“Lampião na Paraíba – Notas para a História” é a mais nova e impecável contribuição de Sérgio Dantas
O livro ‘Lampião na Paraíba – Notas para a História’ não foi concebido com a intenção de se tornar uma obra revolucionária. O objetivo do autor foi apenas elaborar um registro perene e confiável sobre a atuação do célebre cangaceiro em terras paraibanas. Com 363 páginas e cerca de 90 fotografias de personagens envolvidas na trama - e lugares onde os episódios ocorreram -, o trabalho certamente será de grande utilidade aos estudiosos de hoje e de amanhã.
Dividido em 19 capítulos, com amplas referências e notas explicativas, tenta-se recontar, entre outros, os seguintes episódios:
“A invasão a Jericó; fazendas Dois Riachos e Curralinho; o fogo da fazenda Tabuleiro; os primeiros ferimentos sofridos por Lampião; as lutas com Clementino Furtado, o ‘Quelé’; combate em Lagoa do Vieira; Sousa: histórico do assalto e breve discussão sobre as possíveis razões políticas para a invasão da cidade; a expulsão dos cangaceiros do município de Princesa; combates em Pau Ferrado, Areias de Pelo Sinal, Cachoeira de Minas e Tataíra; o cangaceiro Meia Noite; Os ataques às fazendas do coronel José Pereira Lima; morte de Luiz Leão e seus comparsas em Piancó; confronto em Serrote Preto; Suassuna e Costa Rego; a criação do segundo batalhão de polícia; Tenório e a morte de Levino Ferreira; ataque a Santa Inês; combates nos sítios Gavião e São Bento; chacina nos sítios Caboré e Alagoa do Serrote; Lagoa do Cruz; assassinatos de João Cirino Nunes e Aristides Ramalho; Mortes no sítio Cipó; fuga de paraibanos da fronteira para o Ceará; confronto em Barreiros; invasão ao povoado Monte Horebe; combates em Conceição; sequestro do coronel Zuza Lacerda; o assalto de Sabino a Triunfo(PE) e Cajazeiras (PB); mortes dos soldados contratados Raimundo e Chiquito em Princesa; Luiz do Triângulo; ataques a Belém do Rio do Peixe e Barra do Juá; Pilões, Canto do Feijão e os assassinatos de Raimundo Luiz e Eliziário; sítios Vaquejador e Caiçara; Quelé e João Costa no Rio Grande do Norte; combates com a polícia da Paraíba em solo cearense; o caso Chico Pereira sob uma nova ótica; Virgínio Fortunato na Paraíba: São Sebastião do Umbuzeiro e sítios Balança, Angico e Riacho Fundo; sítio Rejeitado: as nuances sobre a morte do cangaceiro Virgínio”.
A obra certamente não abrangerá o relato de todas as façanhas protagonizadas pelo célebre cangaceiro no estado da Paraíba. Muito se perdeu com o passar dos anos. Os historiadores de ontem, em sua maioria, não tiveram grande interesse em dissecar os episódios por ele protagonizados no território do estado.
A presente obra busca resgatar o que não se dissipou totalmente na bruma do tempo.
LAMPIÃO NA PARAÍBA – NOTAS PARA A HISTÓRIA, Polyprint, 2018, 363 pgs. Disponível em outubro de 2018.
Aguardemos!
Sobre o autor: Sérgio Augusto de Souza Dantas é magistrado em Natal. Publicou os livros Lampião e o Rio Grande do Norte – A História da Grande Jornada (2005), Antônio Silvino – O Cangaceiro, O Homem, O Mito (2006), Lampião Entre a Espada e a Lei (2008) e Corisco – A Sombra de Lampião (2015).
domingo, 23 de setembro de 2018
quarta-feira, 12 de setembro de 2018
Revista Fatos & Fotos, Nº 90, 20 de Outubro de 1962
A aventura sangrenta do Cangaço - ABC de Lampião
Reportagem de Nonnato Masson
Reproduções fotográficas de Nelson Santos e Juvenil de Sousa.
Foi nesse ano que o Governador Castro Pinto, da Paraíba, tomou a iniciativa de uma convenção, para combater o banditismo entre os governos dos Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.
Além da ajuda mútua, foram eliminadas as fronteiras entre os estados, podendo a fôrça policial de um penetrar em outro, sem qualquer pedido de autorização. Dessa convenção participariam depois os governos da Bahia, Alagoas e Sergipe. Assim, com o Nordeste sem fronteiras, as tropas volantes, que não seguiam um plano de combate pré-estabelecido, e sem um comando único, enfrentaram-se várias vêzes na suposição de estarem lutando contra os cangaceiros.
No ano de 1914, após uma luta feroz em Taquaretinga, Manuel Batista de Morais, conhecido por Né Batista e por Antônio Silvino, e que há cérea de 20 anos era o rei do sertão, foi baleado e entregou-se ao Alferes Teofanes Tôrres. Prêso Antônio Silvino, os cangaceiros Casemiro llonório e Né Pereira refugiaram-se na ribeira do Pajeú das Flores, de onde passaram a comandar o cangaço em toda a extensão que vai de Pernambuco à zona baiana do rio São Francisco.
BALEADO em Inhamuns, Ceará, por questões de terras, Antônio Alves Feitosa fugiu com o seu filho José Feitosa depois de ter morto um fazendeiro. Foi para Pernambuco, onde passou a viver como lavrador em Passagem, Distrito de Carqueijo. Morrendo o velho Feitosa, José, para se ,livrar definitivamente da polícia cearense, trocou o nome para José Ferreira da Silva, casou-se com Maria José Lopes e comprou uma fazenda em Ingazeira, às margens do riacho São Domingos, em Serra Vermelha, no Município de Vila Bela, hoje Serra Talhada.
Da união de José com Maria, nasceram Antônio, Livino, Virgulino, João, Anália, Ezequiel, Virtuosa, Maria e Angélica. Virgulino Ferreira da Silva nasceu a 12 de fevereiro do ano de 1900, depois de Antônio e Livino.
Aprendeu a fazer selas, gibões, arreios, perneiras, chapéus de couro, alforjes e embornais, que vendia nas feiras de Nazaré, São Francisco (atual Pajeú), Triunfo, Custódia e Salgueiro. Aprendeu com o pai a tocar sanfona de oito baixos. Tinha boa voz para cantar e muita inspiração para tirar toadas, repentes, baiões e xaxados. Uma das suas músicas, a toada "Muié Rendera", seria, tempos depois, o canto de guerra das suas guerrilhas pelos serrotes e pelas caatingas.
No ataque foi morto o velho Ferreira, quando debulhava, na cozinha, uma espiga de milho, e preso o seu filho João. Os outros escaparam porque tinham ido à feira vender bodes. [A mulher de José Ferreira, vendo-o morto, caiu fulminada por um ataque do coração.]
Sentindo-se inseguro em Vila da Pedra depois da morte do Coronel Delmiro, Virgulino deixou as irmãs e João — que não era bom da cabeça — aos cuidados da família de Raimundo Peba, operário da fábrica de linhas. E retornou à Floresta, com os irmãos, à procura do bando de Sinhô Pereira e Luís Padre.
Os cabras acharam muita graça e Luís Padre disse que não seria mais à falta de lampião, para iluminar os caminhos, que eles cairiam na tocaia das volantes. Desde esse dia Virgulino Ferreira da Silva passou a ser chamado de Lampião. E, da bôca da sua espingarda, trocada, anos depois, por um fuzil do Exército, que lhe foi oferecido por autoridades federais, jorrou um clarão, cuja luz, lívida e sinistra, iluminou por mais IS anos os sertões do Nordeste.
Depois da reza, seguido pelas crianças que viam nele um herói, foi ao palacete da viúva Joana Vieira da Siqueira Tôrres, Baronesa de Água Branca, de onde levou todas as jóias que ela guardava em três grandes baús de cedro. Não molestou ninguém e saiu de Matinha de Agua Branca debaixo dos gritos das crianças: "Viva Lampião, Viva Lampião." Isso a 22 de junho de 1922.
QUANDO pressentia ter-se afrouxado o cerco policial, mandava um dos seus cabras às feiras para assuntar o ambiente. Esses cabras eram os chamados pombeiros e muitos deles foram afastados do bando por Lampião, que lhes dava casa e sustento, mantendo-os como coiteiros, que eram os seus informantes sobre todas os movimentos da polícia.
SOFRENDO de um glaucoma no olho direito desde que nasceu, Lampião passou a usar óculos a partir dos 22 anos. A cegueira total desse olho, que se manifestaria quatro anos depois, foi uma consequência natural do glaucoma. Segundo depoimento de seus cabras, alguns ainda vivos, ele costumava dizer que "dois óio é luxo", porque para fazer pontaria "basta só um; o outro inté atrapaia"
As ordens de Lampião eram cumpridas à risca. Não falava duas vezes, porque não era de conversa. Lampião gostava de romance de capa e espada, mas não largava o rifle, que era sua bengala.
Usava óculos de de aros de ouro, vários anéis nos dedos, sendo um deles de médico, medalhas do Padre Cícero e Nossa Senhora das Dores e rezas fortes costuradas em panos bentos. Na cabeça, um grande chapéu de couro de viado, batido na frente e atrás, destacando-se, na testeira, um signo-de-salomão colorido de ilhoses.
XEXÉU, Chá Preto, Besta Fera, Canjica, Jurema e Beija-Flor entraram a seguir. Era ele que os apelidava, com o objetivo de lhes esconder a verdadeira identidade, a fim de livrar a família de cada um das represálias da polícia. Ezequiel, seu irmão, apelidou de Ponto Fino, porque ele era mesmo o fino na pontaria.
ZABELE entrou para o bando de Lampião em 1923. Era um caboclo que vivia repinicando a sua viola nas feiras dos sertões de Alagoas. Um dia, tirou um repente criticando arbitrariedades do delegado de Santana de Ipanema. Foi preso, espancado a chicote de umbigo de boi e marcado a ferro em brasa, pelos soldados, como novilho em curral.
Pescado no sítio de cumpadi Meneleu
Reportagem de Nonnato Masson
Reproduções fotográficas de Nelson Santos e Juvenil de Sousa.
Como
sabemos, algumas estórias sobre Lampião são desencontradas dos fatos
reais. Nessa reportagem de Nonato Masson encontramos algumas
disparidades com historiadores e pesquisadores do cangaço lampiônico. De
qualquer forma, mesmo com algumas colocações diferentes, não deixa de
ser literatura histórica mesmo tendo sido escrita muito depois da morte
de Lampião. Aqui trago mais uma dessas matérias para os que gostam de
estórias do cangaço.
ATÉ
1912, o cangaço era um fato normal nos sertões do Nordeste. As façanhas
de Lucas da Feira, Cabeleira, Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino
corriam de boca em boca, com sabor de lenda, a par de histórias que
falavam dos jagunços do Bom Jesus Conselheiro e do padre Cícero Romão
Batista, o santo de Juazeiro.
Foi nesse ano que o Governador Castro Pinto, da Paraíba, tomou a iniciativa de uma convenção, para combater o banditismo entre os governos dos Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.
Além da ajuda mútua, foram eliminadas as fronteiras entre os estados, podendo a fôrça policial de um penetrar em outro, sem qualquer pedido de autorização. Dessa convenção participariam depois os governos da Bahia, Alagoas e Sergipe. Assim, com o Nordeste sem fronteiras, as tropas volantes, que não seguiam um plano de combate pré-estabelecido, e sem um comando único, enfrentaram-se várias vêzes na suposição de estarem lutando contra os cangaceiros.
No ano de 1914, após uma luta feroz em Taquaretinga, Manuel Batista de Morais, conhecido por Né Batista e por Antônio Silvino, e que há cérea de 20 anos era o rei do sertão, foi baleado e entregou-se ao Alferes Teofanes Tôrres. Prêso Antônio Silvino, os cangaceiros Casemiro llonório e Né Pereira refugiaram-se na ribeira do Pajeú das Flores, de onde passaram a comandar o cangaço em toda a extensão que vai de Pernambuco à zona baiana do rio São Francisco.
BALEADO em Inhamuns, Ceará, por questões de terras, Antônio Alves Feitosa fugiu com o seu filho José Feitosa depois de ter morto um fazendeiro. Foi para Pernambuco, onde passou a viver como lavrador em Passagem, Distrito de Carqueijo. Morrendo o velho Feitosa, José, para se ,livrar definitivamente da polícia cearense, trocou o nome para José Ferreira da Silva, casou-se com Maria José Lopes e comprou uma fazenda em Ingazeira, às margens do riacho São Domingos, em Serra Vermelha, no Município de Vila Bela, hoje Serra Talhada.
Da união de José com Maria, nasceram Antônio, Livino, Virgulino, João, Anália, Ezequiel, Virtuosa, Maria e Angélica. Virgulino Ferreira da Silva nasceu a 12 de fevereiro do ano de 1900, depois de Antônio e Livino.
COUBE
à avó de Virgulino, de nome Jocosa, mãe de Maria, criá-lo dos cinco aos
doze anos de idade. Ela morava em Poço do Negro, onde, a seu pedido, o
seu filho Manuel Lopes matriculou Virgulino na escola particular de
Domingos Soriano e Justino Nenéu. Quando tinha doze anos e estava no
terceiro ano primário, Virgulino abandonou a escola e passou a domar
potros bravos, amansar animais no campo, ganhando logo a fama de ser um
dos melhores vaqueiros do Pajeú.
Aprendeu a fazer selas, gibões, arreios, perneiras, chapéus de couro, alforjes e embornais, que vendia nas feiras de Nazaré, São Francisco (atual Pajeú), Triunfo, Custódia e Salgueiro. Aprendeu com o pai a tocar sanfona de oito baixos. Tinha boa voz para cantar e muita inspiração para tirar toadas, repentes, baiões e xaxados. Uma das suas músicas, a toada "Muié Rendera", seria, tempos depois, o canto de guerra das suas guerrilhas pelos serrotes e pelas caatingas.
DUAS
famílias — a dos Pereiras e a dos Carvalhos, esta tendo os Nogueiras
como aliados — travavam entre si uma luta fratricida, desde a revolução
pernambucana de 1817, em torno da liderança política da região do Pajeú.
O pai de Virgulino foi agregado dos Pereiras e por eles combateu. Um
dia, depois de um combate com os Carvalhos, com Antônio e Livino
feridos, teve de fugir de Serra Ver-melha, levando tôda a família,
passando a morar perto da Vila de Nazaré, no Município de Floresta. Em
Nazaré, Virgulino despontou para a aventura sangrenta do cangaço.
Aconteceu
assim: o filho do inspetor de quarteirão José Saturnino inventou que
Virgulino lhe havia roubado uns chocalhos de bode. Preso por José
Saturnino, de nada adiantaram os pedidos do velho José Ferreira e as
declarações de inocência do acusado, que era então um menino de 16 anos.
Seu pai e seus irmãos não tiveram outra alternativa: foram soltá-lo a
bala. Era a lei do sertão. E dias depois, Virgulino, Antônio, Ezequiel e
Livino surpreenderam o filho do inspetor e o mataram. Depois de morto,
ainda foi sangrado no pescoço por Virgulino Ferreira, com uma faca
pajeú.
EM
Mata Grande, para onde os Ferreiras se mudaram, alguns meses depois,
unia tropa de cachimbos (nome dado aos civis contratados para perseguir
criminosos) cercou, de surpresa, a casa do velho Ferreira, sob o comando
do Cabo José Lucena — que era o delegado volante —, a pedido do
inspetor José Saturnino, para prender Virgulino e seus irmãos.
No ataque foi morto o velho Ferreira, quando debulhava, na cozinha, uma espiga de milho, e preso o seu filho João. Os outros escaparam porque tinham ido à feira vender bodes. [A mulher de José Ferreira, vendo-o morto, caiu fulminada por um ataque do coração.]
FEITO
o sepultamento do pai e da mãe, no cemitério de Mata Grande, Virgulino
reuniu os irmãos e as irmãs e foi para Vila da Pedra, onde passou a
trabalhar como comboieiro para o Coronel Delmiro Gouveia. Corria o ano
de 1917. O Coronel Delmiro, que havia construído a primeira usina
hidrelétrica no Nordeste, com a energia da cachoeira de Paulo Afonso, e
montado a primeira fábrica de linhas da América do Sul, foi
misteriosamente assassinado nesse ano, sendo o crime atribuído a
elementos ligados aos trustes ingleses que moviam uma guerra sem quartel
ao pioneiro alagoano.
Sentindo-se inseguro em Vila da Pedra depois da morte do Coronel Delmiro, Virgulino deixou as irmãs e João — que não era bom da cabeça — aos cuidados da família de Raimundo Peba, operário da fábrica de linhas. E retornou à Floresta, com os irmãos, à procura do bando de Sinhô Pereira e Luís Padre.
GRANDE
foi a surpresa de Sinhô Pereira ao ver, já homenzinhos e afoitos, os
filhos do velho José Ferreira, que lutara ao seu lado contra os
Carvalhos. Virgulino era quem liderava os irmãos e, por isso, passou
a merecer mais atenção de Sinhô Pereira, que lhe deu logo uma
espingarda papo-amarelo, novinha. Dias depois, após um choque com uma
volante comandada pelo Sargento Optato Gueiros, Virgulino, todo cheio de
si, disse a Sinhô Pereira que, no tiroteio com a volante, a sua
espingarda não deixou de ter clarão, tal qual um lampião.
Os cabras acharam muita graça e Luís Padre disse que não seria mais à falta de lampião, para iluminar os caminhos, que eles cairiam na tocaia das volantes. Desde esse dia Virgulino Ferreira da Silva passou a ser chamado de Lampião. E, da bôca da sua espingarda, trocada, anos depois, por um fuzil do Exército, que lhe foi oferecido por autoridades federais, jorrou um clarão, cuja luz, lívida e sinistra, iluminou por mais IS anos os sertões do Nordeste.
HOUVE,
porém, o seguinte: Sinhô Pereira e Luís Padre foram a Juazeiro do
Norte, no Ceará, pagar uma promessa a padre Cícero Romão Batista e ali o
velho taumaturgo os convenceu a abandonar o cangaço. Eles atenderam e
seguiram, com recomendações do padre, para o interior de Goiás, deixando
Virgulino e seus irmãos.
INDO
a uma festa em Juazeiro, Lampião foi avisado por um beato do padre
Cícero que o Deputado Floro Bartolomeu havia prometido ao governador de
Pernambuco que o entregaria à policia. Disse-lhe o devoto não acreditar
que o padre Cícero concordasse com a prisão, porque quem chegasse
Juazeiro ficava garantido com a santidade mas que era bom tomar cuidado,
porque "doutor Floro é homem capaz de tudo".
JUNTANDO
seus teréns, Lampião deixou Juazeiro, atravessou Pernambuco e chegou
Alagoas, onde encontrou o bando dos irmãos Porcino, Antônio e Manuel,
juntando--se a eles. Ficou com os Porcino, até junho de 1922. Nesse ano,
os Porcinos decidiram abandonar o cangaço e, dos seus trinta cabras,
vinte e um debandaram e nove ficaram com Lampião, que passou a
chefia-los. Começou assim Lampião a sua carreira de chefe de bando,
comandando doze cabras, inclusive seus três irmãos Antônio, Livino e
Ezequiel.
"LAMPIÃO é rapaz moço, pode ter vinte e dois ano. Tem cartucheira de prata e um rife americano."
MATINHA
de Agua Branca, em Alagoas, foi a primeira cidade que Lampião saqueou
como chefe de bando. A frente de cinqüenta cabras e com cerca de
oitocentos soldados da polícia de três estados no seu rastro, entrou em
Matinha de Água Branca sem dar um tiro. Distribuiu seus homens pelos
pontos estratégicos da cidade e mandou Cravo Roxo intimar o delegado a
fazer uma coleta de dinheiro entre o povo. A seguir, entrou numa igreja e
foi rezar para o padre Cícero.
Depois da reza, seguido pelas crianças que viam nele um herói, foi ao palacete da viúva Joana Vieira da Siqueira Tôrres, Baronesa de Água Branca, de onde levou todas as jóias que ela guardava em três grandes baús de cedro. Não molestou ninguém e saiu de Matinha de Agua Branca debaixo dos gritos das crianças: "Viva Lampião, Viva Lampião." Isso a 22 de junho de 1922.
NO
dia 6 de julho do mesmo ano, Lampião assaltou em Olhos d'Agua a fazenda
do Coronel José Rodrigues, levando cinco contos de réis para deixá-lo
vivo. Invadiu, a seguir, a Vila do Espírito Santo, e, após essas três
investidas, foi-se acoitar numa grota em Tacaratu, onde passou cerca de
seis meses sem dar sinal de vida.
"Ô muié rendá. ô muié rendá. Chorô por mim não fica, soluçô vai
no borná. O Ceará tá de luto, Pernambuco de sentimento, Alagoa de porta
aberta, Lampião xaxando dento."
PARA
fugir à ação das volantes, que passaram a não lhe dar trégua, Lampião
permanecia durante meses num esconderijo, onde eram promovidos bailes em
que a cachaça corria à solta. Ele mesmo animava os forrós, tocando sua
sanfona de oito baixos e tirando toadas que se transformavam em cantos
de guerra, como essa "Muié Rendera". Nos bailes, à falta de mulheres, os
cabras dançavam uns com os outros, dias e noites seguidos. Lampião
fumava pouco e bebia menos. Não gostava muito de cachaça: preferia vinho
ou conhaque.
QUANDO pressentia ter-se afrouxado o cerco policial, mandava um dos seus cabras às feiras para assuntar o ambiente. Esses cabras eram os chamados pombeiros e muitos deles foram afastados do bando por Lampião, que lhes dava casa e sustento, mantendo-os como coiteiros, que eram os seus informantes sobre todas os movimentos da polícia.
RECAIU
sôbre os coiteiros, tempos depois, o segredo do terrível domínio de
Lampião nos sertões do Nordeste. Em pouco tempo, ele conseguiu organizar
e manter, do Ceará à Bahia, uma poderosa rede de espionagem, e até
padres, juízes, comerciantes, coronéis de barranco, e mesmo soldados da
polícia, uns por temor e a maioria por interesse, passaram a dar o
serviço a Lampião.
SOFRENDO de um glaucoma no olho direito desde que nasceu, Lampião passou a usar óculos a partir dos 22 anos. A cegueira total desse olho, que se manifestaria quatro anos depois, foi uma consequência natural do glaucoma. Segundo depoimento de seus cabras, alguns ainda vivos, ele costumava dizer que "dois óio é luxo", porque para fazer pontaria "basta só um; o outro inté atrapaia"
As ordens de Lampião eram cumpridas à risca. Não falava duas vezes, porque não era de conversa. Lampião gostava de romance de capa e espada, mas não largava o rifle, que era sua bengala.
TINHA
1 metro e 80 de altura, cabelos pretos e escorridos, dentadura
perfeita, braços finos e mãos compridas, cheias de veias intumescidas.
Era amulatado e magro.
UM
punhal de 73 centímetros de lâmina, atravessado na cartucheira do
cinturão, duas outras cartucheiras cruzando o tórax, dois embornais,
onde carregava iodo, algodão, sabonete, pasta e escova, um prato de
alumínio, duas pistolas "parabellum", um rifle com a bandoleira
enfeitada de libras esterlina e antigas moedas de ouro portuguesas, e
enrodilhado na cintura o cofre papo-de-ema, a sua burra portátil, cheia
de cédulas — esse equipamento, pesando cerca de quarenta quilos, era o
de Lampião, que vestia invariavelmente paletó de brim caqui e calça de
riscado, lenço vermelho ao pescoço e calçava alpercatas de couro cru e
meias de cores vistosas.
Usava óculos de de aros de ouro, vários anéis nos dedos, sendo um deles de médico, medalhas do Padre Cícero e Nossa Senhora das Dores e rezas fortes costuradas em panos bentos. Na cabeça, um grande chapéu de couro de viado, batido na frente e atrás, destacando-se, na testeira, um signo-de-salomão colorido de ilhoses.
VENTANIA,
Cobra Verde, Cravo Roxo, Azulão, Criança, Pancada, Maria, mulher de
Pancada, Carrapicho, Cobra de Cipó, Asa Branca, Pinto Cego, Come Cru,
Patorí, Marreco, Graúna e Mergulhão fo-
ram os cabras que formaram o primeiro bando de Lampião.
XEXÉU, Chá Preto, Besta Fera, Canjica, Jurema e Beija-Flor entraram a seguir. Era ele que os apelidava, com o objetivo de lhes esconder a verdadeira identidade, a fim de livrar a família de cada um das represálias da polícia. Ezequiel, seu irmão, apelidou de Ponto Fino, porque ele era mesmo o fino na pontaria.
ZABELE entrou para o bando de Lampião em 1923. Era um caboclo que vivia repinicando a sua viola nas feiras dos sertões de Alagoas. Um dia, tirou um repente criticando arbitrariedades do delegado de Santana de Ipanema. Foi preso, espancado a chicote de umbigo de boi e marcado a ferro em brasa, pelos soldados, como novilho em curral.
Conseguiu fugir
da prisão e foi juntar-se ao bando de Lampião. Era sempre assim. Para os
injustiçados nos sertões do Nordeste, Lampião era a última instância.
Pescado no sítio de cumpadi Meneleu
quinta-feira, 6 de setembro de 2018
Disponível para download
Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas
O livro divide-se em três capítulos, sendo o primeiro “O despertar dos pobres do campo”, o segundo “Canudos e conselheiros” e o último “Juazeiro e Padre Cícero”. Nesses capítulos, Rui Facó, a partir de uma leitura marxista, faz uma análise histórica dos fenômenos que ficaram conhecidos como “fanatismo” e “banditismo”, ocorridos do último cartel do século XIX e início do século XX no interior brasileiro. O autor analisa principalmente os acontecimentos de Canudos (1896-1897) e Juazeiro, duas rebeliões que, segundo ele, teriam um forte cunho religioso, mas não podem ser explicadas e entendidas somente por esse traço característico.
Para o autor, foi a luta de classes entre os homens pobres do campo e os fazendeiros a maior motivação desses movimentos; era, segundo ele, “uma luta aguerrida contra o latifúndio, contra a miséria e contra a exploração”. Ele caracteriza Contestado (1912-1916), Caldeirão (1936-1938), Pau de Colher, Pedra Bonita e o cangaceirismo — fenômeno que se prolongou até a década de 1930 — também como expressões de conflitos no interior do país. Para Facó, o latifúndio geraria lutas de classe desde sua origem. De início, com fazendeiros tentando salvaguardar suas propriedades de ataques de índios; depois contra as incursões de posseiros; mais tarde contra cangaceiros e fanáticos; e naquele momento contra o proletário rural sem terra.
Rui Facó, em Cangaceiros e fanáticos, faz uma análise da conjuntura que propiciou os acontecimentos de Canudos e Juazeiro. Para ele, esses movimentos aconteceram num período de crise de ordem econômica, ideológica e de autoridade. Era época em que findava o Império e a escravidão era abolida. Esses acontecimentos teriam abalado os critérios de mando da sociedade brasileira, principalmente no Nordeste. Contudo, nada disso permitiu que relações de produção de tipo superior, à base do trabalho livre, surgissem. As relações no campo, principalmente no Nordeste, continuavam a ser majoritariamente servis.
Além da crise do instituto escravista, o Brasil vivia também a crise do latifúndio pré-capitalista e o arruinamento dos antigos engenhos banguês do Nordeste. Os antigos engenhos de açúcar ruíam e eram substituídos pelas usinas de açúcar, sem que acontecesse, segundo Facó, uma revolução na Zona Canavieira. Uma nova estrutura mecânica foi implantada com as usinas de açúcar, mas os arcabouços do velho latifúndio permaneceram intactos. A usina intensificou, segundo ele, o processo de monopolização da terra. A renovação técnica preservou a situação de miséria das massas sem terra e agravou a concentração de terras no Nordeste.
Deste modo, Rui Facó considera que os “cangaceiros” e “fanáticos” eram o fruto da decadência de um sistema socioeconômico que tinha o latifúndio semifeudal como nexo fundamental. Essa situação de crise teria se agravado sobremaneira quando o centro da gravidade econômica se transferiu do Nordeste para o Sul, por conta do café. O latifúndio continuaria a entravar brutalmente o crescimento das forças produtivas, a mecanização da agricultura e o crescimento das indústrias. O monopólio da terra continuava a promover uma divisão de classes sumária: o senhor de grandes extensões de terras e o homem sem terra, o semisservo.
O Nordeste, do final do século XIX e início do século XX, é caracterizado pelo autor como uma sociedade em estágio econômico seminatural, na qual o capitalismo e as cidades tinham pouca influência e repercussão sobre o latifúndio semifeudal. As relações entre usineiro e homens pobres eram semisservis, pré-capitalistas.
Para Facó, o latifúndio reduzia as populações do interior ao mais brutal isolamento, ao analfabetismo quase generalizado, e deixava como única forma de consciência do mundo exterior a religião ou as seitas nascidas nas próprias comunidades rurais — vertentes do catolicismo. Os homens sem terra, ao formarem grupos de cangaceiros e seitas de “fanáticos”, como ficaram conhecidos Juazeiro e Canudos, organizaram-se e rebelaram-se por uma melhor condição de vida. Esses movimentos teriam sido rebeliões inconscientes contra a servidão da gleba, contra o latifúndio. Tiveram boa dosagem de misticismo religioso — o autor não nega —, mas eram mobilizados fundamentalmente pela dinâmica da luta de classes.
Com esse argumento, Rui Facó contrariava os historiadores que exageraram o misticismo religioso dos habitantes de Canudos e Juazeiro. Atribuindo-lhes a classificação de “fanáticos”, esses estudiosos retiravam o conteúdo progressista e reformador desses fenômenos, dando-lhes um sentido pejorativo.
O autor enumera ainda como uma das causas para o “banditismo” e do “fanatismo” o fato de o latifúndio criar em seu entorno um excedente de mão de obra capaz de assegurar a quase gratuidade da força de trabalho. Isso possibilitava a imposição de relações semisservis aos pobres do campo. Deste modo, criava-se no Nordeste dos fins do século XIX e início do XX um contingente de pessoas pobres, sem bens e sem terra, nômade, que fugia da seca e não era absorvida pelo latifúndio, mas tinha algo a reivindicar, ainda que não soubesse formular claramente essa reivindicação. Segundo Facó, a reação à miséria e à fome teria vindo com a formação de grupos de cangaceiros e de seitas místicas.
Facó aponta ainda que a ruptura da estagnação no campo se iniciou com o êxodo em massa de nordestinos para a Amazônia e para o Sul, por causa do surto da borracha e do cultivo do café, respectivamente. A fuga teria sido ocasionada também pelas constantes secas do Nordeste. Para ele, a emigração era o primeiro passo na busca de outras condições de vida e permitia que os homens pobres do campo se evadissem da imobilidade multissecular em que viviam. Graças ao contato com outras formas de vida social, estes migrantes, quando retornavam ao Nordeste, voltavam diferentes, menos conformados com a vida de miséria e de fome que levavam.
Não só o monopólio da terra explicaria o cangaço e o “fanatismo”. O atraso econômico, o isolamento do interior, o imobilismo social também seriam fatores geradores do cangaço e do “fanatismo”. Por essa razão, para o autor, a penetração do capitalismo no meio rural seria de suma importância, já que possibilitaria a existência de novas relações de produção e de troca, permitindo que o semisservo saísse da estagnação do meio rural e abrindo novos caminhos para os bandos de cangaceiros e para os místicos itinerários dos beatos e conselheiros.
Deste modo, com essa argumentação, Rui Facó contrariava as explicações, como as formuladas por Euclides da Cunha, que viam o cangaço com o resultado da má eugenia, de atavismos étnicos. Contrariava também aquelas que afirmavam que as condições biológicas geravam o fenômeno do cangaço. Assim, Rui Facó explicava o cangaceirismo e o fanatismo pelas circunstâncias sociais e econômicas, pela extrema desigualdade social provocada pela grande concentração de terras, acentuada pelo débil desenvolvimento do capitalismo no interior do país, local onde se constituiriam, de acordo com a sua leitura marxista, relações de produção pré-capitalistas, semifeudais, e que era marcado pelo pouco incremento das forças produtivas.
Longe de considerá-los como criminosos, como fez a historiografia do início do século XX, Rui Facó considerou os pobres do campo envolvidos nessas rebeliões como o resultado do atraso econômico. O “banditismo” e o “fanatismo” seriam movimentos subversivos, “elementos ativos geradores de mudança social” e “contestadores da pasmaceira imposta pelo latifúndio”. Esses homens eram consequência dos choques de classe e das lutas armadas. Seriam, assim, o prólogo de uma revolução social que estaria por vir. Segundo ele, “banditismo” e “fanatismo” eram “elementos regeneradores de uma sociedade estagnada”, preparadores de uma nova época, representando um “primeiro passo para a emancipação dos pobres do campo”.
A opinião que marca a singularidade da interpretação de Facó é a de que Canudos e Contestado foram movimentos de cunho religiosos que revelavam uma drástica separação entre religiosidade popular e a religião oficial da Igreja Católica. Na sua interpretação, o “fanatismo” constituía uma ideologia de cunho místico, condizente com a condição de vida das populações rurais do final do século XIX e início do século XX, que era contrária à ideologia das classes dominantes e das camadas médias urbanas.
Assim, ao longo do livro Cangaceiros e Fanáticos, Facó defende que a seita abraçada pelos homens pobres do campo, como toda ideologia, tinha um conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos que traduziam suas condições materiais de vida e eram antagônicos às ideologias das classes dominantes. Ele considera que em todos os casos analisados — principalmente em Juazeiro, Canudos e em Contestado — as massas espoliadas teriam criado uma religião própria, uma espécie de consciência primária, no sentido marxista do termo, que lhes serviu de instrumento na luta por sua libertação social contra o latifúndio e contra as relações semifeudais de produção.
O “fanatismo” teria sido o elemento de solidariedade grupal impulsionador de uma reação contra a ordem dominante. Deste modo, a tônica da interpretação marxista do autor é dada pela crença de que essas aglomerações seriam movimentos de tipo primário que traduziam, contudo, as aspirações da população rural empobrecida em luta pela libertação do jugo do latifúndio.
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Dora Vianna Vasconcellos é socióloga, mestre em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura (CPDA-UFRRJ)/ Rio de Janeiro.
Joel Reis nos deu a direção e pescamos lá no Via Cognitiva
O livro divide-se em três capítulos, sendo o primeiro “O despertar dos pobres do campo”, o segundo “Canudos e conselheiros” e o último “Juazeiro e Padre Cícero”. Nesses capítulos, Rui Facó, a partir de uma leitura marxista, faz uma análise histórica dos fenômenos que ficaram conhecidos como “fanatismo” e “banditismo”, ocorridos do último cartel do século XIX e início do século XX no interior brasileiro. O autor analisa principalmente os acontecimentos de Canudos (1896-1897) e Juazeiro, duas rebeliões que, segundo ele, teriam um forte cunho religioso, mas não podem ser explicadas e entendidas somente por esse traço característico.
Para o autor, foi a luta de classes entre os homens pobres do campo e os fazendeiros a maior motivação desses movimentos; era, segundo ele, “uma luta aguerrida contra o latifúndio, contra a miséria e contra a exploração”. Ele caracteriza Contestado (1912-1916), Caldeirão (1936-1938), Pau de Colher, Pedra Bonita e o cangaceirismo — fenômeno que se prolongou até a década de 1930 — também como expressões de conflitos no interior do país. Para Facó, o latifúndio geraria lutas de classe desde sua origem. De início, com fazendeiros tentando salvaguardar suas propriedades de ataques de índios; depois contra as incursões de posseiros; mais tarde contra cangaceiros e fanáticos; e naquele momento contra o proletário rural sem terra.
Rui Facó, em Cangaceiros e fanáticos, faz uma análise da conjuntura que propiciou os acontecimentos de Canudos e Juazeiro. Para ele, esses movimentos aconteceram num período de crise de ordem econômica, ideológica e de autoridade. Era época em que findava o Império e a escravidão era abolida. Esses acontecimentos teriam abalado os critérios de mando da sociedade brasileira, principalmente no Nordeste. Contudo, nada disso permitiu que relações de produção de tipo superior, à base do trabalho livre, surgissem. As relações no campo, principalmente no Nordeste, continuavam a ser majoritariamente servis.
Além da crise do instituto escravista, o Brasil vivia também a crise do latifúndio pré-capitalista e o arruinamento dos antigos engenhos banguês do Nordeste. Os antigos engenhos de açúcar ruíam e eram substituídos pelas usinas de açúcar, sem que acontecesse, segundo Facó, uma revolução na Zona Canavieira. Uma nova estrutura mecânica foi implantada com as usinas de açúcar, mas os arcabouços do velho latifúndio permaneceram intactos. A usina intensificou, segundo ele, o processo de monopolização da terra. A renovação técnica preservou a situação de miséria das massas sem terra e agravou a concentração de terras no Nordeste.
Deste modo, Rui Facó considera que os “cangaceiros” e “fanáticos” eram o fruto da decadência de um sistema socioeconômico que tinha o latifúndio semifeudal como nexo fundamental. Essa situação de crise teria se agravado sobremaneira quando o centro da gravidade econômica se transferiu do Nordeste para o Sul, por conta do café. O latifúndio continuaria a entravar brutalmente o crescimento das forças produtivas, a mecanização da agricultura e o crescimento das indústrias. O monopólio da terra continuava a promover uma divisão de classes sumária: o senhor de grandes extensões de terras e o homem sem terra, o semisservo.
O Nordeste, do final do século XIX e início do século XX, é caracterizado pelo autor como uma sociedade em estágio econômico seminatural, na qual o capitalismo e as cidades tinham pouca influência e repercussão sobre o latifúndio semifeudal. As relações entre usineiro e homens pobres eram semisservis, pré-capitalistas.
Para Facó, o latifúndio reduzia as populações do interior ao mais brutal isolamento, ao analfabetismo quase generalizado, e deixava como única forma de consciência do mundo exterior a religião ou as seitas nascidas nas próprias comunidades rurais — vertentes do catolicismo. Os homens sem terra, ao formarem grupos de cangaceiros e seitas de “fanáticos”, como ficaram conhecidos Juazeiro e Canudos, organizaram-se e rebelaram-se por uma melhor condição de vida. Esses movimentos teriam sido rebeliões inconscientes contra a servidão da gleba, contra o latifúndio. Tiveram boa dosagem de misticismo religioso — o autor não nega —, mas eram mobilizados fundamentalmente pela dinâmica da luta de classes.
Com esse argumento, Rui Facó contrariava os historiadores que exageraram o misticismo religioso dos habitantes de Canudos e Juazeiro. Atribuindo-lhes a classificação de “fanáticos”, esses estudiosos retiravam o conteúdo progressista e reformador desses fenômenos, dando-lhes um sentido pejorativo.
O autor enumera ainda como uma das causas para o “banditismo” e do “fanatismo” o fato de o latifúndio criar em seu entorno um excedente de mão de obra capaz de assegurar a quase gratuidade da força de trabalho. Isso possibilitava a imposição de relações semisservis aos pobres do campo. Deste modo, criava-se no Nordeste dos fins do século XIX e início do XX um contingente de pessoas pobres, sem bens e sem terra, nômade, que fugia da seca e não era absorvida pelo latifúndio, mas tinha algo a reivindicar, ainda que não soubesse formular claramente essa reivindicação. Segundo Facó, a reação à miséria e à fome teria vindo com a formação de grupos de cangaceiros e de seitas místicas.
Facó aponta ainda que a ruptura da estagnação no campo se iniciou com o êxodo em massa de nordestinos para a Amazônia e para o Sul, por causa do surto da borracha e do cultivo do café, respectivamente. A fuga teria sido ocasionada também pelas constantes secas do Nordeste. Para ele, a emigração era o primeiro passo na busca de outras condições de vida e permitia que os homens pobres do campo se evadissem da imobilidade multissecular em que viviam. Graças ao contato com outras formas de vida social, estes migrantes, quando retornavam ao Nordeste, voltavam diferentes, menos conformados com a vida de miséria e de fome que levavam.
Não só o monopólio da terra explicaria o cangaço e o “fanatismo”. O atraso econômico, o isolamento do interior, o imobilismo social também seriam fatores geradores do cangaço e do “fanatismo”. Por essa razão, para o autor, a penetração do capitalismo no meio rural seria de suma importância, já que possibilitaria a existência de novas relações de produção e de troca, permitindo que o semisservo saísse da estagnação do meio rural e abrindo novos caminhos para os bandos de cangaceiros e para os místicos itinerários dos beatos e conselheiros.
Deste modo, com essa argumentação, Rui Facó contrariava as explicações, como as formuladas por Euclides da Cunha, que viam o cangaço com o resultado da má eugenia, de atavismos étnicos. Contrariava também aquelas que afirmavam que as condições biológicas geravam o fenômeno do cangaço. Assim, Rui Facó explicava o cangaceirismo e o fanatismo pelas circunstâncias sociais e econômicas, pela extrema desigualdade social provocada pela grande concentração de terras, acentuada pelo débil desenvolvimento do capitalismo no interior do país, local onde se constituiriam, de acordo com a sua leitura marxista, relações de produção pré-capitalistas, semifeudais, e que era marcado pelo pouco incremento das forças produtivas.
Longe de considerá-los como criminosos, como fez a historiografia do início do século XX, Rui Facó considerou os pobres do campo envolvidos nessas rebeliões como o resultado do atraso econômico. O “banditismo” e o “fanatismo” seriam movimentos subversivos, “elementos ativos geradores de mudança social” e “contestadores da pasmaceira imposta pelo latifúndio”. Esses homens eram consequência dos choques de classe e das lutas armadas. Seriam, assim, o prólogo de uma revolução social que estaria por vir. Segundo ele, “banditismo” e “fanatismo” eram “elementos regeneradores de uma sociedade estagnada”, preparadores de uma nova época, representando um “primeiro passo para a emancipação dos pobres do campo”.
A opinião que marca a singularidade da interpretação de Facó é a de que Canudos e Contestado foram movimentos de cunho religiosos que revelavam uma drástica separação entre religiosidade popular e a religião oficial da Igreja Católica. Na sua interpretação, o “fanatismo” constituía uma ideologia de cunho místico, condizente com a condição de vida das populações rurais do final do século XIX e início do século XX, que era contrária à ideologia das classes dominantes e das camadas médias urbanas.
Assim, ao longo do livro Cangaceiros e Fanáticos, Facó defende que a seita abraçada pelos homens pobres do campo, como toda ideologia, tinha um conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos que traduziam suas condições materiais de vida e eram antagônicos às ideologias das classes dominantes. Ele considera que em todos os casos analisados — principalmente em Juazeiro, Canudos e em Contestado — as massas espoliadas teriam criado uma religião própria, uma espécie de consciência primária, no sentido marxista do termo, que lhes serviu de instrumento na luta por sua libertação social contra o latifúndio e contra as relações semifeudais de produção.
O “fanatismo” teria sido o elemento de solidariedade grupal impulsionador de uma reação contra a ordem dominante. Deste modo, a tônica da interpretação marxista do autor é dada pela crença de que essas aglomerações seriam movimentos de tipo primário que traduziam, contudo, as aspirações da população rural empobrecida em luta pela libertação do jugo do latifúndio.
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Dora Vianna Vasconcellos é socióloga, mestre em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura (CPDA-UFRRJ)/ Rio de Janeiro.
Joel Reis nos deu a direção e pescamos lá no Via Cognitiva
terça-feira, 4 de setembro de 2018
Silvio Bulhões em documentário
O mar de Corisco
Filho do casal de cangaceiros Corisco e Dadá, o menino Sílvio assusta-se ao confrontar suas verdadeiras origens; o rapaz Sílvio parte em busca da mãe biológica; e o homem Sílvio inicia uma jornada para dar aos restos do pai um mínimo de dignidade.
Pescado no canal de Pedro da Rocha
Filho do casal de cangaceiros Corisco e Dadá, o menino Sílvio assusta-se ao confrontar suas verdadeiras origens; o rapaz Sílvio parte em busca da mãe biológica; e o homem Sílvio inicia uma jornada para dar aos restos do pai um mínimo de dignidade.
Pescado no canal de Pedro da Rocha
quinta-feira, 30 de agosto de 2018
Zé Baiano
A saga do cangaceiro ferrador - Sua morte em Alagadiço
Por José Bezerra Lima Irmão
Zé Baiano - José Aleixo Ribeiro da Silva - foi um dos cangaceiros mais famosos, mas também um dos menos estudados. As histórias e referências a seu respeito são repetidas por muitos autores sem a devida reflexão e sem preocupação com a verdade.
Nasci a uma légua do local onde Zé Baiano morreu. Ouvi dezenas de vezes o relato desse episódio da boca de meus pais e tios. Minha mãe era comadre de Pedro Guedes, um dos matadores de Zé Baiano. Meu tio Raimundo Bezerra era concunhado de Antônio de Chiquinho, o homem que liderou o ataque.
Fiz várias viagens a Macururé e Chorrochó, no norte da Bahia, em busca de informações sobre esse estranho personagem, sobrinho dos cangaceiros Cirilo e Antônio de Engrácia.
Transcrevo, a seguir, o capítulo 198 do meu livro Lampião - a Raposa das Caatingas, em que conto a aventura e desventura do chamado Carrasco Ferrador. Faço essa transcrição com o propósito de assim contribuir para o registro desses fatos da história do cangaço, porém lembrando que é proibida a sua reprodução integral ou parcial sem a autorização prévia do autor.
Mitos e verdades sobre o carrasco ferrador
Há coisas assim: alguém faz uma afirmação, e todo mundo passa a repeti-la, como papagaio.
Com relação a Zé Baiano, alguém afirmou que ele era negro e feio, parecendo um gorila ou chimpanzé, e a partir daí todos os autores fizeram coro a isso, partindo da ideia subjacente de que maldade e feiura são coisas de negro.
Estavam em voga àquela época certas concepções baseadas nas teorias de Cesare Lombroso, nitidamente racistas. Para ser enquadrado na classificação lombrosiana, teorizava-se, à moda de Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, que criminoso era coisa de mestiço. Era a teoria da degenerescência racial. Para os “cientistas” daquela época, a rigor só havia uma raça, a branca – uma raça superior. As demais eram inferiores – sub-raças –, e ao se misturarem abastardavam os descendentes, que se degeneravam orgânica, psíquica e moralmente.
Alguns autores dão mais ênfase ao fato de Zé Baiano ser negro e feio do que a seus crimes, que são postos em segundo plano.
Ranulfo Prata, condicionado pelos preconceitos de Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, descreve Zé Baiano como um negro grosso e malvado, de cabeça disforme, grande nariz esparramado na face bestial, boca rasgada de sapo cururu, de horripilante feiura.
A partir dessa deixa, passou-se a dizer que Zé Baiano tinha cabeça grande, nariz apragatado, lábios grossos, voz gutural e pele de sapo, escamosa.
Nertan Macedo chamou-o de “orangotango hirsuto”.
Rodrigues de Carvalho, que só se refere a Zé Baiano chamando-o de negro, preto e crioulo, exagera de forma absurda: Zé Baiano “não era negro apenas por fora”. Qualifica-o assim:
“O negro Zé Baiano, miserável rebutalho humano, que monopolizava todos os vícios e defeitos da raça negra e nenhuma das suas virtudes...” Não se cansa de chamá-lo de “nefasto crioulo”, “o desgraçado do negro”, “urso preto”, “gorila”, “crioulo horroroso (...) bem mais aproximado do chimpanzé do que da criatura humana” (...), “mais preto por dentro do que por fora”, aduzindo que ele “Tinha a alma mais negra do que a sua pele negra”. Considera que “Esse hediondo crioulo foi, sem favor nenhum, um inqualificável monstro. Toda a sua existência, negra como a sua pele negra, foi vazia de qualquer resquício de sentimento humano”. Arremata o retrato do cangaceiro assim: “O negro Zé Baiano, com as características que possuía, preto, alto e membrudo, despojado das vestes e preso pela cintura com uma corrente, era perfeitamente negociável. Nas mãos de um sujeito esperto, qualquer empresário de circo ou de jardim zoológico o compraria por um gorila, sem desconfiar”.
Joaquim Góis segue a mesma toada, dizendo que Zé Baiano, por dentro, era “um espírito que herdou toda a monstruosidade dos vícios de sua raça”.
Felipe de Castro sentencia: Zé Baiano era um homem mau, feio e “negro nojento”.
Por sua vez, Estácio de Lima diz que Zé Baiano era “um negro feio”, e em vez de mãos parecia ter garras.
Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena não ficam atrás: ao desgraçado negro, para ser a imagem do diabo, só faltavam os chifres, em tudo diferente, por exemplo, de Luís Pedro, “alvo de olhos azuis, um homem bonito...”
Essas descrições contêm juízos inaceitáveis. Para se falar da personalidade de uma pessoa, não há necessidade de vinculá-la à cor da sua pele – não importa se ela é preta, branca ou azul!
Embora não seja relevante determinar qual a cor daquele cangaceiro, convém registrar, a bem da verdade, o que disse o repórter d’O Estado de Sergipe que presenciou a exumação do corpo de Zé Baiano: “O dr. Carlos Menezes lavou a cabeça do facínora temido, que tantos males concebera e praticara, transparecendo então uma fisionomia morena...”.
Zé Baiano não era negro, era moreno, caboclo, acobreado. Em Chorrochó, onde ele nasceu, não há negros do tipo descrito por Rodrigues de Carvalho. Há caboclos, mamelucos ou “curibocas”, e um ou outro mulato. Negros, mesmo, são raros, como são raros os brancos – se é que existem “brancos” no Brasil.
Seu nome era José Aleixo Ribeiro da Silva. Pertencia à família dos Engrácia, nome de sua avó – família Ribeiro da Silva. Era sobrinho de Cirilo e Antônio de Engrácia, e primo de Zé Sereno, Mané Moreno, Antônio de Seu Naro, Sabonete e vários outros cabras, em torno de quinze. Os Engrácia, mestiços de branco com índio, eram indivíduos de pele bronzeada, “cor de formiga”, tostada pelo sol da caatinga. Existem algumas fotografias de Zé Baiano. As fotos daquela época eram em preto e branco. Branco era o papel. Queriam que Zé Baiano aparecesse de que cor? Na foto mais divulgada, o rosto dele está na sombra do chapelão de couro, tendo um lenço preto em volta do pescoço, o que dá a impressão de que o pescoço seria negro. Note-se na foto o nariz afilado, os lábios finos – traços que não correspondem aos do negro, que em geral tem nariz achatado e beiços polpudos.
Aliás, o próprio Rodrigues de Carvalho diz que a pigmentação da epiderme de Zé Baiano “era de uma tonalidade indefinida, entre o marrom e o preto”.
Entre os parentes de Zé Baiano não há um negro sequer. Seu tio Antônio de Engrácia é descrito por Rodrigues de Carvalho como sendo “talvez o tipo mais bem proporcionado da quadrilha, chegando a ser mesmo homem bonito, fisicamente”. Por “homem bonito”, na concepção daquele autor, entenda-se “não negro”.
Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena referem-se a Antônio de Engrácia como “um cangaceiro garboso” e, plagiando literalmente Joaquim Góis (sem citá-lo...), dizem que era “uma estampa mestiça de cores fixas. Amorenado da cor da terra que o sol queimou devagar”. Já Cirilo de Engrácia, outro tio de Zé Baiano, seria “moreno avermelhado”. Essa descrição de Cirilo coincide com a que foi feita por Dadá ao pesquisador Antonio Amaury Corrêa de Araújo: Cirilo era “cor de saúva” (formiga-de-mandioca, cabeçuda).
Zé Sereno, primo carnal de Zé Baiano, apareceu em vários documentários cinematográficos, dentre eles O Último Dia de Lampião, produzido pela Rede Globo de Televisão. Era moreno-claro, cabelo cacheado. É só ver.
Lídia, mãe de Zé Sereno e tia de Zé Baiano, é descrita por Antônio Amaury Araújo como “uma cabocla”.
O celebrado Euclides da Cunha, ao falar do povo da região que margeia o Raso da Catarina, observa que negro ali era coisa rara. Relatando o suplício dos prisioneiros de Canudos, Euclides descreve a forma como foi preso e enforcado “Um negro, um dos raros negros puros que ali havia”. Noutra passagem, ele enfatiza que era “Raro um branco ou negro puro. [...] Predominava o pardo lídimo, misto de cafre, português e tapuia – faces bronzeadas, cabelos corredios e duros ou anelados”.
Entrevistei velhos coiteiros, e todos afirmam que Zé Baiano era um caboclo alto e forte, de rosto comprido cor de bronze, sobrancelhas escassas, maçãs do rosto salientes, nariz afilado, boca média, de lábios finos e bem ajustados, queixo fino, olhos vivos, penetrantes, cabelo liso, de índio. Apesar de ser um sujeito de poucas palavras, em situações normais falava de forma branda e cortês. Era um tipo simpático. Nas festas, comportava-se de forma comedida. Nunca dançava. Limitava-se a cantar, sentado, batendo palmas, o rifle atravessado no colo. Tinha uma voz grave, afinada, maravilhosa. Gostava de modinhas românticas. Metia-se a fazer trovas de improviso e tinha certo traquejo no fole de oito baixos. Ao contrário dos demais cangaceiros, ele não bebia, não fumava e não jogava baralho. Almoçava à mesa com os grandes fazendeiros da região de Alagadiço, Gameleiro e Pinhão, todos seus amigos – Laurindo Gomes, Pedro Gato, Zeca Ferreira, Etelvino Mendonça, Joãozinho de Donana Rego e seu irmão Costinha, Napoleão Emídio, Josias Tabaréu, José Melquíades e os irmãos Marcionílio e Gersílio do Gameleiro.
Zé Baiano era um rapaz comunicativo, mas não falador. Estava sempre tranquilo, alegre. Usava óculos de grau. Foi um dos cabras mais fiéis a seu chefe, obediente ao código do cangaço, tanto assim que quando os parentes romperam com Lampião Zé Baiano ficou com ele.
Além dos grandes fazendeiros da região, ele mantinha contatos com figuras poderosas da política estadual, usineiros da Cotinguiba e grandes comerciantes de Aracaju, aos quais emprestava elevadas somas a juros. Certo dia, surpreendeu o poderoso Otoniel Dória (Dorinha), chefe político de Itabaiana, em sua fazenda São João, município de Carira. Trocaram cumprimentos. O fazendeiro convidou-o para jantar, e a partir daí firmaram uma profunda amizade.
Infância e primeiros passos no cangaço
Zé Aleixo – o Zé Baiano – nasceu nas Areias, acima de São Saité, na zona de Feira do Pau (atual Macururé). Era filho de Teodora e Faustino Ribeiro da Silva (Faustino Mão de Onça), irmão de Antônio e Cirilo de Engrácia. Criou-se ajudando o pai no manejo de bodes e ovelhas entre as Areias, Lagoa do Esquixique, Lagoa das Vacas e Baixa do Ribeiro. Quando as lagoas e cacimbas secavam, o último recurso eram os poços do Riacho Grande. Tinha jeito para carpinteiro e pedreiro – naquele tempo as casas de pobres eram feitas de madeira trançada e barro, com cobertura de palha, e as dos mais remediados eram de adobe, cobertas de telha.
Quando o tio Antônio de Engrácia cometeu o primeiro crime, em 1925, toda a família se viu envolvida, pois a vítima era um homem de posses. Os Engrácia pediram proteção inicialmente a Inácio Grande, o maior fazendeiro de Chorrochó. Depois foram viver sob a proteção de Gregório da Pedra da Chica, no outro lado do São Francisco, em Pernambuco. Foi nessa ocasião que José Aleixo recebeu o apelido de Zé Baiano, para se distinguir de outros José. Juntou-se ao bando de Lampião pela primeira vez em setembro de 1926, desligando-se dois meses depois, após a Batalha da Serra Grande. Reincorporou-se ao bando definitivamente em julho de 1929.
Ferração em Canindé
Todos os autores, sem exceção, copiando-se uns aos outros, se referem a Zé Baiano como um sujeito que “tinha o hábito” de marcar mulheres a ferro quente com as letras “J-B” (José Baiano).
Na verdade, isso aconteceu em Canindé, em janeiro de 1932, quando ele, por vingança, ferrou de uma só vez três mulheres ligadas a soldados que haviam espancado sua mãe. A história dessa ferração é a seguinte:
Um soldado chamado Vicente Marques – da família Marques, de Santa Brígida, Marancó e Canindé – certa vez espancou a mãe de Zé Baiano para obrigá-la a informar o paradeiro do filho e dos parentes cangaceiros. A velha ficou irreconhecível, tantas foram as coronhadas de fuzil que recebeu no rosto.
Quando Lampião esteve em Canindé, em janeiro de 1932, onde moravam pessoas da família Marques, Zé Baiano recebeu carta branca de Lampião para vingar-se do que fizeram com sua mãe. Ao prender Maria Marques, irmã do soldado que supliciara sua mãe, Zé Baiano decidiu deixá-la marcada para sempre e mandou que um morador chamado Zé Rosa fosse buscar um ferro de marcar gado. Zé Rosa tinha sido vaqueiro do finado coronel João Brito (João Fernandes de Brito). Trouxe o primeiro ferro que encontrou, o ferro utilizado no passado para marcar os bois de seu falecido patrão, que tinha as letras “J-B”, de João Brito. Além de Maria Marques, foram ferradas no mesmo dia outras duas mulheres, ambas ligadas também a soldados por casamento ou mancebia.
Por fim, quando observaram que as letras do ferro – “J-B” – eram as letras do seu nome, o cangaceiro decidiu levar o ferro como recordação de sua vingança, porém não há nenhum relato de fonte segura de que o tivesse utilizado outras vezes. Na área que lhe foi reservada, compreendendo terras de Ribeirópolis, Frei Paulo, Macambira, Pedra Mole, Pinhão e Carira, nunca se soube que ali Zé Baiano tivesse ferrado ninguém, seja homem ou mulher.
Amaury Correia fez uma pesquisa nos jornais e revistas da época para apurar se houve alguma notícia a respeito de outros casos de pessoas que tivessem sido ferradas por Zé Baiano, e concluiu: só houve aquele caso de Canindé. Amaury fala de notícias vagas de outras ferrações, mas todas sem comprovação.
Corisco é que quando fazia um refém tratava-o como “meu boi”. Dois integrantes do seu grupo – Arvoredo e Calais – ferraram várias pessoas nos sertões de Juazeiro, Jaguarari, Uauá e Várzea da Ema.
Houve quem dissesse que Zé Baiano “adquirira o hábito de ferrador” por ter sido traído pela mulher, a cangaceira Lídia. Porém tal explicação não procede, pois, seguramente, o caso de Lídia é posterior ao episódio de Canindé: as ferrações em Canindé foram em 1932, e a morte de lídia foi em 1934.
Também é pura lenda a sua fama de estuprador e desonrador de mulheres. Não há um caso sequer de tal prática efetivamente comprovado. Pelo contrário, Zé Baiano era um tipo moralista, de acordo com os padrões da época, e, para impor respeito no sertão, caía na palmatória toda mulher que ele encontrasse de cabelo curto, ombros nus, vestido decotado ou muito curto. Sua palmatória chamava-se Professora, pois servia para “dar educação a quem não tinha”. Outros cangaceiros que não toleravam ver mulher com cabelo curto e roupa provocante eram Mariano e Azulão – como, aliás, procediam em suas casas muitos pais e maridos...
Por ocasião da morte de Zé Baiano, ao entrevistar Antônio de Chiquinho, seu matador, o repórter Francisco de Matos conclui a matéria com a consideração de que, apesar de todas as maldades que lhe eram atribuídas, Zé Baiano “não fumava, não bebia, não deflorava, como atesta o testemunho de Antônio de Chiquinha”.
Lídia: amor e desdita
No segundo semestre de 1931, depois de uma viagem por Alagoas e Pernambuco para se reabastecer de munição, Lampião havia escondido a munição excedente na fazenda Maranduba, perto da Serra Negra, indo descansar nas imediações do povoado Poços, na entrada do Raso da Catarina. Ele conseguira também com seus amigos em Pernambuco algumas armas, porém a maior parte apresentava defeitos. Decidiu então levá-las para o seu amigo Venâncio Teixeira, residente em Olhos d’Água do Sousa, nas imediações de Santo Antônio da Glória – Venâncio era muito bom nesse negócio de armas velhas, deixava-as novinhas em folha.
No caminho, Zé Baiano começou a sentir dor de cabeça. Tinha febre. Tremia de frio em pleno meio-dia. Estava saindo um caroço no pescoço. Não suportava nem o chapéu na cabeça.
Lampião conhecia um velho chamado Luís Pereira, que morava no Salgadinho, ao lado da Serra do Padre. A mulher dele, Maria Rosa (dona Baló), era costureira e já havia feito muitas roupas para os cangaceiros. Lampião pediu ao velho que cuidasse do doente, enquanto o resto do bando prosseguia a viagem.
A casa de Luís Pereira tinha uma sala ampla, 3 quartos, cozinha espaçosa, e no fundo ficava o chiqueiro dos bodes, pegado a um tanque. Zé Baiano passou uns 15 dias ali. O tumor era tratado com remédios dos matos – chás e emplastros de ervas. Era bem cuidado por todos, inclusive pela filha caçula de Luís Pereira, chamada Lídia, uma linda garota de 15 anos. Quando ficou bom, o cangaceiro fugiu com a menina.
Lídia não foi propriamente raptada, mas, muito jovem, não sabia o que estava fazendo, e no mesmo dia, ao perceber a vida que teria pela frente, tendo de dormir nos matos e viver se escondendo como bicho, se arrependeu de ter saído de casa. Mas aí já era tarde.
Zé Baiano fazia de tudo para agradá-la. Cobria-a de presentes. Quando iam comer, ele reservava os melhores pedaços de carne para ela, cortava a carne em pedacinhos e punha-os na boca de sua beldade. Só tinha olhos para ela.
Nada, porém, era capaz de tirar da mente da garota a mágoa por ter sido arrancada do convívio de sua família. Não escondia de ninguém a revolta com o seu destino. No fundo, odiava Zé Baiano, o causador de sua desgraça.
Havia no bando um cangaceiro chamado Ademórcio, que Lídia conhecia desde criança, nascido e criado no Arrastapé. No bando, ele recebera o apelido de Bentevi. Aquele era o rapaz com quem ela gostaria de viver, e se ambos não tivessem sido arrastados para o cangaço poderiam, quem sabe, ter casado, pois seus pais eram amigos. Com o tempo, Lídia e Bentevi passaram a corresponder-se.
Encontravam-se às escondidas sempre que Zé Baiano estava viajando.
Lídia Pereira de Sousa foi possivelmente a mais bonita das mulheres que participaram do cangaço. Era uma morena cor de canela, de cabelo liso, rosto bem delineado, lábios carnudos, olhos negros, com uma dentadura que parecia um colar de pérolas.
Um cangaceiro chamado Coqueiro apaixonou-se por ela. Vivia seguindo-lhe os passos. Certo dia, viu-a mantendo relações sexuais com Bentevi. Coqueiro deixou que os dois terminassem o ato. Bentevi vestiu-se, foi embora. Lídia ficou só. Então, Coqueiro apresentou-se, dizendo:
– Eu vi tudo, do cumeço até o fim. E eu quero tamém...
Lídia refugou:
– Vai-te pros inferno, cabra nojento! Nun tá veno qui eu nun me passo pra um canaia da tua marca? Nun seja besta!
– Ou resorve ou vou contá tudo a Zé Baiano... E tem qui sê agora...
– Pode ir contá até pro diabo! Eu já diche qui não, e pronto!
Isto foi na segunda semana de julho de 1934. O bando estava acoitado perto de Poço Redondo, nas Pias das Panelas, junto ao Riacho do Quatarvo, em terras da fazenda Paus Pretos do coronel Antônio Caixeiro. Lampião tinha chegado de Alagadiço, onde havia matado um filho de Cazuza Paulo. Zé Baiano havia ficado por lá para fazer umas “cobranças” junto a fazendeiros daquela região. Quando ele chegou às Pias das Panelas, Coqueiro decidiu contar o que tinha visto. À noite, os cangaceiros estavam sentados no chão, uns vinte ou trinta, inclusive as mulheres, em volta do fogo onde assavam carne de bode. O delator expôs o que viu, omitindo, porém, a parte que o comprometia. Zé Baiano franziu a testa, os olhos arregalados, como se não estivesse escutado direito, e rosnou para a companheira:
– O qui esse sujeito tá dizeno é verdade, Lida?
– É verdade, Zé – sustentou Lídia, com voz firme. – Só qui esse canaia nun diche a histora toda... Ele dexou de dizê o preço qui izigiu pelo segredo. Ele quiria qui eu desse a ele tamém, pra nun lhe contá. Se eu tenho qui morrê, qui morra, mais um cabra safado desse nun me come!
Um silêncio de chumbo caiu sobre o acampamento. Zé Baiano ficou olhando para Lampião, aguardando ordens.
Lampião levantou-se, andou de um lado para outro, remoendo o terrível problema. Depois, sentenciou:
– O causo dela aí o cumpade Zé Baiano é qui resorve. Ela é dele, faça o qui achá qui deve fazê.
Fez uma pausa, ajeitou os óculos, e continuou:
– Agora, Coquero e Bentevi é cum a gente mermo. Gato, mate esses cabra!
Gato puxou o parabelo, aproximou-se de Coqueiro e deu-lhe um tiro na cabeça. Coqueiro, colhido de surpresa, não esboçou nenhuma reação. Não teve tempo sequer de pedir clemência.
Chegada a vez de Bentevi, percebeu-se que ele havia fugido. Os cabras queriam ir procurá-lo, mas Lampião mandou que tivessem calma:
– Deixem ele. Bentevi é subordinado a cumpade Virgínio, qui nun tá presente. Vou dexá qui ele dicida a sorte desse fio dũa égua.
Zé Baiano mandou que Demudado amarrasse Lídia num pé de imburana. Ele, que já supliciara tantos homens e mulheres com a sua palmatória de baraúna, de repente estava sem saber o que fazer. Lídia era tudo para ele. Passou o resto da noite acordado, sem falar com ninguém. Quando o dia amanheceu, pegou um cacete, foi até o pé de imburana, desamarrou a mulher e matou-a a pauladas, quebrando-lhe vários ossos. Lídia não emitiu uma palavra sequer, não gritou, nem ao menos gemeu. Como arremate, Zé Baiano esmagou a sua cabeça, como se faz com uma cobra. Sangue e massa cefálica esguicharam pela boca, narinas, olhos e ouvidos.
Depois, sem pedir ajuda a ninguém, o cangaceiro cavou uma cova rasa, enterrou-a e, não suportando mais, chorou.
Junto ao pé de imburana, no sangue coagulado, começou a juntar formigas.
O povoado Alagadiço
Na divisão do reino do cangaço, coube a Zé Baiano parte dos atuais municípios de Ribeirópolis, Frei Paulo, Macambira, Pedra Mole, Pinhão e Carira, em Sergipe. Seu coito predileto era um serrote próximo do povoado Alagadiço.
Zé Baiano se afeiçoou pelo Alagadiço por duas razões. A primeira era de ordem sentimental, pois estava de olho numa filha de Antônio de Chiquinho. A segunda razão era de ordem estratégica, haja vista que o povoado ficava numa região de serras, com muitas matas e esconderijos naturais.
Esta última tinha sido também a razão pela qual, no passado, tinham sido atraídos para aquele pé de serra os escravos fugidos dos engenhos da Cotinguiba e outras pessoas perseguidas pela justiça. Com efeito, Alagadiço foi originariamente um quilombo. Os antigos moradores viviam em palhoças feitas de galhos de árvores e cobertas de palhas de coqueiro. As primeiras casas foram construídas por João Pereira da Conceição e Quinca Rego, considerados os fundadores do povoado, no final do século XIX. Mesmo depois da Abolição da Escravatura, o local continuou com sua fama de quilombo, ponto de refúgio de foragidos de toda espécie. Um desses foragidos foi um homem chamado João Sabino dos Santos.
João Sabino chegou ali em 1897. Era um sujeito misterioso. Ele e a esposa eram muito reservados. Não diziam de onde tinham vindo. Porém os moradores terminaram descobrindo que se tratava de um alferes que havia desertado das tropas republicadas enviadas a Canudos, no sertão da Bahia, para combater o beato Antônio Conselheiro – ele fizera parte da terceira expedição, comandada pelo coronel Moreira César, que morreu em combate, morrendo também poucas horas depois seu substituto, o coronel Pedro Tamarindo. Depois da destruição do arraial de Canudos, em outubro de 1897, o governo passou a procurar os desertores para puni-los.
Alguém o denunciou e uma força foi enviada para prendê-lo. João Sabino estava em casa quando a força chegou. Não tendo como fugir, vestiu sua farda, pôs todos os petrechos de alferes que conservava guardados e foi entregar-se, enquanto a esposa se apegava com Nossa Senhora da Conceição, prometendo construir uma capela se o marido escapasse daquela atribulação. Quando ele se apresentou, uniformizado, com aquela farda estranha, cheia de debruns, galões, distintivos e enfeites, os soldados se intimidaram e prestaram continência. O cabo que comandava o troço considerou que não podia prender uma autoridade de patente superior. Terminaram fazendo amizade com o casal. João Sabino deu uma festa, reuniu os moradores, a soldadesca amanheceu o dia dançando ao som de gaitas e zabumba, com o acompanhamento de um instrumento nunca visto por ali – uma corneta.
A mulher de João Sabino, dona Angélica dos Santos, assegurava que o marido não foi preso graças a Nossa Senhora da Conceição. Cumprindo a promessa feita, mandou construir uma capela.
Por volta de 1930, o arraial estava em fase de grande progresso. Por questões políticas, o padre Madeira, vigário de São Paulo (hoje, Frei Paulo), chegou a mudar-se para o Alagadiço. O homem mais rico do lugar, Zezé Melquíades, importou do estrangeiro uma máquina de descaroçar algodão, chamada “bolandeira”. Um irmão dele, que era padre – padre Elpídio Teixeira –, tendo estudado música em Roma, veio passar uns tempos no povoado e trouxe o seu harmônio. Homem culto, ensinava aos moradores a cantar hinos a três e quatro vozes. Os jovens recebiam lições de música, aprendiam a solfejar, a tocar instrumentos. O padre Elpídio dirigia peças teatrais, chamadas “dramas”. Organizava folguedos populares, especialmente um fandango conhecido como marujada, que noutros lugares é conhecido como chegança, um auto popular baseado nas tradições ibéricas, tendo por tema as lutas entre cristãos e mouros, com personagens vestidos de marinheiros, cantando e dançando ao som de instrumentos de corda, ao estilo da Nau Catarineta, xácara portuguesa de temática marítima. Ele e o padre Madeira (José Antônio Leal Madeira), que era português, eram homens comprometidos com a cidadania. Nas festas cívicas e religiosas, ensinavam as pessoas a discursar, a declamar versos. O povoado chegou a ser visitado pelo bispo de Aracaju, Dom José Tomás Gomes da Silva.
Esse surto de progresso foi interrompido quando Lampião iniciou seu assédio ao povoado. Muitos moradores se mudaram para São Paulo (Frei Paulo) e Itabaiana. Os que ficaram tiveram de sujeitar-se à condição de coiteiros. As escolas deixaram de funcionar. Aurelino Guimarães, o subdelegado, que tinha um pequeno comércio no povoado, tendo de fazer compras em Frei Paulo para reabastecer o estabelecimento, sofreu vários assaltos na estrada e sua casa comercial foi saqueada. Desgostoso, mudou-se para Itabaiana. Zezé Melquíades, o homem mais rico do lugar, vendeu a fazenda a Donana Rego e foi embora também.
Alagadiço nunca mais seria o mesmo.
Até o padre Madeira esteve em apuros.
Certo dia, viajando a cavalo para o povoado Altos Verdes, aonde ia celebrar missa, ao passar pela fazenda Lagoa Nova, quando parou para abrir a cancela da fazenda foi abordado pelo bando de Zé Baiano. O vigário protestou:
– O que é isso? Será que não posso mais levar a palavra de Deus neste sertão? Eu sou o padre Madeira!
Zé Baiano tirou o chapéu de couro e pediu a bênção:
– A bença, seu pade. Me perdoe. Eu nun sabia qui era seu vigaro.
– Está abençoado em nome de Deus, mas procure deixar essa vida criminosa para que possa salvar a sua alma, rapaz!
O próprio cangaceiro foi abrir a cancela.
O amigo Antônio de Chiquinho
Depois da morte de Lídia, Zé Baiano fixou-se em Alagadiço. Ele viajava pelos seus domínios, mas seu ponto de referência era Alagadiço. Costumava acoitar num serrote que até hoje é conhecido como Coito. Viria a ser morto perto dali, na fazenda Lagoa Nova, em 1936, por cinco rapazes liderados pelo coiteiro Antônio de Chiquinho.
Antônio de Chiquinho, depois de Zezé Melquíades e Aurelino Guimarães, era o homem mais importante de Alagadiço. Quando Maurício Ettinger foi intendente de São Paulo (Frei Paulo), em 1931, Antônio de Chiquinho foi nomeado comissário do povoado Alagadiço. O comissário municipal tinha a incumbência de resolver no povoado todos os negócios locais em nome do intendente – era uma espécie de subintendente.
Muito se especulou na época acerca dos motivos que levaram Antônio de Chiquinho a matar Zé Baiano, seu amigo do peito. A razão óbvia era a pressão da polícia, que chegou a prendê-lo três vezes por acoitar cangaceiros. Depois se veio a saber do interesse de Zé Baiano por uma de suas filhas. Mas fala-se também das vantagens pecuniárias decorrentes da morte do famoso cangaceiro.
Zé Baiano talvez fosse o mais rico dos cangaceiros, depois de Lampião. Havia amealhado uma fortuna em dinheiro vivo, ouro e objetos vários. Dizem que tinha mais de setecentos contos de réis enterrados em garrafões de vidro, em algum lugar na Serra das Campinas. Não jogava baralho, como os outros, para não perder dinheiro. Era extremamente sovina. E agiota. Emprestava dinheiro a fazendeiros de todo o Estado, a senhores de engenho da zona dos canaviais e a grandes comerciantes de Aracaju. Era bem relacionado. Cansou de ir a Frei Paulo (ex-São Paulo), disfarçado, onde ficava até altas horas da noite conversando com grandolas da região.
Passeava de automóvel pela cidade na fubica de Gileno Ferreirinha – que ia buscá-lo em Alagadiço – sem que os moradores desconfiassem que ali estava o temido cangaceiro. Chegou a assistir ao encerramento da festa do padroeiro, São Paulo, na praça da igreja em construção, da janela de Sinhá Dondom, viúva do Tenente Manezinho, na esquina da praça com o Beco do Mamão. Avalia-se que, por ocasião de sua morte, o total de dinheiro emprestado, somente a casas comerciais de Aracaju, girava em torno de uns 200 contos de réis.
Quem instruiu Antônio de Chiquinho sobre como proceder para matar Zé Baiano foi o comerciante Antônio Conrado, que era compadre do coiteiro. Antônio Conrado de Sousa morava em Aracaju, mas tinha vínculos familiares e propriedades em Carira. Dois anos antes, a 10 de março de 1934, havia sido assassinado um tio dele – tio e sogro –, o velho Martinho de Sousa Freire, dono das fazendas Venturosa e Espinho, nas imediações do povoado Cipó-de-Leite. Martinho vinha da fazenda Espinho para o Carira acompanhado de seu vaqueiro Joãozinho de Vítor e mais duas pessoas: o pai e a esposa do vaqueiro. Os cangaceiros estavam emboscados no oitão da sede da fazenda São Luís, de Janjão de Tertino. Zé Baiano liberou a mulher do vaqueiro e levou os outros para o fundo da casa. Os três foram mortos à queima-roupa – cada um recebeu um tiro no ouvido.
Outra vítima, também em 1934, foi um homem chamado Zé Galdino, dono da fazenda Cachoeira, na estrada velha de Carira para Bebedouro (Coronel João Sá), assassinado quando tirava leite no curral.
Em abril de 1936, Zé Baiano matou Pedro Chico, que morava em Fazendinha, acima de Altos Verdes: como o homem custasse a arranjar certa quantia, os cangaceiros amarraram-no a um cavalo e puseram o animal para correr, e depois o fuzilaram.
Atribui-se também a Zé Baiano a morte de 6 pessoas naquele mesmo ano, na fazenda Bom dos Aires (Buenos Aires). Ele costumava pedir dinheiro a Dominguinho de Vito, dono da fazenda Boa Vista, vizinha da Chafardona, ao poente de Monte Alegre. Certo dia, ele mandou Dominguinho fazer umas compras, porém não lhe deu o dinheiro. Dominguinho foi levar as compras. Cansado de ser explorado pelo bandido, no mesmo dia ele informou à polícia o local do coito e ainda serviu de guia à tropa. Porém Zé Baiano, assim que recebeu as encomendas, mudou de local. Quando a polícia chegou, o lugar estava limpo. Os cangaceiros estavam acoitados perto e viram tudo. Jurado de morte, Dominguinho fugiu para Itabaiana. Zé Baiano vingou-se na família do coiteiro. O pai de Dominguinho, o velho Vito, dono da fazenda Bom dos Aires, nas imediações da Lagoa do Roçado, foi pego na roça. Os cangaceiros mataram o velho Vito, 4 filhos e um genro. Conta-se que no caminho de casa o chapéu do velho caiu com o vento e ele queria pegá-lo. O cangaceiro disse: “Dexe aí. Você nun vai mais pricisá de chapéu”.
“Se acabou-se o home de Segipe”
A rotina era essa: Zé Baiano extorquia dinheiro de uns para emprestar a outros, a juros.
Na região de Alagadiço, quem mais devia a Zé Baiano era Ioiozinho Capitinga, dono da fazenda Jiboia. Havia poucos dias, o cangaceiro tinha-lhe emprestado 20 contos de réis.
Antônio de Chiquinho também devia dinheiro a Zé Baiano. Não se sabe quanto. Segundo Alcino Costa, estes empréstimos geraram a suspeita de que a traição do coiteiro tivesse sido motivada por interesses de seus devedores, entre eles Ioiozinho Capitinga e o próprio Antônio de Chiquinho. “O que se sabe de real e verdadeiro” – escreveu Alcino Costa – “é que a morte do cangaceiro chega no momento em que Ioiozinho, por exemplo, mais que depressa se desfaz de seus burros e compra a maior loja de tecidos de Frei Paulo; tudo fazendo crer que o dinheiro de Zé Baiano o empurra para o caminho da riqueza. Muda-se para a capital, Aracaju, aumentando a sua grande fortuna com os lucros obtidos com a Casa da Seda. Tempos depois, vende a loja de Frei Paulo ao empregado Justiniano Batista de Oliveira e deixa Sergipe, indo residir no oeste da Bahia com o ramo da pecuária.”
Alcino Costa prossegue dizendo que Antônio de Chiquinho, que era o homem da maior confiança de Zé Baiano, fazia de tudo para agradá-lo, promovia bailes e festas em sua casa. “As reuniões são quase todas na fazenda Baixio; pode-se dizer que eram festas familiares, tão grande era a afinidade e a intimidade dos bandidos com aquele povo”. Depois de falar da forma bárbara como o cangaceiro havia matado sua mulher, Lídia, passando dias amargurado, pois sem dúvida era apaixonado pela morta, a mais bonita de todas as cangaceiras, o autor prossegue: “Mas agora o seu coração de homem estava amando. Amava e queria justamente uma das filhas do amigo Antônio. Moça também bonita, amorenada, alta e esbelta, cabelos grandes e pele macia. O cangaceiro a cada dia mais deseja aquela mulher”.
Felipe de Castro vai além, afirmando que Zé Baiano se amancebou com uma filha de Antônio de Chiquinho, chamada Zefa.
Sujeito destemido, conceituado, Antônio de Chiquinho vivia incomodado com o futuro de sua filha, uma menina, que corria o risco de ser arrastada para a perdição sem volta. Juntando tudo, o coiteiro concluiu que matando Zé Baiano se resolviam três questões: seu problema com a polícia, a confusão com sua filha e a quitação das dívidas.
Há exageros e equívocos nessas informações. Antônio de Chiquinho não tinha nenhuma filha chamada Zefa. As filhas de Antônio de Chiquinho chamavam-se Lindinalva (Lindô), Luísa, Salvelina (Salva) e Avilete. A mais velha era Lindô, e a mais bonita era Luísa. O interesse do cangaceiro seria por Luísa. Porém os antigos moradores de Alagadiço não confirmam nada que desabone aquelas moças. O que havia era muito fuxico, e talvez inveja, pois Zé Baiano era rico e muitas jovens eram loucas para se arranjar com ele.
Quanto às insinuações envolvendo dinheiro, não se tem notícia se Ioiozinho Capitinga, Antônio Franco e os grandes devedores ofereceram ou deram alguma vantagem pecuniária ao coiteiro pelo seu “trabalho”.
Seja como for, uma série de fatores contribuiu para que Antônio de Chiquinho tomasse a decisão que tomou. Ele vinha sendo vigiado e perseguido pela polícia. Depois de ser preso duas vezes, ele passou uns tempos escondido na fazenda de Totonho do Mulungu (Antônio Joaquim de Andrade), foi para a Usina Central e em seguida para a Usina São José, na Cotinguiba. Quando voltou ao Alagadiço, foi preso novamente pela volante de Zé Rufino e levado para Carira, dizendo o comandante que ia enviá-lo para Jeremoabo, na Bahia. Donana, a esposa de Antônio de Chiquinho, viajou para Laranjeiras a fim de pedir a Zezé do Pinheiro para interceder pelo marido junto ao governador do Estado. Zezé do Pinheiro e o coronel Antônio Franco, poderosos usineiros da Cotinguiba, conseguiram barrar a ida do coiteiro para a Bahia – no último minuto, chegou a Carira um telegrama do interventor federal ordenando a liberação do preso.
Consta que o plano de eliminação de Zé Baiano foi combinado por Antônio Conrado com o tenente Afonso Antônio da Mota, que era o comandante das forças volantes sergipanas. O tenente queria envolver a polícia no plano, mas Antônio de Chiquinho não concordou – não confiava em macaco.
Antônio de Chiquinho tinha um pequeno comércio e era marchante. Havia sido preso pela terceira vez em abril de 1936. Ao ser solto, ele voltou a Alagadiço disposto a matar Zé Baiano, de acordo com o plano traçado por Antônio Conrado.
O mais difícil era a escolha de outras pessoas para ajudá-lo, pois Zé Baiano nunca andava sozinho. Antônio precisava procurar uns quatro ou cinco amigos da maior confiança, e estes teriam de ser cabras dispostos, que não fossem se acovardar na hora da verdade. Primeiro pensou em Pedro de Nica, um sujeito valentão, temido naquelas paragens – ninguém sabe como já não tinha se tornado cangaceiro. Pensou também em Pedro Guedes, um rapagão enorme, de 24 anos.
A seleção foi mais fácil do que Antônio esperava. Pedro de Nica e Pedro Guedes disseram que topavam. Os outros escolhidos eram empregados de Antônio de Chiquinho: Toinho (Antônio de Júlia) e Dedé de Lola, que trabalhavam em sua fazenda, e Birindim, seu ajudante de marchante.
Escolhidos os companheiros, passou-se a aguardar uma oportunidade propícia.
Zé Baiano tinha uma grande e respeitosa estima pela professora Prazeres, que lecionava na fazenda Altamira, de Antônio de Inês. Ele costumava acoitar nessa fazenda. No início de junho, Antônio de Chiquinho soube que a Festa de São João na Altamira ia ser um sucesso. Na zona do Guedes e das Pias só se falava então no baile da professora. Com certeza Zé Baiano estaria lá. Antônio de Chiquinho pensou em surpreender Zé Baiano durante a festa. O problema é que nessas festas costumavam aparecer também os grupos de cangaceiros chefiados por Zé Sereno e Canário. Não ia dar certo. A coisa teria de ser feita ou antes ou depois.
Foi quando, no dia 3 de junho de 1936, quarta-feira, Antônio recebeu um recado de Zé Baiano dizendo que estava precisando de mantimentos, os de costume – jabá, feijão, farinha, café, sal, açúcar, fumo, rapadura, querosene...
Antônio de Chiquinho decidiu que era chegada a hora. Mas precisava saber quantos cangaceiros estavam com Zé Baiano. Para verificar isso, enviou Dedé, numa missão aparentemente inocente: Dedé iria dizer ao cangaceiro que Antônio de Chiquinho estava custando a levar a encomenda porque vinha sendo vigiado pela polícia, mas no domingo à tarde, depois da feira, a encomenda seria entregue, sem falta.
Dedé encontrou Zé Baiano na fazenda Preá. Deu o recado. Notou que ele estava com apenas dois cangaceiros, Demudado e Chico Peste.
Ao saber que Zé Baiano estava somente com dois cabras, Antônio de Chiquinho animou-se. Ia ser fácil.
No domingo, 7 de junho de 1936, Zé Baiano, acompanhado de Demudado, Chico Peste e um cangaceiro novato chamado Acilino, passou de manhã pela fazenda Altamira para saber como iam os preparativos para a festa. A professora Prazeres o recebeu com alegria, disse que ele não poderia faltar e mandasse chamar também os primos de Poço Redondo. Zé Baiano disse que viria, com certeza, e ia mandar chamar Zé Sereno e Manoel Moreno. Zé Baiano tinha encomendado presentes para algumas moças. Só pelo feitio de um vestido tinha pagado 30 mil-réis. Despediu-se da professora e foi para a fazenda Baixio, do amigo Antônio de Chiquinho.
Antônio de Chiquinho não se encontrava na fazenda porque, sendo domingo, dia de feira no povoado, ele estava ocupado, pois era marchante. Porém, ao dar meio-dia, Zé Baiano começou a ficar desconfiado da demora do coiteiro, pois a feira de Alagadiço terminava antes do meio-dia, Antônio de Chiquinho só matava um carneiro e um porco, e portanto já devia estar na fazenda. Zé Baiano deixou um recado para que Antônio de Chiquinho fosse encontrá-lo na fazenda Lagoa Nova – a Lagoa Nova pertencia justamente a Pedro de Nica, um dos homens que Antônio de Chiquinho tinha convidado para a melindrosa empreitada.
Antônio de Chiquinho e os companheiros chegaram ao Baixio logo depois com as encomendas. Ao tomarem conhecimento de que os cangaceiros tinham ido para a Lagoa Nova, rumaram para lá. Conheciam o esconderijo, que ficava não muito longe da estrada, a meia légua do Baixio.
Antônio ia um pouco apreensivo. Desde que fora preso, nunca mais tinha se encontrado com Zé Baiano.
Além dos mantimentos, os coiteiros levavam também uma pá e uma picareta. Perto da Lagoa Nova, esconderam as ferramentas no mato. Apenas Antônio de Chiquinho ia armado – portava um parabelo. Dedé levava um facão metido na bainha, preso na cintura.
Deixaram a estrada e seguiram por uma vereda do gado. Logo adiante, avistaram os cangaceiros, sentados no chão, debaixo de umas baraúnas. Zé Baiano e seu cangaceiro de confiança, Demudado, vieram ao encontro dos coiteiros. Zé Baiano estava aborrecido com a demora. Antônio justificou-se explicando que seus passos estavam sendo vigiados, tinha sido preso...
– Não, Antonho, você nun tem discupa, andou munto má!
Demudado emendou:
– Cuma é qui você fais nóis isperá nun sei quantos dia? Tá pensano o quê? E pere aí: pur qui é qui aquele cabra tá cum um facão?
Dito isto, Demudado tomou o facão de Dedé e deu-lhe uns safanões, segurando-o pela abertura da camisa, chegando a rasgar a jabiraca que o coiteiro usava no pescoço. Zé Baiano também queria saber para que Dedé queria o facão.
Dedé explicou que era carreiro e precisava tirar uns paus a fim de fazer uns canzis e fueiros para o carro de bois. A resposta não convenceu Demudado, que objetou:
– Mais qui mintira é essa, cabra? Hoje é dumingo... Ninguém trabaia no dumingo! Nun é pecado?
– Cortá ũas varinha nun é trabaio... – justificou-se Dedé.
Antônio de Chiquinho contemporizou:
– Voceis tão fazeno ũa tempestade num copo d’água. Pra qui diabo serve um facão? Acho qui Demudado nun pricisava dismoralizá o meu carrero...
– Nóis nun gosta de vê coitero armado! – disse Zé Baiano.
– Apois eu tou armado – avisou Antônio de Chiquinho. – Tou cum meu parabelo.
– Ora, Antonho, você é meu amigo! Você pode! Agora, me diga ũa coisa: qui diabo tá haveno hoje, Antonho? Pur que você veio cum tantos home?
– Oxente! E cuma era qui eu pudia trazê essas coisa toda sozim? Eu nun sou jegue não... Eles viero pra me ajudá...
– Hum! Já vi você sozim carregá munto mais coisas, Antonho!
– É qui eu tou ficano véio... – brincou Antônio de Chiquinho.
Todos riram. Zé Baiano conformou-se. Estava entre amigos. Conhecia Pedro Guedes, Toinho e Birindim. Só nunca tinha visto Pedro de Nica. Perguntou quem era. Antônio de Chiquinho respondeu que Pedro de Nica era justamente o dono daquele lugar onde eles estavam, e era gente de confiança, tinha vindo para ajudar. Zé Baiano comentou:
– É... cabra forte... dava um bom cangacero...
Antônio de Chiquinho aproveitou a oportunidade e observou, meio desinteressadamente:
– Tou notano qui você tá cum um cabra novo. Eu só cunheço Demudado e Chico Peste. Quem é o outo?
Zé Baiano respondeu que o novato se chamava Acilino. Era da fazenda Pulgas, ao lado das Cotias, na zona do Gameleiro. Tinha ingressado no bando no dia anterior. Parente de Chico Peste, nascido e criado no Bandeira.
Passados aqueles momentos de tensão, todos relaxaram. Antônio de Chiquinho mandou que os companheiros acendessem o fogo, pois ele tinha trazido uma buchada de carneiro já pronta, bastava esquentar. Tinha trazido também três litros de conhaque.
O plano era este: embriagar os cangaceiros para facilitar o ataque; Antônio de Chiquinho seguraria Zé Baiano, Toinho e Birindim pegariam Demudado, e Dedé de Lola ficaria com Chico Peste; bastava agarrá-los, para que Pedro Guedes e Pedro de Nica, que ficavam sobrando, pudessem matá-los. O problema é que encontraram um cangaceiro a mais. Enquanto acendiam o fogo, numa trempe de pedras, Antônio de Chiquinho falou baixo para os companheiros:
– Tem nada não. Pedo Guede ajuda Toinho, e Birindim fica cum o discunhicido. Pedo de Nica mata tudo sozim.
Alegando que estava fazendo muito calor, Antônio de Chiquinho tirou a jabiraca do pescoço e depois a camisa. Lutar sem camisa era mais fácil. Tirou também o parabelo e colocou-o ao pé de uma árvore. Como haviam combinado, os companheiros também se queixaram do calor e tiraram suas camisas.
Antônio de Chiquinho abriu um litro de conhaque e foi o primeiro a tomar um trago, para mostrar que a bebida não tinha veneno. A garrafa foi passando de mão em mão, cada um despejando a bebida na boca diretamente do gargalo, pois não havia copos ou canecos.
Só Zé Baiano não bebeu:
– Quero não. Bibida é coisa de gente rũim...
Quando a buchada começou a ferver, Antônio de Chiquinho tirou a panela do fogo, preparou o pirão e fez um molho com bastante pimenta. Cada homem encheu o seu prato. Sentaram-se nas sombras das árvores e foram comer. A essa altura, já estavam no segundo ou terceiro litro de conhaque. A bebida aumentava o apetite. Comiam com ganância, mastigando forte, como bichos. E haja conhaque.
O fato de Zé Baiano se manter sóbrio não era problema para Antônio de Chiquinho, porque, apesar de Zé Baiano ser um homem grandalhão e corpulento, não tinha força no braço direito, em virtude de um ferimento recebido tempos atrás.
Quando terminaram de comer, alguns se deitaram no chão para dormir. Outros continuaram sentados, proseando, contando lambanças, como era de costume. Zé Baiano mostrou a Antônio de Chiquinho um lindo punhal com incrustações de ouro, sendo o cabo e a bainha de prata, uma verdadeira obra de arte, presente de Lampião.
Conversa vai, conversa vem, Antônio de Chiquinho começou a cantar uma musiquinha que estava na moda, cuja letra tinha um trecho mais ou menos assim: “Ajoelha, Marica! / Mulher comprida / De cabeça seca. / Já soube / que estou nos braços de Marinete?”. Tinha sido combinado que esta seria a senha para o ataque. Antônio de Chiquinho pôs-se de pé e continuou cantando a musiquinha meio desafinado. Chico Peste, completamente bêbado, esparramou-se debaixo de um pé de esporão-de-galo e fechou os olhos. Os coiteiros aguardavam impacientes o momento em que seriam cantados os versos da senha combinada. No ponto certo, Antônio de Chiquinho caprichou na letra:
– Ajueia, Marica, muié cumprida, de cabeça seca, já soube qui tou nos braço de Marinete?
E aí o mundo fechou. Antônio de Chiquinho e Pedro de Nica voaram em cima de Zé Baiano, ao tempo em que Pedro Guedes e Toinho se atracavam com Demudado, enquanto Birindim se engalfinhava com Acilino, e Dedé pegava Chico Peste.
Parecia uma briga de touros. Tendo ajudado Pedro Guedes a dominar Demudado, Toinho deu uma cacetada em Chico Peste, que conseguira desvencilhar-se de Dedé. Dedé correu para pegar o facão, e Chico Peste precipitou-se atrás dele, com o punhal na mão. Toinho gritou:
– Coidado, Dedé!
Dedé voltou-se, brandiu o facão, golpeando o cangaceiro no pescoço. Chico Peste caiu, e Dedé deu-lhe mais três facãozadas, acabando de matá-lo. Correu em seguida para socorrer Birindim, que estava atracado no chão com Acilino, e enfiou o punhal no cabra, à altura do tórax.
Toinho e Pedro Guedes estavam tendo dificuldades com Demudado. Pedro de Nica deixou Zé Baiano com Antônio de Chiquinho e foi socorrer os companheiros. Toinho aplicou quatro punhaladas em Demudado. Pedro Guedes deu um empurrão, e Demudado caiu, se estrebuchando, arrastando-se, tentando alcançar o fuzil. Pedro de Nica acabou de matá-lo, enfiando-lhe o punhal bem na veia do pescoço.
Antônio de Chiquinho havia dominado por completo Zé Baiano, já que o cabra só tinha força no braço esquerdo, pois o direito só servia para manejar o fuzil, era meio dormente. O cangaceiro esbatia-se no chão, esperneava-se, urrando como uma fera no laço, com Antônio de Chiquinho montado sobre ele, ajudado agora pelos companheiros. A camisa de Zé Baiano estava toda rasgada. A luta tinha sido terrível, e o cangaceiro, cansado, aflito, molhado de suor, aos berros, subjugado pelos coiteiros, implorava que o soltassem, prometendo que nada de mal faria a eles, lhes daria o tudo o que tinha.
– Cadê o seu dinhero?! – perguntou Antônio de Chiquinho.
– Tá tudo nos meus bolso. Tem uns seis conto e pouco.
– Só? E o resto? Onde tá o resto?!
– Nun tenho mais aqui purque meus dinhero tão imprestado.
– Deixem ele ficá im pé – disse Antônio de Chiquinho aos companheiros. – Vamo fazê um trato, Zé Baiano. Se você diché os nome de todo mundo pra quem você imprestou dinhero e quanto imprestou a cada um nóis lhe sorta.
– Eu imprestei esta sumana vinte conto a Ioiozinho Capitinga e mais vinte a outos fazendero.
– Diga os nome – ordenou Antônio de Chiquinho –. Eu quero qui você diga o nome de um pur um, e quanto foi qui imprestou.
O cangaceiro passou a citar nomes e valores. Era muita gente. Uma fortuna.
Antônio de Chiquinho fez uma proposta aos companheiros:
– Vamo prendê ele num quarto bem fechado qui eu tenho na mĩa casa, nóis fais ele ficá sem roupa e obriga ele a iscrevê ũas carta pros fazendero, e daqui uns vinte ou trinta dia nóis mata ele...
Pedro de Nica deu sinal de que concordava com a proposta. Zé Baiano viu ali uma forma de ganhar tempo. Prometeu:
– Amanhã vou recebê setenta conto e dou tudo a voceis. Me sortem!... Me sortem!... Pelo amô de Nossa Sinhora, me sortem!...
Então Pedro Guedes se postou na frente do cabra e disse:
– Ô seu peste, cê tá lembrado da morte de Moisés, fio de Cazuza Paulo? Cê teve pena dele, quando sangrou o rapais sem nĩhum mutivo?
– Eu tenho munto dinhero! Dou tudo a voceis! Vou dexá voceis rico! Eu prometo qui vou simbora daqui pra bem longe, dexo o cangaço! Antonho, pelo amô de Nossa Sinhora, me sarve! Se alembre de nossa amizade! Quano foi qui eu lhe fartei cum a palava? Pelo amô de Deus, Antonho, nun me mate!...
Antônio de Chiquinho era um homem bom. Seu coração amoleceu ante os rogos do amigo. Estava propenso a soltá-lo. Ponderou:
– Nóis pudia dexá esse cabra ir simbora...
– Nada disso! – gritou Pedro Guedes.
E, antes que Antônio de Chiquinho tomasse qualquer atitude maluca, Pedro Guedes aplicou uma punhalada no cangaceiro, e Birindim, outra, ambas na clavícula. Zé Baiano, ao cair, gemeu, dizendo:
– Matou-me agora...
O cangaceiro tentou levantar-se, mas Pedro de Nica e Dedé o seguraram pelas pernas e o atiraram de novo ao chão, enquanto Birindim lhe aplicava várias punhaladas no peito. Em seus estertores, ofegando, de olhos esbugalhados, Zé Baiano murmurou:
– Se acabou-se o home de Segipe...
Foram estas suas últimas palavras, pois logo em seguida recebeu mais duas punhaladas de Birindim. Pedro Guedes pegou o facão de Dedé e cortou o pescoço do cangaceiro.
A luta durara cerca de 5 minutos. Em toda parte, a terra estava revolvida, o mato estava amassado, e sentia-se um cheiro de sangue insuportável.
Eram 4 horas da tarde do dia 7 de junho de 1936.
Os matadores diziam que em dinheiro só encontraram nos bolsos de Zé Baiano pouco mais de seis contos, informação esta pouco confiável. Além do dinheiro, eles recolheram 3 rifles, vários punhais, sendo um com cabo e bainha de prata, um parabelo e outras pistolas e revólveres, muita munição e diversos artefatos de ouro. Porém isto é o que foi declarado oficialmente.
Falta muita coisa nessa relação. A bandoleira do fuzil de Zé Baiano era toda enfeitada de moedas de ouro. Seu chapéu tinha 65 medalhas de ouro na testeira e duas alianças na barbela. Isso tudo sumiu. Na relação dos bens apresentados às autoridades não constam os bornais dos cangaceiros. Ora, era nos bornais que os cangaceiros carregavam seus pertences de valor, especialmente dinheiro. Cada cangaceiro costumava portar quatro bornais. Falou-se que em vez dos 6 contos e quebrados que foram declarados, somente de Zé Baiano os matadores se apossaram de mais de 25 contos de réis.
Os quatro corpos foram enterrados num formigueiro, onde a terra era fácil de ser cavada.
Terminado tudo, sujos de barro e sangue, os coiteiros limparam-se com o que sobrou do conhaque. A caminho do povoado, passaram por um tanque e se lavaram bem. Só à noite voltaram para casa. Os objetos dos cangaceiros foram guardados na casa da mãe de Birindim.
Combinaram guardar segredo, porque temiam o que poderia vir a acontecer quando Lampião soubesse do fato. Não só Lampião, mas também, e principalmente, Zé Sereno e Manoel Moreno, primos de Zé Baiano.
Sigilo suspeito
Zé Sereno, Diferente, Canário e Delicado tinham sido convidados por Zé Baiano para o São João da professora na fazenda Altamira, mas, como de costume, ficaram aguardando a confirmação, pois cangaceiro não fazia plano para o futuro, tudo era decidido na hora. Chegou o dia da festa, e nada de receberem o recado tão esperado. Desconfiados, não foram. Passaram o São João nas Capoeiras de Julião, em Poço Redondo.
A Festa de São João foi uma maravilha nas fazendas Altamira e São Mateus. Os sanfoneiros tocaram até o dia amanhecer, enquanto o foguetório rasgava o céu do sertão.
Em Alagadiço, Antônio de Chiquinho e os cinco companheiros resolveram comemorar a façanha, mas sem dizer a ninguém o que estavam comemorando. Fizeram uma fogueira na frente da igreja, para espantar o frio, e começaram a soltar foguetes, bebendo cachaça e assando milho verde nas labaredas. Logo começou a juntar gente. Vieram os tocadores de gaitas e zabumba. Moças e rapazes começaram a dançar. De repente, o furdunço improvisado se transformou na Festa de São João mais animada que já houve no povoado. Ninguém dormiu em Alagadiço naquela noite. Até os velhos saíram de suas casas para ver o que estava acontecendo.
Todo mundo sabia que Antônio de Chiquinho e os amigos gostavam de farra, mas daquela vez eles saíram das medidas. Só a mãe de Birindim era sabedora do motivo daquela comemoração. A velha terminou contando o fato a uma filha, mas pediu segredo. A filha, por sua vez, contou ao marido, Jovino Pereira, e, claro, também pediu segredo. Depois de beber umas quatro cachaças, Jovino Pereira ficou soltando fogo pelas ventas. Lá pelas tantas, um sujeito da fazenda São Mateus comentou:
– É, a festa tá boa mais eu vou pra casa, purque Zé Baiano pode chegá aqui a quarqué hora e bota nóis pra dançá nu...
Jovino, bêbado, soltou a língua:
– Mais cuma, home, se Zé Baiano tá morto e interrado? Tem mais de quinze dia qui Antonho de Chiquim matou ele...
– Antonho de Chiquim matou quem?! – perguntou Laurindo Gomes, dono da fazenda Cachoeira, que estava de orelha em pé, desconfiando daquela comemoração.
Jovino repetiu, e foi além:
– Zé Baiano tá morto e interrado na fazenda Lagoa Nova. Foi matado pur Antonho de Chiquim, Pedo Guede, Pedo de Nica, Toinho, Dedé e Birindim!...
Pronto, acabou-se a festa.
Em plena noite, dois fazendeiros, Chiquinho das Aroeiras e Antônio Campinas, foram com uns candeeiros ao local indicado e lá constataram: tinha uma coisa enterrada num formigueiro.
O fato foi comunicado ao delegado de São Paulo, Germino Góis. O sargento Epaminondas telegrafou para a capital e foi dar uma olhada no local da chacina.
Exumação e reconhecimento dos corpos
Em Aracaju, os homens do governo puseram as mãos na cabeça: quando Lampião soubesse ia arrasar Sergipe. Como havia dúvida quanto à veracidade da morte de Zé Baiano, mandaram exumar os corpos.
O próprio chefe de polícia do Estado, Osvaldo Nunes dos Santos, que era major do Exército, deslocou-se no dia 26 de junho até Alagadiço, levando o médico legista Dr. Carlos Meneses, peritos, jornalistas, fotógrafo e uma formidável escolta da Polícia Militar.
A essa comitiva juntaram-se muitos moradores de São Paulo. Em pleno inverno, muita chuva, a estrada era um atoleiro só. De Alagadiço para a Lagoa Nova todo mundo foi a pé. O local da luta ficou apinhado de curiosos. Todo mundo queria ver o desenterramento dos cangaceiros. Tinha gente até de Itabaiana.
A exumação dos corpos foi feita no dia 26 de junho de 1936 – 19 dias depois das mortes.
A cova era rasa, e logo a picareta trouxe a descoberto uma cabeça. Os corpos estavam amontoados uns sobre os outros. O coveiro levantou a cabeça pelos cabelos. Antônio de Chiquinho informou:
– Essa cabeça é de Zé Baiano. Os outo nóis nun cortou as cabeça não.
Quando retiraram o primeiro corpo, que não estava degolado, Antônio de Chiquinho disse:
– Esse aí é Acilino. Zé Baiano vai sê o úrtimo, tá pur baxo de todos.
O segundo corpo era o de Chico Peste. Depois, o de Demudado. E de fato Zé Baiano estava embaixo de todos. O médico mandou que tirassem as roupas de mescla azul dos cadáveres e jogassem água para remover a lama dos corpos. As roupas tiveram de ser cortadas de facão, pois os corpos tinham inchado. O ar era quase irrespirável, apesar da água-de-colônia e outros perfumes e desinfetantes que as pessoas usavam a fim de assistir aos trabalhos.
Para ajudar na identificação dos corpos, haviam mandado chamar várias pessoas que conheciam os cangaceiros. Trouxeram inclusive Marcionílio Soares, de Carira, que apesar de ser o subdelegado daquele povoado era um notório coiteiro de Lampião. Os corpos estavam tumefatos, nem pareciam gente. Porém Marcionílio foi preciso:
O médico legista começou a fazer as devidas anotações em sua prancheta: faltava na boca de Zé Baiano o incisivo mediano direito superior; seu corpo...
Marcionílio afastou-se, engulhando. Nem o diabo aguentava o fedor.
O corpos foram fotografados de um a um pelo fotógrafo Artur Alves Costa. Foi batida uma chapa da cabeça de Zé Baiano, e outra de seu corpo estendido no chão com a cabeça equilibrada sobre ele. Por fim, o médico ordenou o batimento de uma chapa dos corpos em conjunto.
Terminada a perícia, os corpos foram recompostos e inumados no mesmo local.
A volante de Antônio de Chiquinho
Os homens que mataram Zé Baiano foram levados para Aracaju a fim de prestar depoimentos e contar à imprensa o incrível feito. Lá, ficaram 8 dias na residência do comerciante Antônio Conrado. O governador do Estado, Eronides de Carvalho, que era amigo de Lampião, fez um arremedo de comemoração pela vitória dos valentes homens de Alagadiço e mandou dar-lhes um prêmio de 9 contos de réis – recompensa pífia, já que teria de ser dividida por seis.
Depois disso, Antônio de Chiquinho e os companheiros foram chamados mais duas vezes à capital. Temendo-se que quando Lampião soubesse do fato destruísse Alagadiço, foi constituída uma volante com 15 rapazes do próprio povoado, tendo como comandante Antônio de Chiquinho. Cada componente da volante ganhava 118 mil-réis por mês. Antônio de Chiquinho fez furos nas paredes de sua casa, para olhar o que se passava na rua sem precisar abrir porta ou janela, e pelos quais podia atirar. Ele chamava sua casa de “fortaleza”. Mandou cavar trincheiras nos caminhos de acesso a Alagadiço, onde os rapazes da volante e os próprios moradores se revezavam, dia e noite, para resistir a um eventual ataque. O povoado vivia em clima de guerra.
A existência dessa volante foi breve – no ano seguinte o governador mandou desarmar Antônio de Chiquinho e seus companheiros, acusados de desordens e bebedeiras, sem nenhum resultado prático. O jornal Correio de Aracaju considerou uma iniquidade a atitude do governo, e publicou uma carta de Antônio de Chiquinho em que ele rebatia os insultos à sua moral e refutava as acusações de que sua tropa andava embriagada, observando que havia poucos dias o coronel Liberato tinha louvado a conduta de sua volante.
A notícia chega ao coito do Craibeiro
Lampião passou a noite de São João de 1936 num coito no Riacho Craibeiro, abaixo de Poço Redondo. A festa emendou a noite com o dia, sem parar. Foi quando chegou um coiteiro de Alagadiço com uma carta, informando que tinham matado Zé Baiano e três cabras.
Ao ler a carta, Lampião mandou parar a festa. Chamou Zé Sereno e Manoel Moreno e deu-lhes a notícia.
Zé Sereno ouviu a história, baixou a cabeça e comentou:
– Eu tou triste nun é só pela perda do meu primo, mais tamém pela traição de um amigo. Nun posso cumprendê cumo um home de cunfiança cumo Antonho de Chiquinho pôde fazê ũa coisa dessa, matano um home qui era cumo se fosse irmão dele...
– Apois é... – concordou Lampião. – Os cangacero de verdade tão se acabano... E nun inziste mais amigo cumo antigamente. Só farta agora eu sê traído pelo coroné Antonho Caxero ou pur João Maria da Serra Nega...
Lampião mandou que Manoel Moreno, Zabelê e Diferente fossem apurar o que aconteceu. No dia 29 de junho, eles estiveram na cova de Zé Baiano.
Veneno, foice e fuga para Goiás
Segundo Felipe de Castro, Zé Baiano e seus companheiros teriam sido mortos com uma feijoada envenenada.
Estácio de Lima escreveu que os cangaceiros foram mortos dormindo, a golpes de foice e machado.
Há outra versão segundo a qual a história contada pelos coiteiros era tudo mentira, tendo Zé Baiano escapado vivo e fugido para Goiás, destino de todos os fugitivos àquele tempo, sendo morto em seu lugar um sósia dele. Os matadores teriam custado a comunicar o fato às autoridades justamente para que os corpos apodrecessem e não fosse possível a identificação. A exumação dos corpos foi feita 19 dias depois das mortes. Em lugar de Zé Baiano teriam matado um sujeito de quase igual porte e catadura, sósia dele.
O pesquisador Antonio Amaury Corrêa de Araújo, que se tornou amigo de Zé Sereno, Criança e outros ex-cangaceiros, tendo inclusive hospedado em sua casa em São Paulo por mais de cinco meses a legendária Dadá, viúva de Corisco, afirma que essa versão lhe “foi narrada por Dadá e particularmente aceita pelo primo da vítima, Zé Sereno e outros antigos companheiros”.
Amaury considera que, embora não haja provas, é possível que tal versão seja verdadeira, dadas certas coincidências e circunstâncias que cercam o caso. Os matadores eram coiteiros de Zé Baiano, o mais rico dos cangaceiros. O próprio Antônio de Chiquinho acenara-lhe com a possibilidade de escapar, rico e incógnito, das garras dos inimigos e das malhas da lei. Como para viajar Zé Baiano precisava de uma roupa decente, no início de maio Antônio de Chiquinho pediu a um alfaiate que fosse à sua casa a fim de tirar as medidas do cangaceiro para fazer um terno. A roupa ficou pronta em quinze dias. Havia nas vizinhanças um caboclo chamado Acilino que vivia só com a mãe viúva. Quem o conheceu dizia que esse rapaz tinha a mesma altura e a mesma cor de Zé Baiano. Na noite de 6 de julho, véspera da “morte” de Zé Baiano, o cangaceiro esteve na casa da viúva e levou Acilino consigo.
Dadá disse a Amaury que chegara a conhecer Acilino e confirmou sua semelhança física com Zé Baiano. E mais: Dadá revelou que quando soube dessa história esteve com a mãe de Acilino, que, chorando muito, lhe disse que Zé Baiano tinha levado o rapaz para morrer.
Zé Baiano e Antônio de Chiquinho haviam marcado uma fatada para o dia seguinte. Zé Baiano embriagou os próprios companheiros e ajudou a matá-los. Acilino foi vestido com as roupas de Zé Baiano. Tiraram ou quebraram um incisivo central superior para propiciar o “reconhecimento”. Foi morto também outro indivíduo, de identidade ignorada. Zé Baiano combinou com Antônio de Chiquinho para somente espalhar a notícia do fato muitos dias depois. Teria sido por isso que os corpos somente foram exumados 19 dias depois da chacina. Culminando a farsa, o reconhecimento de Zé Baiano foi feito pelos próprios coiteiros. E o mais curioso é que os corpos foram reconhecidos apesar de estarem em adiantado estado de putrefação... Zé Baiano teria vivido algum tempo na região de Poços de Caldas, Minas Gerais, e depois foi dono de um restaurante na capital paulista.
A ronqueira
Embora Lampião procurasse restabelecer o equilíbrio de antes, as coisas não iam bem. Sergipe já não era mais o refúgio que fora tempos atrás. Apesar de a polícia sergipana fazer corpo mole, as autoridades não tinham controle sobre as volantes dos outros Estados. As volantes de Zé Rufino e Odilon Flor revezavam-se em Carira, Alagadiço, Poço Redondo e Canindé.
No dia 2 de setembro de 1936, três meses depois da morte de Zé Baiano, Lampião esteve no local da chacina. Pretendia invadir o povoado, dizendo que não ia deixar ninguém vivo, mas foi informado de que o povoado estava cercado de trincheiras. Considerou que não valia a pena correr o risco de invadir Alagadiço só por vingança. Todo o bando de Zé Baiano havia sido morto. Vingança não traria de volta o amigo. Maria Bonita ainda não havia se recuperado inteiramente do ferimento sofrido em Pernambuco. Além do mais, parece que havia um canhão em Alagadiço. Da Lagoa Nova, escutava-se o estampido.
É que Antônio de Chiquinho tinha mandado fazer uma arma estranha, que ele disparava de vez em quando, fazendo um barulho assustador. O canhão de Alagadiço era na verdade uma ronqueira – apesar do estrondo ensurdecedor, era totalmente inofensiva.
Lampião rezou um terço junto à cova. Estava acompanhado de mais de 30 cangaceiros, entre homens e mulheres. O bando acampou no pé da Serra do Saco. No dia seguinte, tomou a estrada de Carira, porém adiante dobrou à esquerda, no rumo de Pinhão. Na noite de 3 para 4 de setembro, em Paripiranga e arredores, houve saques e espancamentos.
Nas caatingas de Sítio do Quinto e Guloso havia muitos coiteiros, pois ali era o “feudo” do cangaceiro Ângelo Roque. Lugar bom para descansar uns dias.
Pescado em
Por José Bezerra Lima Irmão
Zé Baiano - José Aleixo Ribeiro da Silva - foi um dos cangaceiros mais famosos, mas também um dos menos estudados. As histórias e referências a seu respeito são repetidas por muitos autores sem a devida reflexão e sem preocupação com a verdade.
Nasci a uma légua do local onde Zé Baiano morreu. Ouvi dezenas de vezes o relato desse episódio da boca de meus pais e tios. Minha mãe era comadre de Pedro Guedes, um dos matadores de Zé Baiano. Meu tio Raimundo Bezerra era concunhado de Antônio de Chiquinho, o homem que liderou o ataque.
Fiz várias viagens a Macururé e Chorrochó, no norte da Bahia, em busca de informações sobre esse estranho personagem, sobrinho dos cangaceiros Cirilo e Antônio de Engrácia.
Transcrevo, a seguir, o capítulo 198 do meu livro Lampião - a Raposa das Caatingas, em que conto a aventura e desventura do chamado Carrasco Ferrador. Faço essa transcrição com o propósito de assim contribuir para o registro desses fatos da história do cangaço, porém lembrando que é proibida a sua reprodução integral ou parcial sem a autorização prévia do autor.
Mitos e verdades sobre o carrasco ferrador
Há coisas assim: alguém faz uma afirmação, e todo mundo passa a repeti-la, como papagaio.
Com relação a Zé Baiano, alguém afirmou que ele era negro e feio, parecendo um gorila ou chimpanzé, e a partir daí todos os autores fizeram coro a isso, partindo da ideia subjacente de que maldade e feiura são coisas de negro.
Estavam em voga àquela época certas concepções baseadas nas teorias de Cesare Lombroso, nitidamente racistas. Para ser enquadrado na classificação lombrosiana, teorizava-se, à moda de Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, que criminoso era coisa de mestiço. Era a teoria da degenerescência racial. Para os “cientistas” daquela época, a rigor só havia uma raça, a branca – uma raça superior. As demais eram inferiores – sub-raças –, e ao se misturarem abastardavam os descendentes, que se degeneravam orgânica, psíquica e moralmente.
Alguns autores dão mais ênfase ao fato de Zé Baiano ser negro e feio do que a seus crimes, que são postos em segundo plano.
Ranulfo Prata, condicionado pelos preconceitos de Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, descreve Zé Baiano como um negro grosso e malvado, de cabeça disforme, grande nariz esparramado na face bestial, boca rasgada de sapo cururu, de horripilante feiura.
A partir dessa deixa, passou-se a dizer que Zé Baiano tinha cabeça grande, nariz apragatado, lábios grossos, voz gutural e pele de sapo, escamosa.
Nertan Macedo chamou-o de “orangotango hirsuto”.
Rodrigues de Carvalho, que só se refere a Zé Baiano chamando-o de negro, preto e crioulo, exagera de forma absurda: Zé Baiano “não era negro apenas por fora”. Qualifica-o assim:
“O negro Zé Baiano, miserável rebutalho humano, que monopolizava todos os vícios e defeitos da raça negra e nenhuma das suas virtudes...” Não se cansa de chamá-lo de “nefasto crioulo”, “o desgraçado do negro”, “urso preto”, “gorila”, “crioulo horroroso (...) bem mais aproximado do chimpanzé do que da criatura humana” (...), “mais preto por dentro do que por fora”, aduzindo que ele “Tinha a alma mais negra do que a sua pele negra”. Considera que “Esse hediondo crioulo foi, sem favor nenhum, um inqualificável monstro. Toda a sua existência, negra como a sua pele negra, foi vazia de qualquer resquício de sentimento humano”. Arremata o retrato do cangaceiro assim: “O negro Zé Baiano, com as características que possuía, preto, alto e membrudo, despojado das vestes e preso pela cintura com uma corrente, era perfeitamente negociável. Nas mãos de um sujeito esperto, qualquer empresário de circo ou de jardim zoológico o compraria por um gorila, sem desconfiar”.
Joaquim Góis segue a mesma toada, dizendo que Zé Baiano, por dentro, era “um espírito que herdou toda a monstruosidade dos vícios de sua raça”.
Felipe de Castro sentencia: Zé Baiano era um homem mau, feio e “negro nojento”.
Por sua vez, Estácio de Lima diz que Zé Baiano era “um negro feio”, e em vez de mãos parecia ter garras.
Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena não ficam atrás: ao desgraçado negro, para ser a imagem do diabo, só faltavam os chifres, em tudo diferente, por exemplo, de Luís Pedro, “alvo de olhos azuis, um homem bonito...”
Essas descrições contêm juízos inaceitáveis. Para se falar da personalidade de uma pessoa, não há necessidade de vinculá-la à cor da sua pele – não importa se ela é preta, branca ou azul!
Embora não seja relevante determinar qual a cor daquele cangaceiro, convém registrar, a bem da verdade, o que disse o repórter d’O Estado de Sergipe que presenciou a exumação do corpo de Zé Baiano: “O dr. Carlos Menezes lavou a cabeça do facínora temido, que tantos males concebera e praticara, transparecendo então uma fisionomia morena...”.
Zé Baiano não era negro, era moreno, caboclo, acobreado. Em Chorrochó, onde ele nasceu, não há negros do tipo descrito por Rodrigues de Carvalho. Há caboclos, mamelucos ou “curibocas”, e um ou outro mulato. Negros, mesmo, são raros, como são raros os brancos – se é que existem “brancos” no Brasil.
Seu nome era José Aleixo Ribeiro da Silva. Pertencia à família dos Engrácia, nome de sua avó – família Ribeiro da Silva. Era sobrinho de Cirilo e Antônio de Engrácia, e primo de Zé Sereno, Mané Moreno, Antônio de Seu Naro, Sabonete e vários outros cabras, em torno de quinze. Os Engrácia, mestiços de branco com índio, eram indivíduos de pele bronzeada, “cor de formiga”, tostada pelo sol da caatinga. Existem algumas fotografias de Zé Baiano. As fotos daquela época eram em preto e branco. Branco era o papel. Queriam que Zé Baiano aparecesse de que cor? Na foto mais divulgada, o rosto dele está na sombra do chapelão de couro, tendo um lenço preto em volta do pescoço, o que dá a impressão de que o pescoço seria negro. Note-se na foto o nariz afilado, os lábios finos – traços que não correspondem aos do negro, que em geral tem nariz achatado e beiços polpudos.
Mané Moreno, Zé Baiano e Zé Sereno
Aliás, o próprio Rodrigues de Carvalho diz que a pigmentação da epiderme de Zé Baiano “era de uma tonalidade indefinida, entre o marrom e o preto”.
Entre os parentes de Zé Baiano não há um negro sequer. Seu tio Antônio de Engrácia é descrito por Rodrigues de Carvalho como sendo “talvez o tipo mais bem proporcionado da quadrilha, chegando a ser mesmo homem bonito, fisicamente”. Por “homem bonito”, na concepção daquele autor, entenda-se “não negro”.
Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena referem-se a Antônio de Engrácia como “um cangaceiro garboso” e, plagiando literalmente Joaquim Góis (sem citá-lo...), dizem que era “uma estampa mestiça de cores fixas. Amorenado da cor da terra que o sol queimou devagar”. Já Cirilo de Engrácia, outro tio de Zé Baiano, seria “moreno avermelhado”. Essa descrição de Cirilo coincide com a que foi feita por Dadá ao pesquisador Antonio Amaury Corrêa de Araújo: Cirilo era “cor de saúva” (formiga-de-mandioca, cabeçuda).
Zé Sereno, primo carnal de Zé Baiano, apareceu em vários documentários cinematográficos, dentre eles O Último Dia de Lampião, produzido pela Rede Globo de Televisão. Era moreno-claro, cabelo cacheado. É só ver.
Zé Sereno, no documentário "O Último dia de Lampião"
Lídia, mãe de Zé Sereno e tia de Zé Baiano, é descrita por Antônio Amaury Araújo como “uma cabocla”.
O celebrado Euclides da Cunha, ao falar do povo da região que margeia o Raso da Catarina, observa que negro ali era coisa rara. Relatando o suplício dos prisioneiros de Canudos, Euclides descreve a forma como foi preso e enforcado “Um negro, um dos raros negros puros que ali havia”. Noutra passagem, ele enfatiza que era “Raro um branco ou negro puro. [...] Predominava o pardo lídimo, misto de cafre, português e tapuia – faces bronzeadas, cabelos corredios e duros ou anelados”.
Entrevistei velhos coiteiros, e todos afirmam que Zé Baiano era um caboclo alto e forte, de rosto comprido cor de bronze, sobrancelhas escassas, maçãs do rosto salientes, nariz afilado, boca média, de lábios finos e bem ajustados, queixo fino, olhos vivos, penetrantes, cabelo liso, de índio. Apesar de ser um sujeito de poucas palavras, em situações normais falava de forma branda e cortês. Era um tipo simpático. Nas festas, comportava-se de forma comedida. Nunca dançava. Limitava-se a cantar, sentado, batendo palmas, o rifle atravessado no colo. Tinha uma voz grave, afinada, maravilhosa. Gostava de modinhas românticas. Metia-se a fazer trovas de improviso e tinha certo traquejo no fole de oito baixos. Ao contrário dos demais cangaceiros, ele não bebia, não fumava e não jogava baralho. Almoçava à mesa com os grandes fazendeiros da região de Alagadiço, Gameleiro e Pinhão, todos seus amigos – Laurindo Gomes, Pedro Gato, Zeca Ferreira, Etelvino Mendonça, Joãozinho de Donana Rego e seu irmão Costinha, Napoleão Emídio, Josias Tabaréu, José Melquíades e os irmãos Marcionílio e Gersílio do Gameleiro.
Zé Baiano era um rapaz comunicativo, mas não falador. Estava sempre tranquilo, alegre. Usava óculos de grau. Foi um dos cabras mais fiéis a seu chefe, obediente ao código do cangaço, tanto assim que quando os parentes romperam com Lampião Zé Baiano ficou com ele.
Além dos grandes fazendeiros da região, ele mantinha contatos com figuras poderosas da política estadual, usineiros da Cotinguiba e grandes comerciantes de Aracaju, aos quais emprestava elevadas somas a juros. Certo dia, surpreendeu o poderoso Otoniel Dória (Dorinha), chefe político de Itabaiana, em sua fazenda São João, município de Carira. Trocaram cumprimentos. O fazendeiro convidou-o para jantar, e a partir daí firmaram uma profunda amizade.
Infância e primeiros passos no cangaço
Zé Aleixo – o Zé Baiano – nasceu nas Areias, acima de São Saité, na zona de Feira do Pau (atual Macururé). Era filho de Teodora e Faustino Ribeiro da Silva (Faustino Mão de Onça), irmão de Antônio e Cirilo de Engrácia. Criou-se ajudando o pai no manejo de bodes e ovelhas entre as Areias, Lagoa do Esquixique, Lagoa das Vacas e Baixa do Ribeiro. Quando as lagoas e cacimbas secavam, o último recurso eram os poços do Riacho Grande. Tinha jeito para carpinteiro e pedreiro – naquele tempo as casas de pobres eram feitas de madeira trançada e barro, com cobertura de palha, e as dos mais remediados eram de adobe, cobertas de telha.
Quando o tio Antônio de Engrácia cometeu o primeiro crime, em 1925, toda a família se viu envolvida, pois a vítima era um homem de posses. Os Engrácia pediram proteção inicialmente a Inácio Grande, o maior fazendeiro de Chorrochó. Depois foram viver sob a proteção de Gregório da Pedra da Chica, no outro lado do São Francisco, em Pernambuco. Foi nessa ocasião que José Aleixo recebeu o apelido de Zé Baiano, para se distinguir de outros José. Juntou-se ao bando de Lampião pela primeira vez em setembro de 1926, desligando-se dois meses depois, após a Batalha da Serra Grande. Reincorporou-se ao bando definitivamente em julho de 1929.
Ferração em Canindé
Todos os autores, sem exceção, copiando-se uns aos outros, se referem a Zé Baiano como um sujeito que “tinha o hábito” de marcar mulheres a ferro quente com as letras “J-B” (José Baiano).
Na verdade, isso aconteceu em Canindé, em janeiro de 1932, quando ele, por vingança, ferrou de uma só vez três mulheres ligadas a soldados que haviam espancado sua mãe. A história dessa ferração é a seguinte:
Um soldado chamado Vicente Marques – da família Marques, de Santa Brígida, Marancó e Canindé – certa vez espancou a mãe de Zé Baiano para obrigá-la a informar o paradeiro do filho e dos parentes cangaceiros. A velha ficou irreconhecível, tantas foram as coronhadas de fuzil que recebeu no rosto.
Quando Lampião esteve em Canindé, em janeiro de 1932, onde moravam pessoas da família Marques, Zé Baiano recebeu carta branca de Lampião para vingar-se do que fizeram com sua mãe. Ao prender Maria Marques, irmã do soldado que supliciara sua mãe, Zé Baiano decidiu deixá-la marcada para sempre e mandou que um morador chamado Zé Rosa fosse buscar um ferro de marcar gado. Zé Rosa tinha sido vaqueiro do finado coronel João Brito (João Fernandes de Brito). Trouxe o primeiro ferro que encontrou, o ferro utilizado no passado para marcar os bois de seu falecido patrão, que tinha as letras “J-B”, de João Brito. Além de Maria Marques, foram ferradas no mesmo dia outras duas mulheres, ambas ligadas também a soldados por casamento ou mancebia.
Balbina da Silva e...
Maria Marques. Vítimas do ferro.
Por fim, quando observaram que as letras do ferro – “J-B” – eram as letras do seu nome, o cangaceiro decidiu levar o ferro como recordação de sua vingança, porém não há nenhum relato de fonte segura de que o tivesse utilizado outras vezes. Na área que lhe foi reservada, compreendendo terras de Ribeirópolis, Frei Paulo, Macambira, Pedra Mole, Pinhão e Carira, nunca se soube que ali Zé Baiano tivesse ferrado ninguém, seja homem ou mulher.
Amaury Correia fez uma pesquisa nos jornais e revistas da época para apurar se houve alguma notícia a respeito de outros casos de pessoas que tivessem sido ferradas por Zé Baiano, e concluiu: só houve aquele caso de Canindé. Amaury fala de notícias vagas de outras ferrações, mas todas sem comprovação.
Corisco é que quando fazia um refém tratava-o como “meu boi”. Dois integrantes do seu grupo – Arvoredo e Calais – ferraram várias pessoas nos sertões de Juazeiro, Jaguarari, Uauá e Várzea da Ema.
Houve quem dissesse que Zé Baiano “adquirira o hábito de ferrador” por ter sido traído pela mulher, a cangaceira Lídia. Porém tal explicação não procede, pois, seguramente, o caso de Lídia é posterior ao episódio de Canindé: as ferrações em Canindé foram em 1932, e a morte de lídia foi em 1934.
Também é pura lenda a sua fama de estuprador e desonrador de mulheres. Não há um caso sequer de tal prática efetivamente comprovado. Pelo contrário, Zé Baiano era um tipo moralista, de acordo com os padrões da época, e, para impor respeito no sertão, caía na palmatória toda mulher que ele encontrasse de cabelo curto, ombros nus, vestido decotado ou muito curto. Sua palmatória chamava-se Professora, pois servia para “dar educação a quem não tinha”. Outros cangaceiros que não toleravam ver mulher com cabelo curto e roupa provocante eram Mariano e Azulão – como, aliás, procediam em suas casas muitos pais e maridos...
Por ocasião da morte de Zé Baiano, ao entrevistar Antônio de Chiquinho, seu matador, o repórter Francisco de Matos conclui a matéria com a consideração de que, apesar de todas as maldades que lhe eram atribuídas, Zé Baiano “não fumava, não bebia, não deflorava, como atesta o testemunho de Antônio de Chiquinha”.
Lídia: amor e desdita
No segundo semestre de 1931, depois de uma viagem por Alagoas e Pernambuco para se reabastecer de munição, Lampião havia escondido a munição excedente na fazenda Maranduba, perto da Serra Negra, indo descansar nas imediações do povoado Poços, na entrada do Raso da Catarina. Ele conseguira também com seus amigos em Pernambuco algumas armas, porém a maior parte apresentava defeitos. Decidiu então levá-las para o seu amigo Venâncio Teixeira, residente em Olhos d’Água do Sousa, nas imediações de Santo Antônio da Glória – Venâncio era muito bom nesse negócio de armas velhas, deixava-as novinhas em folha.
No caminho, Zé Baiano começou a sentir dor de cabeça. Tinha febre. Tremia de frio em pleno meio-dia. Estava saindo um caroço no pescoço. Não suportava nem o chapéu na cabeça.
Lampião conhecia um velho chamado Luís Pereira, que morava no Salgadinho, ao lado da Serra do Padre. A mulher dele, Maria Rosa (dona Baló), era costureira e já havia feito muitas roupas para os cangaceiros. Lampião pediu ao velho que cuidasse do doente, enquanto o resto do bando prosseguia a viagem.
Ruínas da casa de Lídia
A casa de Luís Pereira tinha uma sala ampla, 3 quartos, cozinha espaçosa, e no fundo ficava o chiqueiro dos bodes, pegado a um tanque. Zé Baiano passou uns 15 dias ali. O tumor era tratado com remédios dos matos – chás e emplastros de ervas. Era bem cuidado por todos, inclusive pela filha caçula de Luís Pereira, chamada Lídia, uma linda garota de 15 anos. Quando ficou bom, o cangaceiro fugiu com a menina.
Lídia não foi propriamente raptada, mas, muito jovem, não sabia o que estava fazendo, e no mesmo dia, ao perceber a vida que teria pela frente, tendo de dormir nos matos e viver se escondendo como bicho, se arrependeu de ter saído de casa. Mas aí já era tarde.
Zé Baiano fazia de tudo para agradá-la. Cobria-a de presentes. Quando iam comer, ele reservava os melhores pedaços de carne para ela, cortava a carne em pedacinhos e punha-os na boca de sua beldade. Só tinha olhos para ela.
Nada, porém, era capaz de tirar da mente da garota a mágoa por ter sido arrancada do convívio de sua família. Não escondia de ninguém a revolta com o seu destino. No fundo, odiava Zé Baiano, o causador de sua desgraça.
Havia no bando um cangaceiro chamado Ademórcio, que Lídia conhecia desde criança, nascido e criado no Arrastapé. No bando, ele recebera o apelido de Bentevi. Aquele era o rapaz com quem ela gostaria de viver, e se ambos não tivessem sido arrastados para o cangaço poderiam, quem sabe, ter casado, pois seus pais eram amigos. Com o tempo, Lídia e Bentevi passaram a corresponder-se.
Encontravam-se às escondidas sempre que Zé Baiano estava viajando.
Lídia Pereira de Sousa foi possivelmente a mais bonita das mulheres que participaram do cangaço. Era uma morena cor de canela, de cabelo liso, rosto bem delineado, lábios carnudos, olhos negros, com uma dentadura que parecia um colar de pérolas.
Um cangaceiro chamado Coqueiro apaixonou-se por ela. Vivia seguindo-lhe os passos. Certo dia, viu-a mantendo relações sexuais com Bentevi. Coqueiro deixou que os dois terminassem o ato. Bentevi vestiu-se, foi embora. Lídia ficou só. Então, Coqueiro apresentou-se, dizendo:
– Eu vi tudo, do cumeço até o fim. E eu quero tamém...
Lídia refugou:
– Vai-te pros inferno, cabra nojento! Nun tá veno qui eu nun me passo pra um canaia da tua marca? Nun seja besta!
– Ou resorve ou vou contá tudo a Zé Baiano... E tem qui sê agora...
– Pode ir contá até pro diabo! Eu já diche qui não, e pronto!
Isto foi na segunda semana de julho de 1934. O bando estava acoitado perto de Poço Redondo, nas Pias das Panelas, junto ao Riacho do Quatarvo, em terras da fazenda Paus Pretos do coronel Antônio Caixeiro. Lampião tinha chegado de Alagadiço, onde havia matado um filho de Cazuza Paulo. Zé Baiano havia ficado por lá para fazer umas “cobranças” junto a fazendeiros daquela região. Quando ele chegou às Pias das Panelas, Coqueiro decidiu contar o que tinha visto. À noite, os cangaceiros estavam sentados no chão, uns vinte ou trinta, inclusive as mulheres, em volta do fogo onde assavam carne de bode. O delator expôs o que viu, omitindo, porém, a parte que o comprometia. Zé Baiano franziu a testa, os olhos arregalados, como se não estivesse escutado direito, e rosnou para a companheira:
– O qui esse sujeito tá dizeno é verdade, Lida?
– É verdade, Zé – sustentou Lídia, com voz firme. – Só qui esse canaia nun diche a histora toda... Ele dexou de dizê o preço qui izigiu pelo segredo. Ele quiria qui eu desse a ele tamém, pra nun lhe contá. Se eu tenho qui morrê, qui morra, mais um cabra safado desse nun me come!
Um silêncio de chumbo caiu sobre o acampamento. Zé Baiano ficou olhando para Lampião, aguardando ordens.
Lampião levantou-se, andou de um lado para outro, remoendo o terrível problema. Depois, sentenciou:
– O causo dela aí o cumpade Zé Baiano é qui resorve. Ela é dele, faça o qui achá qui deve fazê.
Fez uma pausa, ajeitou os óculos, e continuou:
– Agora, Coquero e Bentevi é cum a gente mermo. Gato, mate esses cabra!
Gato puxou o parabelo, aproximou-se de Coqueiro e deu-lhe um tiro na cabeça. Coqueiro, colhido de surpresa, não esboçou nenhuma reação. Não teve tempo sequer de pedir clemência.
Chegada a vez de Bentevi, percebeu-se que ele havia fugido. Os cabras queriam ir procurá-lo, mas Lampião mandou que tivessem calma:
– Deixem ele. Bentevi é subordinado a cumpade Virgínio, qui nun tá presente. Vou dexá qui ele dicida a sorte desse fio dũa égua.
Zé Baiano mandou que Demudado amarrasse Lídia num pé de imburana. Ele, que já supliciara tantos homens e mulheres com a sua palmatória de baraúna, de repente estava sem saber o que fazer. Lídia era tudo para ele. Passou o resto da noite acordado, sem falar com ninguém. Quando o dia amanheceu, pegou um cacete, foi até o pé de imburana, desamarrou a mulher e matou-a a pauladas, quebrando-lhe vários ossos. Lídia não emitiu uma palavra sequer, não gritou, nem ao menos gemeu. Como arremate, Zé Baiano esmagou a sua cabeça, como se faz com uma cobra. Sangue e massa cefálica esguicharam pela boca, narinas, olhos e ouvidos.
Depois, sem pedir ajuda a ninguém, o cangaceiro cavou uma cova rasa, enterrou-a e, não suportando mais, chorou.
Junto ao pé de imburana, no sangue coagulado, começou a juntar formigas.
O povoado Alagadiço
Na divisão do reino do cangaço, coube a Zé Baiano parte dos atuais municípios de Ribeirópolis, Frei Paulo, Macambira, Pedra Mole, Pinhão e Carira, em Sergipe. Seu coito predileto era um serrote próximo do povoado Alagadiço.
Zé Baiano se afeiçoou pelo Alagadiço por duas razões. A primeira era de ordem sentimental, pois estava de olho numa filha de Antônio de Chiquinho. A segunda razão era de ordem estratégica, haja vista que o povoado ficava numa região de serras, com muitas matas e esconderijos naturais.
Esta última tinha sido também a razão pela qual, no passado, tinham sido atraídos para aquele pé de serra os escravos fugidos dos engenhos da Cotinguiba e outras pessoas perseguidas pela justiça. Com efeito, Alagadiço foi originariamente um quilombo. Os antigos moradores viviam em palhoças feitas de galhos de árvores e cobertas de palhas de coqueiro. As primeiras casas foram construídas por João Pereira da Conceição e Quinca Rego, considerados os fundadores do povoado, no final do século XIX. Mesmo depois da Abolição da Escravatura, o local continuou com sua fama de quilombo, ponto de refúgio de foragidos de toda espécie. Um desses foragidos foi um homem chamado João Sabino dos Santos.
João Sabino chegou ali em 1897. Era um sujeito misterioso. Ele e a esposa eram muito reservados. Não diziam de onde tinham vindo. Porém os moradores terminaram descobrindo que se tratava de um alferes que havia desertado das tropas republicadas enviadas a Canudos, no sertão da Bahia, para combater o beato Antônio Conselheiro – ele fizera parte da terceira expedição, comandada pelo coronel Moreira César, que morreu em combate, morrendo também poucas horas depois seu substituto, o coronel Pedro Tamarindo. Depois da destruição do arraial de Canudos, em outubro de 1897, o governo passou a procurar os desertores para puni-los.
Alguém o denunciou e uma força foi enviada para prendê-lo. João Sabino estava em casa quando a força chegou. Não tendo como fugir, vestiu sua farda, pôs todos os petrechos de alferes que conservava guardados e foi entregar-se, enquanto a esposa se apegava com Nossa Senhora da Conceição, prometendo construir uma capela se o marido escapasse daquela atribulação. Quando ele se apresentou, uniformizado, com aquela farda estranha, cheia de debruns, galões, distintivos e enfeites, os soldados se intimidaram e prestaram continência. O cabo que comandava o troço considerou que não podia prender uma autoridade de patente superior. Terminaram fazendo amizade com o casal. João Sabino deu uma festa, reuniu os moradores, a soldadesca amanheceu o dia dançando ao som de gaitas e zabumba, com o acompanhamento de um instrumento nunca visto por ali – uma corneta.
A mulher de João Sabino, dona Angélica dos Santos, assegurava que o marido não foi preso graças a Nossa Senhora da Conceição. Cumprindo a promessa feita, mandou construir uma capela.
Por volta de 1930, o arraial estava em fase de grande progresso. Por questões políticas, o padre Madeira, vigário de São Paulo (hoje, Frei Paulo), chegou a mudar-se para o Alagadiço. O homem mais rico do lugar, Zezé Melquíades, importou do estrangeiro uma máquina de descaroçar algodão, chamada “bolandeira”. Um irmão dele, que era padre – padre Elpídio Teixeira –, tendo estudado música em Roma, veio passar uns tempos no povoado e trouxe o seu harmônio. Homem culto, ensinava aos moradores a cantar hinos a três e quatro vozes. Os jovens recebiam lições de música, aprendiam a solfejar, a tocar instrumentos. O padre Elpídio dirigia peças teatrais, chamadas “dramas”. Organizava folguedos populares, especialmente um fandango conhecido como marujada, que noutros lugares é conhecido como chegança, um auto popular baseado nas tradições ibéricas, tendo por tema as lutas entre cristãos e mouros, com personagens vestidos de marinheiros, cantando e dançando ao som de instrumentos de corda, ao estilo da Nau Catarineta, xácara portuguesa de temática marítima. Ele e o padre Madeira (José Antônio Leal Madeira), que era português, eram homens comprometidos com a cidadania. Nas festas cívicas e religiosas, ensinavam as pessoas a discursar, a declamar versos. O povoado chegou a ser visitado pelo bispo de Aracaju, Dom José Tomás Gomes da Silva.
Esse surto de progresso foi interrompido quando Lampião iniciou seu assédio ao povoado. Muitos moradores se mudaram para São Paulo (Frei Paulo) e Itabaiana. Os que ficaram tiveram de sujeitar-se à condição de coiteiros. As escolas deixaram de funcionar. Aurelino Guimarães, o subdelegado, que tinha um pequeno comércio no povoado, tendo de fazer compras em Frei Paulo para reabastecer o estabelecimento, sofreu vários assaltos na estrada e sua casa comercial foi saqueada. Desgostoso, mudou-se para Itabaiana. Zezé Melquíades, o homem mais rico do lugar, vendeu a fazenda a Donana Rego e foi embora também.
Alagadiço nunca mais seria o mesmo.
Padre Madeira |
Certo dia, viajando a cavalo para o povoado Altos Verdes, aonde ia celebrar missa, ao passar pela fazenda Lagoa Nova, quando parou para abrir a cancela da fazenda foi abordado pelo bando de Zé Baiano. O vigário protestou:
– O que é isso? Será que não posso mais levar a palavra de Deus neste sertão? Eu sou o padre Madeira!
Zé Baiano tirou o chapéu de couro e pediu a bênção:
– A bença, seu pade. Me perdoe. Eu nun sabia qui era seu vigaro.
– Está abençoado em nome de Deus, mas procure deixar essa vida criminosa para que possa salvar a sua alma, rapaz!
O próprio cangaceiro foi abrir a cancela.
O amigo Antônio de Chiquinho
Depois da morte de Lídia, Zé Baiano fixou-se em Alagadiço. Ele viajava pelos seus domínios, mas seu ponto de referência era Alagadiço. Costumava acoitar num serrote que até hoje é conhecido como Coito. Viria a ser morto perto dali, na fazenda Lagoa Nova, em 1936, por cinco rapazes liderados pelo coiteiro Antônio de Chiquinho.
Antonio de Chiquinho
Antônio de Chiquinho, depois de Zezé Melquíades e Aurelino Guimarães, era o homem mais importante de Alagadiço. Quando Maurício Ettinger foi intendente de São Paulo (Frei Paulo), em 1931, Antônio de Chiquinho foi nomeado comissário do povoado Alagadiço. O comissário municipal tinha a incumbência de resolver no povoado todos os negócios locais em nome do intendente – era uma espécie de subintendente.
Muito se especulou na época acerca dos motivos que levaram Antônio de Chiquinho a matar Zé Baiano, seu amigo do peito. A razão óbvia era a pressão da polícia, que chegou a prendê-lo três vezes por acoitar cangaceiros. Depois se veio a saber do interesse de Zé Baiano por uma de suas filhas. Mas fala-se também das vantagens pecuniárias decorrentes da morte do famoso cangaceiro.
Zé Baiano talvez fosse o mais rico dos cangaceiros, depois de Lampião. Havia amealhado uma fortuna em dinheiro vivo, ouro e objetos vários. Dizem que tinha mais de setecentos contos de réis enterrados em garrafões de vidro, em algum lugar na Serra das Campinas. Não jogava baralho, como os outros, para não perder dinheiro. Era extremamente sovina. E agiota. Emprestava dinheiro a fazendeiros de todo o Estado, a senhores de engenho da zona dos canaviais e a grandes comerciantes de Aracaju. Era bem relacionado. Cansou de ir a Frei Paulo (ex-São Paulo), disfarçado, onde ficava até altas horas da noite conversando com grandolas da região.
Passeava de automóvel pela cidade na fubica de Gileno Ferreirinha – que ia buscá-lo em Alagadiço – sem que os moradores desconfiassem que ali estava o temido cangaceiro. Chegou a assistir ao encerramento da festa do padroeiro, São Paulo, na praça da igreja em construção, da janela de Sinhá Dondom, viúva do Tenente Manezinho, na esquina da praça com o Beco do Mamão. Avalia-se que, por ocasião de sua morte, o total de dinheiro emprestado, somente a casas comerciais de Aracaju, girava em torno de uns 200 contos de réis.
Quem instruiu Antônio de Chiquinho sobre como proceder para matar Zé Baiano foi o comerciante Antônio Conrado, que era compadre do coiteiro. Antônio Conrado de Sousa morava em Aracaju, mas tinha vínculos familiares e propriedades em Carira. Dois anos antes, a 10 de março de 1934, havia sido assassinado um tio dele – tio e sogro –, o velho Martinho de Sousa Freire, dono das fazendas Venturosa e Espinho, nas imediações do povoado Cipó-de-Leite. Martinho vinha da fazenda Espinho para o Carira acompanhado de seu vaqueiro Joãozinho de Vítor e mais duas pessoas: o pai e a esposa do vaqueiro. Os cangaceiros estavam emboscados no oitão da sede da fazenda São Luís, de Janjão de Tertino. Zé Baiano liberou a mulher do vaqueiro e levou os outros para o fundo da casa. Os três foram mortos à queima-roupa – cada um recebeu um tiro no ouvido.
Antônio Conrado de Sousa, quando prefeito de Carira
Fonte: http://sergipeemfotos.blogspot.com
Em abril de 1936, Zé Baiano matou Pedro Chico, que morava em Fazendinha, acima de Altos Verdes: como o homem custasse a arranjar certa quantia, os cangaceiros amarraram-no a um cavalo e puseram o animal para correr, e depois o fuzilaram.
Atribui-se também a Zé Baiano a morte de 6 pessoas naquele mesmo ano, na fazenda Bom dos Aires (Buenos Aires). Ele costumava pedir dinheiro a Dominguinho de Vito, dono da fazenda Boa Vista, vizinha da Chafardona, ao poente de Monte Alegre. Certo dia, ele mandou Dominguinho fazer umas compras, porém não lhe deu o dinheiro. Dominguinho foi levar as compras. Cansado de ser explorado pelo bandido, no mesmo dia ele informou à polícia o local do coito e ainda serviu de guia à tropa. Porém Zé Baiano, assim que recebeu as encomendas, mudou de local. Quando a polícia chegou, o lugar estava limpo. Os cangaceiros estavam acoitados perto e viram tudo. Jurado de morte, Dominguinho fugiu para Itabaiana. Zé Baiano vingou-se na família do coiteiro. O pai de Dominguinho, o velho Vito, dono da fazenda Bom dos Aires, nas imediações da Lagoa do Roçado, foi pego na roça. Os cangaceiros mataram o velho Vito, 4 filhos e um genro. Conta-se que no caminho de casa o chapéu do velho caiu com o vento e ele queria pegá-lo. O cangaceiro disse: “Dexe aí. Você nun vai mais pricisá de chapéu”.
“Se acabou-se o home de Segipe”
A rotina era essa: Zé Baiano extorquia dinheiro de uns para emprestar a outros, a juros.
Na região de Alagadiço, quem mais devia a Zé Baiano era Ioiozinho Capitinga, dono da fazenda Jiboia. Havia poucos dias, o cangaceiro tinha-lhe emprestado 20 contos de réis.
Antônio de Chiquinho também devia dinheiro a Zé Baiano. Não se sabe quanto. Segundo Alcino Costa, estes empréstimos geraram a suspeita de que a traição do coiteiro tivesse sido motivada por interesses de seus devedores, entre eles Ioiozinho Capitinga e o próprio Antônio de Chiquinho. “O que se sabe de real e verdadeiro” – escreveu Alcino Costa – “é que a morte do cangaceiro chega no momento em que Ioiozinho, por exemplo, mais que depressa se desfaz de seus burros e compra a maior loja de tecidos de Frei Paulo; tudo fazendo crer que o dinheiro de Zé Baiano o empurra para o caminho da riqueza. Muda-se para a capital, Aracaju, aumentando a sua grande fortuna com os lucros obtidos com a Casa da Seda. Tempos depois, vende a loja de Frei Paulo ao empregado Justiniano Batista de Oliveira e deixa Sergipe, indo residir no oeste da Bahia com o ramo da pecuária.”
Alcino Costa prossegue dizendo que Antônio de Chiquinho, que era o homem da maior confiança de Zé Baiano, fazia de tudo para agradá-lo, promovia bailes e festas em sua casa. “As reuniões são quase todas na fazenda Baixio; pode-se dizer que eram festas familiares, tão grande era a afinidade e a intimidade dos bandidos com aquele povo”. Depois de falar da forma bárbara como o cangaceiro havia matado sua mulher, Lídia, passando dias amargurado, pois sem dúvida era apaixonado pela morta, a mais bonita de todas as cangaceiras, o autor prossegue: “Mas agora o seu coração de homem estava amando. Amava e queria justamente uma das filhas do amigo Antônio. Moça também bonita, amorenada, alta e esbelta, cabelos grandes e pele macia. O cangaceiro a cada dia mais deseja aquela mulher”.
Felipe de Castro vai além, afirmando que Zé Baiano se amancebou com uma filha de Antônio de Chiquinho, chamada Zefa.
Sujeito destemido, conceituado, Antônio de Chiquinho vivia incomodado com o futuro de sua filha, uma menina, que corria o risco de ser arrastada para a perdição sem volta. Juntando tudo, o coiteiro concluiu que matando Zé Baiano se resolviam três questões: seu problema com a polícia, a confusão com sua filha e a quitação das dívidas.
Há exageros e equívocos nessas informações. Antônio de Chiquinho não tinha nenhuma filha chamada Zefa. As filhas de Antônio de Chiquinho chamavam-se Lindinalva (Lindô), Luísa, Salvelina (Salva) e Avilete. A mais velha era Lindô, e a mais bonita era Luísa. O interesse do cangaceiro seria por Luísa. Porém os antigos moradores de Alagadiço não confirmam nada que desabone aquelas moças. O que havia era muito fuxico, e talvez inveja, pois Zé Baiano era rico e muitas jovens eram loucas para se arranjar com ele.
Quanto às insinuações envolvendo dinheiro, não se tem notícia se Ioiozinho Capitinga, Antônio Franco e os grandes devedores ofereceram ou deram alguma vantagem pecuniária ao coiteiro pelo seu “trabalho”.
Seja como for, uma série de fatores contribuiu para que Antônio de Chiquinho tomasse a decisão que tomou. Ele vinha sendo vigiado e perseguido pela polícia. Depois de ser preso duas vezes, ele passou uns tempos escondido na fazenda de Totonho do Mulungu (Antônio Joaquim de Andrade), foi para a Usina Central e em seguida para a Usina São José, na Cotinguiba. Quando voltou ao Alagadiço, foi preso novamente pela volante de Zé Rufino e levado para Carira, dizendo o comandante que ia enviá-lo para Jeremoabo, na Bahia. Donana, a esposa de Antônio de Chiquinho, viajou para Laranjeiras a fim de pedir a Zezé do Pinheiro para interceder pelo marido junto ao governador do Estado. Zezé do Pinheiro e o coronel Antônio Franco, poderosos usineiros da Cotinguiba, conseguiram barrar a ida do coiteiro para a Bahia – no último minuto, chegou a Carira um telegrama do interventor federal ordenando a liberação do preso.
Consta que o plano de eliminação de Zé Baiano foi combinado por Antônio Conrado com o tenente Afonso Antônio da Mota, que era o comandante das forças volantes sergipanas. O tenente queria envolver a polícia no plano, mas Antônio de Chiquinho não concordou – não confiava em macaco.
Antônio de Chiquinho tinha um pequeno comércio e era marchante. Havia sido preso pela terceira vez em abril de 1936. Ao ser solto, ele voltou a Alagadiço disposto a matar Zé Baiano, de acordo com o plano traçado por Antônio Conrado.
O mais difícil era a escolha de outras pessoas para ajudá-lo, pois Zé Baiano nunca andava sozinho. Antônio precisava procurar uns quatro ou cinco amigos da maior confiança, e estes teriam de ser cabras dispostos, que não fossem se acovardar na hora da verdade. Primeiro pensou em Pedro de Nica, um sujeito valentão, temido naquelas paragens – ninguém sabe como já não tinha se tornado cangaceiro. Pensou também em Pedro Guedes, um rapagão enorme, de 24 anos.
A seleção foi mais fácil do que Antônio esperava. Pedro de Nica e Pedro Guedes disseram que topavam. Os outros escolhidos eram empregados de Antônio de Chiquinho: Toinho (Antônio de Júlia) e Dedé de Lola, que trabalhavam em sua fazenda, e Birindim, seu ajudante de marchante.
Escolhidos os companheiros, passou-se a aguardar uma oportunidade propícia.
Pedro Guedes, Toinho, Birindin, Dedé,
Antonio de Chiquinho e Pedro de Nica
Zé Baiano tinha uma grande e respeitosa estima pela professora Prazeres, que lecionava na fazenda Altamira, de Antônio de Inês. Ele costumava acoitar nessa fazenda. No início de junho, Antônio de Chiquinho soube que a Festa de São João na Altamira ia ser um sucesso. Na zona do Guedes e das Pias só se falava então no baile da professora. Com certeza Zé Baiano estaria lá. Antônio de Chiquinho pensou em surpreender Zé Baiano durante a festa. O problema é que nessas festas costumavam aparecer também os grupos de cangaceiros chefiados por Zé Sereno e Canário. Não ia dar certo. A coisa teria de ser feita ou antes ou depois.
Foi quando, no dia 3 de junho de 1936, quarta-feira, Antônio recebeu um recado de Zé Baiano dizendo que estava precisando de mantimentos, os de costume – jabá, feijão, farinha, café, sal, açúcar, fumo, rapadura, querosene...
Antônio de Chiquinho decidiu que era chegada a hora. Mas precisava saber quantos cangaceiros estavam com Zé Baiano. Para verificar isso, enviou Dedé, numa missão aparentemente inocente: Dedé iria dizer ao cangaceiro que Antônio de Chiquinho estava custando a levar a encomenda porque vinha sendo vigiado pela polícia, mas no domingo à tarde, depois da feira, a encomenda seria entregue, sem falta.
Dedé encontrou Zé Baiano na fazenda Preá. Deu o recado. Notou que ele estava com apenas dois cangaceiros, Demudado e Chico Peste.
Ao saber que Zé Baiano estava somente com dois cabras, Antônio de Chiquinho animou-se. Ia ser fácil.
No domingo, 7 de junho de 1936, Zé Baiano, acompanhado de Demudado, Chico Peste e um cangaceiro novato chamado Acilino, passou de manhã pela fazenda Altamira para saber como iam os preparativos para a festa. A professora Prazeres o recebeu com alegria, disse que ele não poderia faltar e mandasse chamar também os primos de Poço Redondo. Zé Baiano disse que viria, com certeza, e ia mandar chamar Zé Sereno e Manoel Moreno. Zé Baiano tinha encomendado presentes para algumas moças. Só pelo feitio de um vestido tinha pagado 30 mil-réis. Despediu-se da professora e foi para a fazenda Baixio, do amigo Antônio de Chiquinho.
Antônio de Chiquinho não se encontrava na fazenda porque, sendo domingo, dia de feira no povoado, ele estava ocupado, pois era marchante. Porém, ao dar meio-dia, Zé Baiano começou a ficar desconfiado da demora do coiteiro, pois a feira de Alagadiço terminava antes do meio-dia, Antônio de Chiquinho só matava um carneiro e um porco, e portanto já devia estar na fazenda. Zé Baiano deixou um recado para que Antônio de Chiquinho fosse encontrá-lo na fazenda Lagoa Nova – a Lagoa Nova pertencia justamente a Pedro de Nica, um dos homens que Antônio de Chiquinho tinha convidado para a melindrosa empreitada.
Antônio de Chiquinho e os companheiros chegaram ao Baixio logo depois com as encomendas. Ao tomarem conhecimento de que os cangaceiros tinham ido para a Lagoa Nova, rumaram para lá. Conheciam o esconderijo, que ficava não muito longe da estrada, a meia légua do Baixio.
Antônio ia um pouco apreensivo. Desde que fora preso, nunca mais tinha se encontrado com Zé Baiano.
Além dos mantimentos, os coiteiros levavam também uma pá e uma picareta. Perto da Lagoa Nova, esconderam as ferramentas no mato. Apenas Antônio de Chiquinho ia armado – portava um parabelo. Dedé levava um facão metido na bainha, preso na cintura.
Deixaram a estrada e seguiram por uma vereda do gado. Logo adiante, avistaram os cangaceiros, sentados no chão, debaixo de umas baraúnas. Zé Baiano e seu cangaceiro de confiança, Demudado, vieram ao encontro dos coiteiros. Zé Baiano estava aborrecido com a demora. Antônio justificou-se explicando que seus passos estavam sendo vigiados, tinha sido preso...
– Não, Antonho, você nun tem discupa, andou munto má!
Demudado emendou:
– Cuma é qui você fais nóis isperá nun sei quantos dia? Tá pensano o quê? E pere aí: pur qui é qui aquele cabra tá cum um facão?
Dito isto, Demudado tomou o facão de Dedé e deu-lhe uns safanões, segurando-o pela abertura da camisa, chegando a rasgar a jabiraca que o coiteiro usava no pescoço. Zé Baiano também queria saber para que Dedé queria o facão.
Dedé explicou que era carreiro e precisava tirar uns paus a fim de fazer uns canzis e fueiros para o carro de bois. A resposta não convenceu Demudado, que objetou:
– Mais qui mintira é essa, cabra? Hoje é dumingo... Ninguém trabaia no dumingo! Nun é pecado?
– Cortá ũas varinha nun é trabaio... – justificou-se Dedé.
Antônio de Chiquinho contemporizou:
– Voceis tão fazeno ũa tempestade num copo d’água. Pra qui diabo serve um facão? Acho qui Demudado nun pricisava dismoralizá o meu carrero...
– Nóis nun gosta de vê coitero armado! – disse Zé Baiano.
– Apois eu tou armado – avisou Antônio de Chiquinho. – Tou cum meu parabelo.
– Ora, Antonho, você é meu amigo! Você pode! Agora, me diga ũa coisa: qui diabo tá haveno hoje, Antonho? Pur que você veio cum tantos home?
– Oxente! E cuma era qui eu pudia trazê essas coisa toda sozim? Eu nun sou jegue não... Eles viero pra me ajudá...
– Hum! Já vi você sozim carregá munto mais coisas, Antonho!
– É qui eu tou ficano véio... – brincou Antônio de Chiquinho.
Todos riram. Zé Baiano conformou-se. Estava entre amigos. Conhecia Pedro Guedes, Toinho e Birindim. Só nunca tinha visto Pedro de Nica. Perguntou quem era. Antônio de Chiquinho respondeu que Pedro de Nica era justamente o dono daquele lugar onde eles estavam, e era gente de confiança, tinha vindo para ajudar. Zé Baiano comentou:
– É... cabra forte... dava um bom cangacero...
Antônio de Chiquinho aproveitou a oportunidade e observou, meio desinteressadamente:
– Tou notano qui você tá cum um cabra novo. Eu só cunheço Demudado e Chico Peste. Quem é o outo?
Zé Baiano respondeu que o novato se chamava Acilino. Era da fazenda Pulgas, ao lado das Cotias, na zona do Gameleiro. Tinha ingressado no bando no dia anterior. Parente de Chico Peste, nascido e criado no Bandeira.
Passados aqueles momentos de tensão, todos relaxaram. Antônio de Chiquinho mandou que os companheiros acendessem o fogo, pois ele tinha trazido uma buchada de carneiro já pronta, bastava esquentar. Tinha trazido também três litros de conhaque.
O plano era este: embriagar os cangaceiros para facilitar o ataque; Antônio de Chiquinho seguraria Zé Baiano, Toinho e Birindim pegariam Demudado, e Dedé de Lola ficaria com Chico Peste; bastava agarrá-los, para que Pedro Guedes e Pedro de Nica, que ficavam sobrando, pudessem matá-los. O problema é que encontraram um cangaceiro a mais. Enquanto acendiam o fogo, numa trempe de pedras, Antônio de Chiquinho falou baixo para os companheiros:
– Tem nada não. Pedo Guede ajuda Toinho, e Birindim fica cum o discunhicido. Pedo de Nica mata tudo sozim.
Alegando que estava fazendo muito calor, Antônio de Chiquinho tirou a jabiraca do pescoço e depois a camisa. Lutar sem camisa era mais fácil. Tirou também o parabelo e colocou-o ao pé de uma árvore. Como haviam combinado, os companheiros também se queixaram do calor e tiraram suas camisas.
Antônio de Chiquinho abriu um litro de conhaque e foi o primeiro a tomar um trago, para mostrar que a bebida não tinha veneno. A garrafa foi passando de mão em mão, cada um despejando a bebida na boca diretamente do gargalo, pois não havia copos ou canecos.
Só Zé Baiano não bebeu:
– Quero não. Bibida é coisa de gente rũim...
Quando a buchada começou a ferver, Antônio de Chiquinho tirou a panela do fogo, preparou o pirão e fez um molho com bastante pimenta. Cada homem encheu o seu prato. Sentaram-se nas sombras das árvores e foram comer. A essa altura, já estavam no segundo ou terceiro litro de conhaque. A bebida aumentava o apetite. Comiam com ganância, mastigando forte, como bichos. E haja conhaque.
O fato de Zé Baiano se manter sóbrio não era problema para Antônio de Chiquinho, porque, apesar de Zé Baiano ser um homem grandalhão e corpulento, não tinha força no braço direito, em virtude de um ferimento recebido tempos atrás.
Quando terminaram de comer, alguns se deitaram no chão para dormir. Outros continuaram sentados, proseando, contando lambanças, como era de costume. Zé Baiano mostrou a Antônio de Chiquinho um lindo punhal com incrustações de ouro, sendo o cabo e a bainha de prata, uma verdadeira obra de arte, presente de Lampião.
Conversa vai, conversa vem, Antônio de Chiquinho começou a cantar uma musiquinha que estava na moda, cuja letra tinha um trecho mais ou menos assim: “Ajoelha, Marica! / Mulher comprida / De cabeça seca. / Já soube / que estou nos braços de Marinete?”. Tinha sido combinado que esta seria a senha para o ataque. Antônio de Chiquinho pôs-se de pé e continuou cantando a musiquinha meio desafinado. Chico Peste, completamente bêbado, esparramou-se debaixo de um pé de esporão-de-galo e fechou os olhos. Os coiteiros aguardavam impacientes o momento em que seriam cantados os versos da senha combinada. No ponto certo, Antônio de Chiquinho caprichou na letra:
– Ajueia, Marica, muié cumprida, de cabeça seca, já soube qui tou nos braço de Marinete?
E aí o mundo fechou. Antônio de Chiquinho e Pedro de Nica voaram em cima de Zé Baiano, ao tempo em que Pedro Guedes e Toinho se atracavam com Demudado, enquanto Birindim se engalfinhava com Acilino, e Dedé pegava Chico Peste.
Parecia uma briga de touros. Tendo ajudado Pedro Guedes a dominar Demudado, Toinho deu uma cacetada em Chico Peste, que conseguira desvencilhar-se de Dedé. Dedé correu para pegar o facão, e Chico Peste precipitou-se atrás dele, com o punhal na mão. Toinho gritou:
– Coidado, Dedé!
Dedé voltou-se, brandiu o facão, golpeando o cangaceiro no pescoço. Chico Peste caiu, e Dedé deu-lhe mais três facãozadas, acabando de matá-lo. Correu em seguida para socorrer Birindim, que estava atracado no chão com Acilino, e enfiou o punhal no cabra, à altura do tórax.
Toinho e Pedro Guedes estavam tendo dificuldades com Demudado. Pedro de Nica deixou Zé Baiano com Antônio de Chiquinho e foi socorrer os companheiros. Toinho aplicou quatro punhaladas em Demudado. Pedro Guedes deu um empurrão, e Demudado caiu, se estrebuchando, arrastando-se, tentando alcançar o fuzil. Pedro de Nica acabou de matá-lo, enfiando-lhe o punhal bem na veia do pescoço.
Antônio de Chiquinho havia dominado por completo Zé Baiano, já que o cabra só tinha força no braço esquerdo, pois o direito só servia para manejar o fuzil, era meio dormente. O cangaceiro esbatia-se no chão, esperneava-se, urrando como uma fera no laço, com Antônio de Chiquinho montado sobre ele, ajudado agora pelos companheiros. A camisa de Zé Baiano estava toda rasgada. A luta tinha sido terrível, e o cangaceiro, cansado, aflito, molhado de suor, aos berros, subjugado pelos coiteiros, implorava que o soltassem, prometendo que nada de mal faria a eles, lhes daria o tudo o que tinha.
– Cadê o seu dinhero?! – perguntou Antônio de Chiquinho.
– Tá tudo nos meus bolso. Tem uns seis conto e pouco.
– Só? E o resto? Onde tá o resto?!
– Nun tenho mais aqui purque meus dinhero tão imprestado.
– Deixem ele ficá im pé – disse Antônio de Chiquinho aos companheiros. – Vamo fazê um trato, Zé Baiano. Se você diché os nome de todo mundo pra quem você imprestou dinhero e quanto imprestou a cada um nóis lhe sorta.
– Eu imprestei esta sumana vinte conto a Ioiozinho Capitinga e mais vinte a outos fazendero.
– Diga os nome – ordenou Antônio de Chiquinho –. Eu quero qui você diga o nome de um pur um, e quanto foi qui imprestou.
O cangaceiro passou a citar nomes e valores. Era muita gente. Uma fortuna.
Antônio de Chiquinho fez uma proposta aos companheiros:
– Vamo prendê ele num quarto bem fechado qui eu tenho na mĩa casa, nóis fais ele ficá sem roupa e obriga ele a iscrevê ũas carta pros fazendero, e daqui uns vinte ou trinta dia nóis mata ele...
Pedro de Nica deu sinal de que concordava com a proposta. Zé Baiano viu ali uma forma de ganhar tempo. Prometeu:
– Amanhã vou recebê setenta conto e dou tudo a voceis. Me sortem!... Me sortem!... Pelo amô de Nossa Sinhora, me sortem!...
Então Pedro Guedes se postou na frente do cabra e disse:
– Ô seu peste, cê tá lembrado da morte de Moisés, fio de Cazuza Paulo? Cê teve pena dele, quando sangrou o rapais sem nĩhum mutivo?
– Eu tenho munto dinhero! Dou tudo a voceis! Vou dexá voceis rico! Eu prometo qui vou simbora daqui pra bem longe, dexo o cangaço! Antonho, pelo amô de Nossa Sinhora, me sarve! Se alembre de nossa amizade! Quano foi qui eu lhe fartei cum a palava? Pelo amô de Deus, Antonho, nun me mate!...
Antônio de Chiquinho era um homem bom. Seu coração amoleceu ante os rogos do amigo. Estava propenso a soltá-lo. Ponderou:
– Nóis pudia dexá esse cabra ir simbora...
– Nada disso! – gritou Pedro Guedes.
E, antes que Antônio de Chiquinho tomasse qualquer atitude maluca, Pedro Guedes aplicou uma punhalada no cangaceiro, e Birindim, outra, ambas na clavícula. Zé Baiano, ao cair, gemeu, dizendo:
– Matou-me agora...
O cangaceiro tentou levantar-se, mas Pedro de Nica e Dedé o seguraram pelas pernas e o atiraram de novo ao chão, enquanto Birindim lhe aplicava várias punhaladas no peito. Em seus estertores, ofegando, de olhos esbugalhados, Zé Baiano murmurou:
– Se acabou-se o home de Segipe...
Foram estas suas últimas palavras, pois logo em seguida recebeu mais duas punhaladas de Birindim. Pedro Guedes pegou o facão de Dedé e cortou o pescoço do cangaceiro.
A luta durara cerca de 5 minutos. Em toda parte, a terra estava revolvida, o mato estava amassado, e sentia-se um cheiro de sangue insuportável.
Eram 4 horas da tarde do dia 7 de junho de 1936.
Os matadores diziam que em dinheiro só encontraram nos bolsos de Zé Baiano pouco mais de seis contos, informação esta pouco confiável. Além do dinheiro, eles recolheram 3 rifles, vários punhais, sendo um com cabo e bainha de prata, um parabelo e outras pistolas e revólveres, muita munição e diversos artefatos de ouro. Porém isto é o que foi declarado oficialmente.
Falta muita coisa nessa relação. A bandoleira do fuzil de Zé Baiano era toda enfeitada de moedas de ouro. Seu chapéu tinha 65 medalhas de ouro na testeira e duas alianças na barbela. Isso tudo sumiu. Na relação dos bens apresentados às autoridades não constam os bornais dos cangaceiros. Ora, era nos bornais que os cangaceiros carregavam seus pertences de valor, especialmente dinheiro. Cada cangaceiro costumava portar quatro bornais. Falou-se que em vez dos 6 contos e quebrados que foram declarados, somente de Zé Baiano os matadores se apossaram de mais de 25 contos de réis.
Os quatro corpos foram enterrados num formigueiro, onde a terra era fácil de ser cavada.
Terminado tudo, sujos de barro e sangue, os coiteiros limparam-se com o que sobrou do conhaque. A caminho do povoado, passaram por um tanque e se lavaram bem. Só à noite voltaram para casa. Os objetos dos cangaceiros foram guardados na casa da mãe de Birindim.
Combinaram guardar segredo, porque temiam o que poderia vir a acontecer quando Lampião soubesse do fato. Não só Lampião, mas também, e principalmente, Zé Sereno e Manoel Moreno, primos de Zé Baiano.
Sigilo suspeito
Zé Sereno, Diferente, Canário e Delicado tinham sido convidados por Zé Baiano para o São João da professora na fazenda Altamira, mas, como de costume, ficaram aguardando a confirmação, pois cangaceiro não fazia plano para o futuro, tudo era decidido na hora. Chegou o dia da festa, e nada de receberem o recado tão esperado. Desconfiados, não foram. Passaram o São João nas Capoeiras de Julião, em Poço Redondo.
A Festa de São João foi uma maravilha nas fazendas Altamira e São Mateus. Os sanfoneiros tocaram até o dia amanhecer, enquanto o foguetório rasgava o céu do sertão.
Em Alagadiço, Antônio de Chiquinho e os cinco companheiros resolveram comemorar a façanha, mas sem dizer a ninguém o que estavam comemorando. Fizeram uma fogueira na frente da igreja, para espantar o frio, e começaram a soltar foguetes, bebendo cachaça e assando milho verde nas labaredas. Logo começou a juntar gente. Vieram os tocadores de gaitas e zabumba. Moças e rapazes começaram a dançar. De repente, o furdunço improvisado se transformou na Festa de São João mais animada que já houve no povoado. Ninguém dormiu em Alagadiço naquela noite. Até os velhos saíram de suas casas para ver o que estava acontecendo.
Todo mundo sabia que Antônio de Chiquinho e os amigos gostavam de farra, mas daquela vez eles saíram das medidas. Só a mãe de Birindim era sabedora do motivo daquela comemoração. A velha terminou contando o fato a uma filha, mas pediu segredo. A filha, por sua vez, contou ao marido, Jovino Pereira, e, claro, também pediu segredo. Depois de beber umas quatro cachaças, Jovino Pereira ficou soltando fogo pelas ventas. Lá pelas tantas, um sujeito da fazenda São Mateus comentou:
– É, a festa tá boa mais eu vou pra casa, purque Zé Baiano pode chegá aqui a quarqué hora e bota nóis pra dançá nu...
Jovino, bêbado, soltou a língua:
– Mais cuma, home, se Zé Baiano tá morto e interrado? Tem mais de quinze dia qui Antonho de Chiquim matou ele...
– Antonho de Chiquim matou quem?! – perguntou Laurindo Gomes, dono da fazenda Cachoeira, que estava de orelha em pé, desconfiando daquela comemoração.
Jovino repetiu, e foi além:
– Zé Baiano tá morto e interrado na fazenda Lagoa Nova. Foi matado pur Antonho de Chiquim, Pedo Guede, Pedo de Nica, Toinho, Dedé e Birindim!...
Pronto, acabou-se a festa.
Em plena noite, dois fazendeiros, Chiquinho das Aroeiras e Antônio Campinas, foram com uns candeeiros ao local indicado e lá constataram: tinha uma coisa enterrada num formigueiro.
O fato foi comunicado ao delegado de São Paulo, Germino Góis. O sargento Epaminondas telegrafou para a capital e foi dar uma olhada no local da chacina.
Exumação e reconhecimento dos corpos
Em Aracaju, os homens do governo puseram as mãos na cabeça: quando Lampião soubesse ia arrasar Sergipe. Como havia dúvida quanto à veracidade da morte de Zé Baiano, mandaram exumar os corpos.
O próprio chefe de polícia do Estado, Osvaldo Nunes dos Santos, que era major do Exército, deslocou-se no dia 26 de junho até Alagadiço, levando o médico legista Dr. Carlos Meneses, peritos, jornalistas, fotógrafo e uma formidável escolta da Polícia Militar.
A essa comitiva juntaram-se muitos moradores de São Paulo. Em pleno inverno, muita chuva, a estrada era um atoleiro só. De Alagadiço para a Lagoa Nova todo mundo foi a pé. O local da luta ficou apinhado de curiosos. Todo mundo queria ver o desenterramento dos cangaceiros. Tinha gente até de Itabaiana.
A exumação dos corpos foi feita no dia 26 de junho de 1936 – 19 dias depois das mortes.
A cova era rasa, e logo a picareta trouxe a descoberto uma cabeça. Os corpos estavam amontoados uns sobre os outros. O coveiro levantou a cabeça pelos cabelos. Antônio de Chiquinho informou:
– Essa cabeça é de Zé Baiano. Os outo nóis nun cortou as cabeça não.
Quando retiraram o primeiro corpo, que não estava degolado, Antônio de Chiquinho disse:
– Esse aí é Acilino. Zé Baiano vai sê o úrtimo, tá pur baxo de todos.
O segundo corpo era o de Chico Peste. Depois, o de Demudado. E de fato Zé Baiano estava embaixo de todos. O médico mandou que tirassem as roupas de mescla azul dos cadáveres e jogassem água para remover a lama dos corpos. As roupas tiveram de ser cortadas de facão, pois os corpos tinham inchado. O ar era quase irrespirável, apesar da água-de-colônia e outros perfumes e desinfetantes que as pessoas usavam a fim de assistir aos trabalhos.
Para ajudar na identificação dos corpos, haviam mandado chamar várias pessoas que conheciam os cangaceiros. Trouxeram inclusive Marcionílio Soares, de Carira, que apesar de ser o subdelegado daquele povoado era um notório coiteiro de Lampião. Os corpos estavam tumefatos, nem pareciam gente. Porém Marcionílio foi preciso:
– A cabeça de Zé Baiano é esta aqui. Ói a faia no dente. O corpo dele é o
grandão. Cortaro a cabeça dele. E esse aqui eu acho qui é de Demudado.
Os outo eu nun cunheço.
O médico legista começou a fazer as devidas anotações em sua prancheta: faltava na boca de Zé Baiano o incisivo mediano direito superior; seu corpo...
Marcionílio afastou-se, engulhando. Nem o diabo aguentava o fedor.
O corpos foram fotografados de um a um pelo fotógrafo Artur Alves Costa. Foi batida uma chapa da cabeça de Zé Baiano, e outra de seu corpo estendido no chão com a cabeça equilibrada sobre ele. Por fim, o médico ordenou o batimento de uma chapa dos corpos em conjunto.
Terminada a perícia, os corpos foram recompostos e inumados no mesmo local.
A volante de Antônio de Chiquinho
Os homens que mataram Zé Baiano foram levados para Aracaju a fim de prestar depoimentos e contar à imprensa o incrível feito. Lá, ficaram 8 dias na residência do comerciante Antônio Conrado. O governador do Estado, Eronides de Carvalho, que era amigo de Lampião, fez um arremedo de comemoração pela vitória dos valentes homens de Alagadiço e mandou dar-lhes um prêmio de 9 contos de réis – recompensa pífia, já que teria de ser dividida por seis.
Depois disso, Antônio de Chiquinho e os companheiros foram chamados mais duas vezes à capital. Temendo-se que quando Lampião soubesse do fato destruísse Alagadiço, foi constituída uma volante com 15 rapazes do próprio povoado, tendo como comandante Antônio de Chiquinho. Cada componente da volante ganhava 118 mil-réis por mês. Antônio de Chiquinho fez furos nas paredes de sua casa, para olhar o que se passava na rua sem precisar abrir porta ou janela, e pelos quais podia atirar. Ele chamava sua casa de “fortaleza”. Mandou cavar trincheiras nos caminhos de acesso a Alagadiço, onde os rapazes da volante e os próprios moradores se revezavam, dia e noite, para resistir a um eventual ataque. O povoado vivia em clima de guerra.
A existência dessa volante foi breve – no ano seguinte o governador mandou desarmar Antônio de Chiquinho e seus companheiros, acusados de desordens e bebedeiras, sem nenhum resultado prático. O jornal Correio de Aracaju considerou uma iniquidade a atitude do governo, e publicou uma carta de Antônio de Chiquinho em que ele rebatia os insultos à sua moral e refutava as acusações de que sua tropa andava embriagada, observando que havia poucos dias o coronel Liberato tinha louvado a conduta de sua volante.
A notícia chega ao coito do Craibeiro
Lampião passou a noite de São João de 1936 num coito no Riacho Craibeiro, abaixo de Poço Redondo. A festa emendou a noite com o dia, sem parar. Foi quando chegou um coiteiro de Alagadiço com uma carta, informando que tinham matado Zé Baiano e três cabras.
Ao ler a carta, Lampião mandou parar a festa. Chamou Zé Sereno e Manoel Moreno e deu-lhes a notícia.
Zé Sereno ouviu a história, baixou a cabeça e comentou:
– Eu tou triste nun é só pela perda do meu primo, mais tamém pela traição de um amigo. Nun posso cumprendê cumo um home de cunfiança cumo Antonho de Chiquinho pôde fazê ũa coisa dessa, matano um home qui era cumo se fosse irmão dele...
– Apois é... – concordou Lampião. – Os cangacero de verdade tão se acabano... E nun inziste mais amigo cumo antigamente. Só farta agora eu sê traído pelo coroné Antonho Caxero ou pur João Maria da Serra Nega...
Lampião mandou que Manoel Moreno, Zabelê e Diferente fossem apurar o que aconteceu. No dia 29 de junho, eles estiveram na cova de Zé Baiano.
Veneno, foice e fuga para Goiás
Segundo Felipe de Castro, Zé Baiano e seus companheiros teriam sido mortos com uma feijoada envenenada.
Estácio de Lima escreveu que os cangaceiros foram mortos dormindo, a golpes de foice e machado.
Há outra versão segundo a qual a história contada pelos coiteiros era tudo mentira, tendo Zé Baiano escapado vivo e fugido para Goiás, destino de todos os fugitivos àquele tempo, sendo morto em seu lugar um sósia dele. Os matadores teriam custado a comunicar o fato às autoridades justamente para que os corpos apodrecessem e não fosse possível a identificação. A exumação dos corpos foi feita 19 dias depois das mortes. Em lugar de Zé Baiano teriam matado um sujeito de quase igual porte e catadura, sósia dele.
O pesquisador Antonio Amaury Corrêa de Araújo, que se tornou amigo de Zé Sereno, Criança e outros ex-cangaceiros, tendo inclusive hospedado em sua casa em São Paulo por mais de cinco meses a legendária Dadá, viúva de Corisco, afirma que essa versão lhe “foi narrada por Dadá e particularmente aceita pelo primo da vítima, Zé Sereno e outros antigos companheiros”.
Amaury considera que, embora não haja provas, é possível que tal versão seja verdadeira, dadas certas coincidências e circunstâncias que cercam o caso. Os matadores eram coiteiros de Zé Baiano, o mais rico dos cangaceiros. O próprio Antônio de Chiquinho acenara-lhe com a possibilidade de escapar, rico e incógnito, das garras dos inimigos e das malhas da lei. Como para viajar Zé Baiano precisava de uma roupa decente, no início de maio Antônio de Chiquinho pediu a um alfaiate que fosse à sua casa a fim de tirar as medidas do cangaceiro para fazer um terno. A roupa ficou pronta em quinze dias. Havia nas vizinhanças um caboclo chamado Acilino que vivia só com a mãe viúva. Quem o conheceu dizia que esse rapaz tinha a mesma altura e a mesma cor de Zé Baiano. Na noite de 6 de julho, véspera da “morte” de Zé Baiano, o cangaceiro esteve na casa da viúva e levou Acilino consigo.
Dadá disse a Amaury que chegara a conhecer Acilino e confirmou sua semelhança física com Zé Baiano. E mais: Dadá revelou que quando soube dessa história esteve com a mãe de Acilino, que, chorando muito, lhe disse que Zé Baiano tinha levado o rapaz para morrer.
Zé Baiano e Antônio de Chiquinho haviam marcado uma fatada para o dia seguinte. Zé Baiano embriagou os próprios companheiros e ajudou a matá-los. Acilino foi vestido com as roupas de Zé Baiano. Tiraram ou quebraram um incisivo central superior para propiciar o “reconhecimento”. Foi morto também outro indivíduo, de identidade ignorada. Zé Baiano combinou com Antônio de Chiquinho para somente espalhar a notícia do fato muitos dias depois. Teria sido por isso que os corpos somente foram exumados 19 dias depois da chacina. Culminando a farsa, o reconhecimento de Zé Baiano foi feito pelos próprios coiteiros. E o mais curioso é que os corpos foram reconhecidos apesar de estarem em adiantado estado de putrefação... Zé Baiano teria vivido algum tempo na região de Poços de Caldas, Minas Gerais, e depois foi dono de um restaurante na capital paulista.
A ronqueira
Embora Lampião procurasse restabelecer o equilíbrio de antes, as coisas não iam bem. Sergipe já não era mais o refúgio que fora tempos atrás. Apesar de a polícia sergipana fazer corpo mole, as autoridades não tinham controle sobre as volantes dos outros Estados. As volantes de Zé Rufino e Odilon Flor revezavam-se em Carira, Alagadiço, Poço Redondo e Canindé.
No dia 2 de setembro de 1936, três meses depois da morte de Zé Baiano, Lampião esteve no local da chacina. Pretendia invadir o povoado, dizendo que não ia deixar ninguém vivo, mas foi informado de que o povoado estava cercado de trincheiras. Considerou que não valia a pena correr o risco de invadir Alagadiço só por vingança. Todo o bando de Zé Baiano havia sido morto. Vingança não traria de volta o amigo. Maria Bonita ainda não havia se recuperado inteiramente do ferimento sofrido em Pernambuco. Além do mais, parece que havia um canhão em Alagadiço. Da Lagoa Nova, escutava-se o estampido.
É que Antônio de Chiquinho tinha mandado fazer uma arma estranha, que ele disparava de vez em quando, fazendo um barulho assustador. O canhão de Alagadiço era na verdade uma ronqueira – apesar do estrondo ensurdecedor, era totalmente inofensiva.
A famosa ronqueira de Alagadiço.
Lampião rezou um terço junto à cova. Estava acompanhado de mais de 30 cangaceiros, entre homens e mulheres. O bando acampou no pé da Serra do Saco. No dia seguinte, tomou a estrada de Carira, porém adiante dobrou à esquerda, no rumo de Pinhão. Na noite de 3 para 4 de setembro, em Paripiranga e arredores, houve saques e espancamentos.
Nas caatingas de Sítio do Quinto e Guloso havia muitos coiteiros, pois ali era o “feudo” do cangaceiro Ângelo Roque. Lugar bom para descansar uns dias.
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