, na feira...diziam alguns sertanejos, com suas astutas experiências que não seria ainda daquela vez que Lampião, seria pilhado.

 Lampião com a visão além do alcance.

Cangaceiro dos mais terríveis que já deu o sertão de Pernambuco, o “dito-cujo” era de uma audácia sem nome. Prova-o a última façanha ocorrida em fevereiro de 1925 no “Serrote Preto”.

Sabendo da aproximação de uma força policial composta de 75 homens sob o comando de três bravos oficiais, 2 da Paraíba, e 1 de Pernambuco, tenentes Francisco Oliveira, Joaquim Adauto e João Gomes; em vez de fugirem, os cangaceiros os esperou, apesar da inferioridade numérica de seus 24 comparsas. E os esperou com uma sorte tal, que além de deixar o campo juncado de cadáveres inimigos, ainda conseguiu fazer o devido saque.

Assim é que, dias depois, de rota batida para o Pajeú passou o cangaceiro por Vila Bela conduzindo grande quantidade de armas e munições, apanhadas no conflito do “Serrote Preto”.





 Fotos de achados, fruto de uma pesquisa de campo  em Serrote Preto
do escritor Lourinaldo Telles

Como nas coisas mais sérias da vida, há sempre um lado cômico e engraçado até, dizem que Lampião prometeu não mais matar soldados, mas sim, somente oficiais, isto por ter encontrado no bolso do oficial morto 2 contos de réis, enquanto que, no bolso de um soldado, apenas 300 réis.

Lampião tinha no seu cangaço dois irmãos: Levino e Antônio Ferreira, e que nos encontros com a polícia formavam sempre três grupos, com retaguardas etc. No combate do “Serrote Preto”, foi a retaguarda de Levino que desbaratou a polícia, causando-lhe 12 mortes, inclusive dois oficiais e vários feridos.

O Jornal nos Municípios’ (Alagoas) Ed. 188.38

Eu vi os pedaços de Lampião

Transcrição de Clerisvaldo B. Chagas


 
7 de agosto de 1938. Santana/Piranhas (AL) “Três ou quatro dias após a remessa das cabeças para Maceió, chegava a Santana uma caravana da Faculdade de Direito do Recife, composta dos acadêmicos Alfredo Pessoa de Lima2, Haroldo Melo6, Décio de Souza Valença4, Elísio Caribé3, Plínio de Souza5 e Wandnkolk Wanderley 1, todos em excursão e desejando ir diretamente a Angicos.

Coincidiu que estavam chegando notícias de que os abutres (urubus) viviam sobrevoando o local do combate, sinal de que os corpos não haviam sido bem sepultados.

O Tenente-coronel Lucena resolveu então formar uma caravana com os acadêmicos e me disse que eu teria de acompanhá-los, menos como sargento do Batalhão, do que como correspondente do Jornal de Alagoas. Partimos, então para Angicos no dia 7 de agosto.


"Com a chegada dos acadêmicos do Recife, tivemos de ir com eles a Angicos, local do combate, lá sepultar os corpos deixados à toa. Encontramo-los já meio ressecados, amarelecidos, a pele agarrada no osso como se a carne houvesse fugido. Já não tinham pelos e era difícil a identificação.

À vista daqueles, em plena caatinga, o acadêmico Alfredo Pessoa fez um discurso capaz de comover até mocós e preás que andassem por ali. E só então tive uma pequena ideia da atrocidade da decapitação. Um corpo sem cabeça, onze corpos sem cabeça e o discurso do Pessoa: que coisa de arrepiar cabelos! (FRUTA DE PALMA, 168).’

Na realidade os corpos não haviam sido sepultados. Ficaram ali mesmo no leito do córrego, cheio de pedregulho. Amontoado os onze, a tropa havia simplesmente feito um montão de pedras por cima. Além de ser difícil cavar sepultura ali, a gana de Bezerra e de seus comandados pelos troféus dos cangaceiros lhes havia retirado todo o restinho de senso humano que possuíssem.




Ficamos ali quase um meio dia, a cavar uma vala comum no mesmo local, pois não havia condições de conduzir aqueles pedaços de gente para parte alguma fora do córrego.

O célebre coiteiro Pedro Cândido era integrante da Caravana e, além de nos descrever as principais fases do combate que ele engendrara, mostrou-nos o corpo de Lampião, da mesma forma identificado por três ou quatro pessoas que integravam a caravana e que também conheciam detalhes físicos do Rei do Cangaço.


 Pedro de "Cândjo" está de traje escuro

Se não foi a única (e não foi), foi uma das poucas vezes em que observei emoções no rosto do Tenente-coronel Lucena: ao ouvir o discurso do acadêmico, encarando os pedaços de Lampião.

Pescado em Blog do autor