por Joaquim Ignácio de Souza Netto
Sem rosto, nem vulgo |
Vamos deixar por entendido que seu nome era Antonio Rocha, um nome qualquer escolhido a esmo, um codinome.
Era um dia de muita chuva e de muito frio quando ele foi internado na clínica de Neurologia do Hospital das Clínicas. Veio numa maca empurrada pelo Ditão, um negro muito forte e muito alto, uma espécie de guindaste de nossa clínica, uma máquina de trabalhar e um bom amigo.
Antonio Rocha tinha os olhos muito azuis que não piscavam e olhavam para o nada. Seus cabelos eram brancos, muito brancos e lisos, parecendo fios de seda. Ficou num leito da enfermaria seis da ala norte. Seu estado físico era deplorável, o corpo cheio de escaras infectadas, sujo, esquálido, aparentemente catatônico.
Dona Maria José, das maiores profissionais que eu já conheci, era a chefe de enfermagem da Neuro e ficou nos observando e orientando, naquele primeiro dia, enquanto higienizávamos aquele pobre velhinho. No dia seguinte, pela manhã, Antonio foi levado para tomografia em uma clínica particular que tinha um dos dois ou três tomógrafos que existiam no país, na Avenida Rebouças, um quarteirão antes da Faria Lima (o HC só veio ter esse serviço alguns anos depois)...
Todos os dias, após recebermos o plantão, íamos examinar as pranchetas dos pacientes. As prescrições do Antonio não mudavam: 1) Dieta p/SNG (sonda naso-gástrica), 2)Curativos nas escaras, 3) Cuidados c/ sonda Folley, 4) Cuidados Gerais, 5) Dipirona S/N (se necessário).
Um dia perguntamos para um dos médicos se o paciente não receberia nenhum outro tipo de tratamento ou uma medicação mais específica. A resposta do médico nos deixou meio atordoados... O paciente não tinha nenhuma doença física, era portador, de acordo com o histórico, de um estado depressivo absurdo. Ele tinha se fechado dentro de si mesmo...
Qualquer dia desses, ele "ressuscita"... . Disse-nos o médico... Vão cuidando dele, conversem com ele, liguem o rádio perto dele, contem piadas, façam o diabo...Pacientes como o Antonio eram banhados em uma mesa ou maca num grande banheiro que existia na Neuro. Os banhos eram feitos com uma mangueira por onde jorrava água temperada - mais fria, mais quente, morna. Um dia, durante um desses banhos, ouvimos um sussurro: - Essa água tá mais fria que a peste... - Antonio Rocha "ressuscitara"!
Os médicos que estavam passando visita foram chamados e foi uma alegria muito grande em todo o andar...
Em duas ou três semanas o velhinho, já curado das escaras, andava pelo corredor da clínica e falava, e como falava!... Ele tinha sido cangaceiro do bando de Zé Sereno e largara o cangaço, pouco antes do massacre de Angicos, para se casar... Contou-nos "causos e mais causos" do cangaço. Mas, por incrível que possa parecer, nem Zé Sereno, nem Corisco e muito menos Lampião eram seus ídolos. Ele tinha profundo respeito por Ângelo Roque, o Labareda. De acordo com Antonio Rocha, o "Anjo" Roque era uma fera, uma força da natureza que metia medo até em Lampião...
Angelo Roque
Através de uma reportagem na TV, um médico veio saber que Zé Sereno estava vivo e tinha um pequeno comércio em São Miguel Paulista. De posse do endereço, foi pessoalmente buscar o velho chefe de bando para visitar seu antigo comandado. Foi uma loucura. Mais histórias e mais "causos" foram contados, muitas gargalhadas, muito sangue jorrando, muito tiro, muitas correrias pela caatinga do Raso da Catarina..
Apenas no dia de sua alta ficamos sabendo que, após o assassinato de um filho seu em Carira, Sergipe, ele entrara em depressão chegando a ficar naquele estado, parecendo um cadáver que respirava!
Perguntamos prá ele:
- E aí, Antonio... O que você vai fazer de sua vida agora?
- Eu?... Faz mais de 40 anos que eu não mato ninguém... O homem que matou meu filho "tá" vivo e mora no Carira, pertinho do meu sítio... "Tô" véio e a policia não vai nem ligar se eu começar tudo de novo... Só espero que a vingança não tenha se consumado... Existem mecanismos legais para fazer a justiça: além do mais quem já ouviu falar de um cangaceiro de cabelos brancos, fugindo pela caatinga?Publicado originalmente no site São Paulo minha cidade
Matéria sugerida por Arquimedes Marques que ainda nos disponibilizou o conteúdo de uma conversa com o autor do aludido texto que nos traz maiores detalhes, vamos conferir.
Em 24/03/2011 20:56, Ignacio Netto escreveu:
O caso do Antonio Rocha (era seu nome verdadeiro!) mexeu bastante conosco, primeiro por sua simpatia, pois depois que êle voltou à realidade, propriamente à viver, desembestou a contar casos e mais casos de seus tempos de correrias, de lutas e fugas, das refregas contra os "macacos"! Ele parecia um daqueles atores que vivem em função da platéia e,como bom ator, fazia suas exibições à noite; passava as noites acordado, rodeado por gente da enfermagem e médicos, falando, nos levando prá dentro da caatinga, nos apresentando a outros cangaceiros, Zé Sereno, Ângelo Roque, seu ídolo, Corisco, Bem Te Vi, Virgulino Lampeão... À pergunta "Maria Bonita" era bonita mesmo?, respondia: "Não, era uma mulherzinha comum, não sei o que Lampeão viu nela! Não tinha nem bunda, era uma "talba", e ninguém chamava ela de Maria Bonita, era Maria de Lampeão e só!... À noites de mal dormir sucediam dias de MUITO DORMIR, a ponto de os médicos precisarem voltar no fim da tarde para realizarem seus exames - "Não adianta acordar o velhinho, coitado! Deixa êle dormir... A gente volta à tarde...
Antonio Rocha fazia parte do bando de Zé Sereno (segundo suas palavras) e assim permaneceu, ainda segundo suas palavras, até deixar o bando para casar. De acordo com êle, ninguém entendeu muito bem sua saída... Com o tiroteio em Anjicos/Piranhas, Corisco, que vinha da Paraíba para juntar-ae ao s bandos que foram destroçados, de repente viu-se órfão de pai e mãe, desprotegido e sem dinheiro. Lembrou-se então de Antonio Rocha, do Carira, e foi para seu sítio embusca de coito, comida e dinheiro... Antonio nos contou que Corisco tinha muito respeito por Dadá pelo fato dela ser a única mulher dos bandos que respondia ao fogo dos macacos, bala por bala! Disse que Dadá, sim, era bonita, mas era braba como uma onça! " As outras mulheres só sabiam gritar durante os tiroteios, encher os cabelos de perfume e fazer fofoca umas contra as outras. Mesmo Maria de Lampeão era assim. A única coisa que ela sabia fazer bem era costurar. Fazia os "liformes" de Lampeão e do compadre Zé Sereno".
Ainda de acordo com minhas lembranças, o Antonio informou que Corisco e Dadá ficaram no sítio por um mês ou mais e foi a última vez que os viu...
Quando os remanescentes dos bandos foram anistiados em 1945, ele não moveu uma palha para oficializar sua anistia, sentia-se anistiado e perdoado por Deus.
Não tenho certeza, mas acredito que ele ficou internado no Hospital das Clínicas entre 1978 e 81. Ele era natural de Sergipe, do Carira (ele sempre falava com muito orgulho do Carira), imagino que tivesse no mínimo dois filhos - um deles assassinado, o que causou o "desligamento" temporário de suas emoções e sentidos - e um outro, caminhoneiro que veio buscá-lo quando recebeu alta. Como o nome é verdadeiro, acredito que seja fácil consultar os arquivos do HC da época para obter mais informações. Antonio Rocha deve ter morrido, já era entrado em anos quando foi internado e já se passaram mais de 30 anos...
Antonio Rocha foi um dos pacientes que marcaram minha vida e minha profissão. Ainda hoje, quase 40 anos passados, lembro-me de sua voz, seu sotaque nordestino carregado, seu apetite (quando voltou à vida desandou a comer que não parava mais). Ficou internado na Neurologia por 2 ou 3 meses; era como se fosse nosso mascote, paparicado o tempo todo pelos médicos e pela enfermagem, No tempo em que esteve conosco não recebeu visitas de parentes, apenas de antigos companheiros de cangaço: Zé Sereno e Sila, Balão esqueci de citar que na visita que Zé Sereno fez ao velho amigo, Balão também esteve presente. Na época, Balão também tinha um comércio pequeno em São Miguel Paulista, o maior reduto nordestino dentro de São Paulo...e, se eu não me engano (estava de folga) de Bem-te-vi.
O Ex cangaceiro Balão |
Grande Antonio Rocha, que Deus tenha, realmente, te anistiado.
No tempo da internação de Antonio Rocha, eu era atendente de enfermagem. Estava retornando à profissão após ficar como burocrata por 12 anos na Escola de Comunicações e Artes da USP. Como o sr. bem sabe, aqueles foram anos duros, de ditadura no país e trabalhar no meio de 15.000 alunos era complicado, com o Exército, DOPS, Marinha, Esquadrões da morte comendo solto. Daí minha volta à Enfermagem. Precisei recomeçar de baixo, como Atendente pois meus cursos perderam o valor com o passar dos anos., mas graças à Deus o HC me propiciou refazê-los. Uma curiosidade: uma das pessoas que cuidou do Antonio Rocha foi uma enfermeira de nível universitário, filha do Senador Antonio Vilela, que também fora cuidado por nós, loira, muito bonita. Vez ou outra a vejo na TV e parece que ela está casada com um figurão aí do NE.