Por Rostand Medeiros
Para os que desenvolvem pesquisas espeleológicas na zona rural dos municípios potiguares de Felipe Guerra e Governador Dix-Sept Rosado, é muito normal ouvir histórias sobre a passagem do bando de Lampião pela região. São narrativas contadas à noite, nos alpendres das casas sertanejas, pelos filhos e netos de falecidas testemunhas daqueles dias complicados. Atualmente, é cada vez mais raro ouvir esses fatos diretamente das testemunhas oculares, pessoas que estiveram diante dos cangaceiros ou tiveram suas vidas alteradas pela passagem daquele bando sinistro e que jamais foi esquecido. Recentemente, porém, os membros dos grupos espeleológicos os quais trabalham na área tiveram a rara oportunidade de ouvir a história de uma senhora, que contou como ela e sua família, para fugirem do flagelo do cangaço, utilizaram como esconderijo uma pequena cavidade da região.
Na horda sinistra
No dia 12 de junho de 1927, um domingo, fazia dois dias que o bando do cangaceiro pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião, estava em território potiguar. Seu objetivo era assaltar a
próspera cidade de Mossoró, fato que culminou numa das mais interessantes páginas da história do
cangaceirismo. Vindos da Paraíba, o bando, que oscilava entre quarenta e cinco a cinqüenta e cinco homens, havia cruzado a fronteira na altura da cidade potiguar de Luís Gomes, trilhando um caminho onde não faltaram roubos, seqüestros e assassinatos. As comunidades que estavam na possível rota dos cangaceiros, portanto, estavam todas em estado de alarme. Mantiveram um vitorioso combate contra a polícia potiguar na região da atual cidade de Marcelino Vieira e, de lá, contornaram a grande Serra de Martins. Na manhã daquele domingo, os bandidos passaram próximos à pequena Vila de Gavião, atual cidade de Umarizal, sem atacá-la e continuaram seu trajeto em direção ao norte.
No pelotão de frente do bando, como batedor, seguia um dos homens de confiança do chefe Lampião. Era um cangaceiro moreno, baixo, forte, com idade aproximada de trinta e sete anos, conhecido como Sabino. Perigoso e valente, não é surpresa que uma das funções dessa figura era realizar os primeiros contatos e ataques às fazendas da região. Como Sabino não conhecia a área, ele utilizava muita violência para conseguir informações sobre os proprietários mais abastados, bem como os caminhos a serem seguidos, partindo para suas rapinagens com um pequeno número de cangaceiros, mas sem se afastar muito do grosso do bando. Por volta do meio-dia, depois de "visitar" as fazendas Campos, Traíras e Arção, os liderados por Sabino dominaram a Fazenda Santana. Antes, porém, da tomada dessa última propriedade, o grupo avançou para um ataque rápido à próspera Fazenda Mato Verde.
Assim, em meio à notícia da aproximação do bando de Lampião e a todo o tumulto que tomou conta da região, uma garotinha de dez anos, Leonila Tomé de Sousa, via seu mundo virar de pernas para o ar. Leonila era uma das dez filhas da proprietária da fazenda Mato Verde, Teonila de Sousa Nogueira. Essa senhora,como todos na região, estava assombrada com a passagem desse bando sinistro e imaginava o que poderia fazer para proteger suas filhas e outros parentes. Quanto às mulheres, principalmente, pairava o medo constante e concreto diante da ameaça de violências sexuais as quais poderiam ser perpetradas pelos cangaceiros, pelo que, era preciso esconder as moças de Mato Verde dos bandidos de Lampião.
Fuga da Fazenda
Segundo o pesquisador Sérgio Augusto de Souza Dantas, autor do livro ,através de informações coletadas junto a José Pinto Barra, morador do Sítio Brejo, foi o agricultor Sebastião Ferreira, conhecido como "Bicho Tiota", que na noite anterior, 11 de junho de 1927, trouxe aos moradores da Fazenda Mato Verde a notícia da aproximação do bando.
Passados oitenta e um anos, Dona Leonila recordou aos espeleólogos que ela e suas irmãs fuga da fazenda
Lampião e o Rio Grande do Norte - A História da Grande Jornada debulhavam vargens de feijão, quando chegou o lavrador com a notícia, mas confessou que, na sua ingenuidade infantil, não acreditou na história de "Bicho Tiota". Lembrou, perfeitamente, que o agricultor afirmou que o bando viria pela ladeira do Sítio Riacho Preto, a pouca distância da fazenda. Diante desses fatos, sua mãe partiu para juntar tudo que pudessem carregar e se esconderem, mas, devido à chegada da noite, decidiram dormir na fazenda. Tomaram o cuidado de deixarem as portas abertas para uma rápida fuga, sempre com alguém assumindo a posição de vigilante, para alarmar ante a aproximação de estranhos.
Pela madrugada, unidas a outros familiares, Dona Teonila Nogueira e suas filhas partiram em busca de abrigo e apoio dos parentes que habitavam na área da Fazenda Passagem Funda, a quase quatro quilômetros de sua propriedade. Segundo Dona Leonila, ao chegarem ao local, mesmo diante de toda aflição, sua mãe levou todos para orar e pedir proteção na Capela de São Pedro. Inaugurada em 29 de junho de 1903, esse templo católico foi construído pela família Barra e se mantém, até hoje, em perfeito estado de conservação, como uma lembrança daqueles tempos turbulentos.
Na Fazenda Passagem Funda foi indicado, como esconderijo à família, um abrigo nos contrafortes do paredão calcário que margeia o principal rio da região, o Apodi. Atualmente, esse local é conhecido como "Grota da Taipa de Zé Felix". A origem desse nome, segundo a tradição oral dos moradores locais, deve-se ao fato de ter habitado, nas proximidades do paredão, um velho senhor, o qual seria um ex-escravo. Trazendo, portanto, os pertences que puderam carregar, a família foi tratando de descer a parede do vale através de uma pequena trilha, até hoje aberta e bem conservada, buscando acomodações na exigüidade do espaço da grota.
Somados à família de Dona Teonila Nogueira, foram os parentes Adauto Câmara, Maria Eulália Câmara e cinco filhos. A senhora Maria Eulália havia dado a luz há poucos dias, mas, mesmo debilitada, o medo era tamanho que em nenhum momento ela pensou em deixar de utilizar a gruta como abrigo. Assim, em meio ao manto da noite, todos os parentes foram se acomodando da melhor forma possível, imbuídos em um temor terrível, aterrorizados pela ideia de que, a qualquer momento, algum bandido surgisse no local.
Marcas da fuga: O antigo casarão da Passagem Funda, com mais de duzentos anos, onde Dona Teonila bateu pedindo ajuda na noite de 11 de junho de 1927. Imagem de S. Almeida Netto.
Mãe e filha: Leonila (abaixo) ainda guarda lembranças lúcidas da coragem da mãe, Teonila (acima). Reprodução Ricardo Morais.
Abrigo na gruta
Durante alguns dias, todos faziam o possível para evitar que a fogueira, acesa para cozinhar, fosse alta, ou exalasse muita fumaça, sendo, assim, percebida pelos cangaceiros. Dona Leonila recorda que, apesar das dificuldades passadas, os dias vividos na "Grota da Taipa de Zé Felix" não deixaram de ter seu lado de aventura e novidade para uma menina de dez anos.
Quem atualmente visita o local, encontra-o preservado, como era naqueles estranhos dias de junho de 1927. O panorama da parte mais alta do paredão é belíssimo, marcado pelos meandros largos e sinuosos do Apodi. Mais à frente, avista-se o antigo pontilhão, o qual liga as duas margens do rio.
O acesso à cavidade é difícil, devido ao declive, devendo ser feito com cuidado, sendo a área bem provida de árvores, que margeiam o rio. Apesar do local estar localizado a uma distância média de vinte metros das águas do Apodi, à meia altura do paredão, chamam atenção três frondosas e antigas oiticicas (Licarnia rigida) que camuflam totalmente a cavidade, compreendendo-se o porquê da utilização dessa área como esconderijo.
Quem está à distância, praticamente ignora que naquele ponto há um abrigo com condições mínimas para seres humanos se protegerem dos elementos naturais, na forma qual se valeram àquelas pessoas. Sobre a cavidade, tecnicamente, ressalta-se que sua formação está intimamente relacionada aos meandros do Rio Apodi.
Sua gênese está associada ao desprendimento de um grande bloco calcário, que gerou uma fratura na parte alta do paredão. Tal fratura é bastante visível aos que caminham na trilha, denotando as largas possibilidades de haver, logo abaixo, alguma estrutura espeleogenética. A Grota da Taipa de Zé Félix é um abrigo calcário que se estende por praticamente cem metros, acompanhando à margem do rio. Em alguns trechos, torna-se mais profundo, mas, em média, é bem raso. Sua importância história e cênica, porém, é inquestionável, destacando-se o local como de relevante valor ambiental.
Os cangaceiros
Os cuidados tomados pela mãe de Dona Leonila Sousa tiveram fundamento. Na tarde do dia 12
de junho de 1927, Sabino e seu pequeno grupo de cangaceiros estiveram na Fazenda Mato Verde.
Ao encontrarem a propriedade abandonada e desprovida de objetos de valor, os celerados quebraram inúmeros objetos, praticando desordens, retornando, entretanto de mãos vazias. Contudo, ainda nesse dia, Sabino conseguiria saborear uma vitória. Por volta das quatro horas da tarde, o pequeno grupo de cangaceiros seguia o caminho de retorno à Fazenda Santana para se juntarem ao bando sinistro. Foi quando o cangaceiro conhecido como "Coqueiro" avistou um carro com dois ocupantes e o ordenou parar.
Não sendo obedecido, o bandido não titubeou e abriu fogo contra o velho. No automóvel seguia o motorista Francisco Agripino de Castro, conhecido em Mossoró Chevrolet como "Gatinho" e o rico comerciante e fazendeiro Antônio Gurgel do Amaral, que buscava alcançar a sua fazenda no lugarejo conhecido como "Brejo do Apodi". Sabino fez ambos prisioneiros e os levou ao encontro de Lampião.
O chefe, então, ordenou que o motorista "Gatinho" levasse um pedido de resgate à família do prisioneiro. Para Antônio Gurgel do Amaral, homem culto, que havia feito parte da Intendência de Natal (cargo na atualidade equivalente ao de prefeito), produtor de algodão de reconhecida capacidade, começava um suplício que o faria prisioneiro do bando de Lampião até 25 de junho. Sobre o seqüestro, Gurgel deixou como legado um pequeno e precioso diário de sua convivência com o bando de cangaceiros.
Morando na Gruta
Para muitos na região, persiste a idéia de que o provável objetivo do sub-grupo de cangaceiros de Sabino não seria a Mato Verde, mas a pequena Vila de Pedra de Abelha, atual município de Felipe Guerra. Talvez pelo fator tempo, distância, dificuldades de acesso ou por terem informações de que a vila era pequena, Sabino desistiu do intento. Para Dona Leonila e seus familiares, protegidos no abrigo de calcário, esses acontecimentos eram desconhecidos.
Ela informou que várias outras pessoas buscaram abrigos nas cavernas da região, principalmente nas cavernas do "Lajedo do Rosário". Igualmente, os mais idosos moradores da Passagem Funda, narram histórias de pessoas abrigadas em cavidades naturais, como a Carrapateira. Durante aqueles dias de medo, mesmo após a chegada da notícia do fracasso do ataque do bando de Lampião a Mossoró, poucos ousaram voltar às suas moradias. Como a localização do bando continuava incerta e as notícias eram todas tratadas como boatos, a atitude mais prudente era continuar em seus esconderijos. Segundo Dona Leonila, no caso de sua família, a permanência na cavidade foi de quase trinta dias.
A Grota da Taipa de Zé Félix: Pequeno abrigo que serviu de refúgio, durante quase trinta dias, a mais de quinze pessoas no ataque.
Imagem de Ricardo Morais.
Imagem de Ricardo Morais.
Patrimônio natural e cultural: A proximidade do Rio Apodi faz com que o entorno do abrigo possua rica fauna e flora, o que, somado à importância cultural do local, reforça a necessidade de preservação. O antigo casario, contemporâneo à época do ataque, ainda se encontra bem preservado (acima). Imagem de S. Almeida Netto.
A história do cangaço, especificamente no tocante ao ataque de Lampião a Mossoró, verdadeiro divisor de águas na vida desse cangaceiro, já foi contada e recontada em vários livros, jornais, folhetos de cordéis e em inúmeros trabalhos acadêmicos. Contudo, muitos detalhes paralelos à passagem do bando de cangaceiros pela região foram deixados de lado e gradativamente são esquecidos. Nesse sentido, ouvir e resgatar essa história, através das lúcidas lembranças de Dona Leonila Sousa, no alto dos seus bem vividos noventa e um anos, é grande privilégio.
Matéria da revista eletrônica Lajedos nº 1 - Abril de 2008.
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