Por Fábio Costa "Senhor das armas!
Uma das mais curiosas relações do homem com as armas de fogo é justamente o paradoxo que logo depois de seu aparecimento se tentou minimizar ou mesmo anular o efeito destruidor de seus projéteis. As primeiras armas foram contemporâneas das armaduras medievais e estas últimas pouco puderam fazer para proteger seus usuários, pois apesar do paulatino reforço em sua chapa para aguentar os disparos dos iniciais arcabuzes (armas com peso ao redor de 5 kg e com calibre que podia chegar aos 2 cm), em breve não resistiriam a perfuração causada por um projétil do mosquete.
O brutal mosquete foi sucessor do menor arcabuz, geralmente era uma arma de 10/12 kg de peso, com calibre em torno de uma polegada -2,5 cm- e dizem que foi introduzida na Espanha no final do século XVI, devido ao peso tinha de usar como auxílio para a pontaria uma forquilha. Os soldados que a usavam ficariam eternamente famosos com o romance “os Três Mosqueteiros” de Alexandre Dumas.
Gravura do autor deste texto |
Existem muitas crendices populares sobre armas, como por exemplo na França, que em meados dos séculos XVIII e XIX acreditava-se que havia “balas encantadas” que perseguiam o alvo até abatê-lo. Dentre as nacionais, como as que dizem que a depender do alvo a arma perdia a capacidade de atingir com precisão ou mesmo disparar, como atirar numa caçada contra um animal encantado que na verdade podia ser um dos seres elementais das nossas florestas como o curupira, a caipora, o mapinguari, desgraçaria ou mesmo causaria a morte do caçador.
Atirar contra fantasmas, contra lobisomens e mulas sem cabeça, dentre outras criaturas fantásticas que habitavam as florestas e os sertões místicos etc. Atirar contra um “murundu” (cupinzeiro) estragaria a precisão da arma. Dentre muitas outras superstições se enquadram as crenças (principalmente no nordeste do Brasil) do “corpo fechado”, que era invulnerável aos ferimentos de facas e armas de fogo, ou capaz de enganar ou desnortear o perseguidor ou assassino através de fórmulas mágicas, patuás ou “breves”. Um dos mais célebres portadores de “corpo fechado“ foi o cangaceiro Lampião, que teria sobrevivido a diversos ferimentos de arma de fogo.
Conseguia-se o corpo fechado de várias maneiras, a mais comum era com o uso de uma poderosa e secreta oração que podia ter vários efeitos: impedia que a arma do adversário disparasse, causando negas de percussão, ou caíam as balas alguns metros após deixar o cano, ou a depender da força da magia saía água do interior do cano!! Evitavam que o inimigo visse com clareza o possuidor da “mandinga” (o famoso “envultamento”), embaralhando a sua visão causando tonturas ou alucinações.
Meu querido avô me contava dentre as várias e coloridas estórias que ouvi dos mais velhos na minha meninice, quase todas indo do período final do Séc. XIX até a “República Velha”, sobre um cidadão que se metamorfoseava - aos olhos do observador apenas, diga-se de passagem - em um pé de pimenta. Outro caso que ilustra bem este tipo de mandinga me foi contado pelo “seu” Anísio, um descendente direto de escravos que foi trabalhador agregado da fazenda de meu avô, que um cruel e famoso pistoleiro do norte de Minas Gerais estava sendo perseguido por um camarada disposto a vingar-se.
Numa estrada deserta os dois oponentes se encontraram a la Western spaghetti, quando a carabina “papo amarelo” foi empunhada pelo vingador, seus olhos são obscurecidos por uma nuvem negra, não morrendo este por pouco, em outro encontro quase fatídico desta vez numa vila, o assassino é protegido por um grupo de crianças que saídas do nada fazem barreira contra as balas da 44, enquanto o maléfico vai embora rindo. A magia se quebra quando o “vingador” encontra na casa da amante do pistoleiro uma peça de sua roupa, e com ela amarrada à boca do “rifle” finalmente acerta-o, matando-o, o cadáver do assassino ficou encostado numa árvore, morreu de pé, tendo seus dedos sido quebrados para se poder retirar o revólver...
Outra maneira de se conseguir o corpo fechado é usando um patoá, patuá (ou “breve”) palavra certamente derivada dos dialetos franceses “patois” (cuja pronúncia é mesmo patoá), é em síntese um amuleto em forma de saquinho que contém uma oração, ossos, cordões bentos, ou outro sortilégio. É carregado junto ao corpo, ou nas vestes do portador. Este também permite “envultar” das diversas maneiras já elencadas acima ou fazer armas falharem. Sobre isso meu avô contava que na Serra do Vitorino (Bahia), lá por volta de 1920, dentro de uma vendinha começou uma confusão, três elementos empurram um outro para fora do boteco, e em seguida já no terreiro descarregam suas “rabo de égua” (grandes garruchas de percussão) contra ele, de dentro da fumaceira da pólvora negra saiu o camarada ileso!!
Este “dito cujo” em seguida arranjou confusão com um “caboclo cabo verde” (mulato de cabelo liso, mestiço de índio) e armou para matá-lo, quedou-se acocorado dentro do ranchinho de pau-a-pique do caboclo próximo a porta dos fundos, mas o branco de sua camisa destacou-se num dos buracos do barro denunciando-o, e foi ali que a boca da garrucha do índio, que o havia visto a distância por causa disto, foi colocada, de um tiro a queima-roupa nas costas o infeliz desabou mas não morreu de imediato, levado a vila lá resistiu por algumas horas. Morria... A vela era colocada nas suas mãos e num gemido gutural e medonho retornava do mundo dos mortos com muito sofrimento, chamado para atender o caso meu bisavô Teófilo Carvalho (o sangrador da vila, fazia sangria, abria abscessos etc, numa época difícil onde não haviam médicos formados por perto).
- Seu Tiófilo, tira o que está em meu bolso esquerdo, ele não me deixa ir...
- Olha aí, vai confiar nestas porcarias, pois foi bem no lugar do patuá que a bala entrou.
Logo que retiraram o patuá o camarada deu um gemido medonho e foi-se embora para de onde não se volta...
Colocaram como de praxe a moeda na boca do defunto (simpatia para que o seu assassino não pudesse ir longe, por causa dos pés inchados ou ficasse andando em círculos, certamente isso encontra eco nos antigos ritos gregos mortuários de pagar a travessia do rio Aqueronte ao barqueiro do Hades: Caronte, adaptado para os costumes patriarcais e violentos do nordeste e Brasil agrário). O caboclo assistiu do mato as exéquias do valentão, esperou o sepultamento, retirou a moeda do cadáver, e como diz o povo caiu “na arca do mundo”...
Podia-se ainda conseguir o corpo fechado quando se usava imagens ou objetos sagrados inseridos na própria carne (pequenas imagens de santos por exemplo), assim fez um camarada que encomendou a outro que ia a Roma, uma “lasca do santo lenho” (a santa cruz original), o outro não achando lhe deu uma lasca de madeira qualquer, com o que ele passou a barbarizar com atitudes de valentão, o compadre espertalhão ficou curioso com tais façanhas feitas com um reles pedaço de pau, e esclarecido o engodo acabou a fé do suposto recente valentão, que voltou a ser “mofino” (covarde).
Deve-se esclarecer que o corpo fechado ainda podia ser obtido pelos rituais da Umbanda e do Candomblé (os “catimbozeiros” das caatingas), por simpatias, e além de proteger contra armas de fogo e brancas servia ainda pra adivinhar emboscadas, proteger contra mordidas de animais hidrófobos ou venenosos, mau olhado, bruxarias, evitar coices e amansar animais bravos... Mas em nenhum dos casos podia-se atravessar rios ou cercas de arame farpado, pois nessa situação ficavam vulneráveis aos tiros dos inimigos...
Se tudo isso é verdade não sei dizer, mas por via das dúvidas fico com a opinião de Shakespeare em Hamlet : “Há mais coisas nos céus e na terra, Horácio, do que sonha a tua vã filosofia".
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