Era
uma vez... Dois primos, Inácio e Severino, brejeiros dos bons, que
viajavam semanas a fio, de vinte a trinta quilômetros por dias com os
burros carregados, só parando para alimentação frugal e à noite para o
cochilo mal acomodado, sempre debaixo de árvores que dessem uma boa
sombra, e os protegessem do sereno da noite, como os Juazeiros,
Mulungus, Trapiazeiros, Umbuzeiros e Craibeiras pelo Agreste Nordestino:
Brejo, Curimataú, Seridó, Cariri e Sertão com uma tropa de burros: dois
de sela e doze animais de carga, com seus arreios aonde dependurados
iam à malotagem, bruacas ou os sacos com as mercadorias, sempre cobertas
com lonas, fora a burra madrinha, velha e sabida que encabeçava e
escolhia os caminhos melhores, sempre enfeitada com fitas e um sininho
característico ou mesmo um chocalho com um som bem peculiar, onde os
outros animais a seguiam quer de dia ou à noite; desses burros, dois
eram animais com a troçada do dia a dia: comida, redes, água, capote
feito de algodão grosso, onde matava o frio e os protegias da chuvas
(poncho), panelas, fumo de corda, cachaça, trempe de ferro para
cozinhar, lona, sabão e o diabo a sete. A comida se resumia, quase que
carne de charque, ou carne seca (chamada de sol) farinha de mandioca,
queijo de coalho, toucinho, sal, café, açúcar, arroz, temperos, feijão
dos dois tipos: o mulatinho e o de corda, xerém de milho e um tipo mais
fino para fazer cuscuz.
Saiam
sempre de Riacho Fundo, fazenda localizada entre Esperança e Areial na
Paraíba, Próxima da fazenda Arara do meu avô Manoel Henriques
(Virgolino) da Silva.
Inácio
Viviam
nas propriedades de seus familiares, onde há muito se produzia feijão
de arranca (mulatinho), fumo, que era transformado em “fumo de rolo”,
pronto para ser usado, erva doce, batatinha inglesa, agave, café e mais
uma finidade de alimentos para sua sobrevivência e para a
comercialização.
Muitos
tropeiros também partiam do Brejo Paraibano, levando estas mercadorias
como também o açúcar mascavo, a cachaça e a rapadura, produzida nos
engenhos do Brejo.
No
entanto, esses dois meus parentes, há muito tempo só negociavam com
feijão, café e fumo, lá pras bandas de Parelhas, Ouro Branco, Macaíba e
adjacências no Rio Grande do Norte. Numa dessas viagens, levaram apenas
feijão e fumo de corda, não conseguiram vender o feijão, pois naquele
ano o inverno fora bom e quase todo mundo tinha de sobra para comer e
vender. Venderam o fumo ligeiro e Severino se decidiu tentar vender os
sacos de feijão mulatinho na cidade de Natal,RN.
Disse para o Inácio – Vá levar os burros descarregados pra casa, avise a família meu destino e venha se encontrar comigo por lá.
Assim o fez. Um seguiu com seis burros carregados e o outro desceu em direção a Esperança para fazer o que haviam combinado.
Inácio
logo que pode, empreendeu viagem, num burro bom, meeiro que o cabra
chegava a cochilar em cima da sela. Num dia e meio espirrou na capital
Rio-grandense, foi direto para o local marcado. Ficou meio contrariado
por não encontrá-lo, danou-se a procurar pelos arrabaldes: locais onde
sempre se reuniam os tropeiros, depois de desocupados, como ainda se ver
hoje nos dias de feiras nas cidades do interior, (sempre um campo de
futebol, em terreno abandonado). Bares, bodegas, lupanares, casas de
jogos, pensões baratas, currais onde sempre os animais esperavam,
pacientemente, pelos donos, a um preço módico, com direito apenas a água
e a garantia de que de lá ninguém os roubariam.
Passou-se
um dia e nada do primo. Tirou onda de detetive. Começou a fazer
perguntas e nada de notícias, já aperreado, passado quase uma semana,
mandou avisar pra família do acontecido e que iria continuar nas buscas.
Era um mistério medonho. O homem desaparecera sem deixar rastros. Como o
primo tinha vontade de conhecer o norte, ele logo pensou que esse seria
o rumo que tomara, para vender o danado do feijão, achando que por ali
não havia encontrado negócio, seguiu viagem, e na primeira cidade, teve
finalmente notícias de um tropeiro com seus burros. Era só esta notícia
que tivera, podia ser mentira mais também verdade, resolveu tirar suas
dúvidas, pois já faziam mais de duas semanas da separação dos dois.
Seguiu em frente e nada de alcançá-lo.
Notícia
aqui e notícia acolá, depois de três meses chegou à cidade de Sena
Madureira no Acre, local onde estava havendo migração de nordestinos
para trabalhar com a extração da borracha, ficou por lá, sempre
procurando o primo e trabalhando juntamente com aquela multidão de
desgarrados da sorte. Lutou durante uns três a quatro anos até que
resolveu voltar sem o parente, - o mato havia aberto e fechado e
engolido o homem – e, como já havia amealhado um bom dinheiro. Fez finca
pé de lá e em pouco tempo chegava ao seu velho Brejo, com o coração
partido com o sumiço do amigo. Não sabia como se apresentar e narrar aos
familiares do desaparecido. Havia de fato enviado cartas, mas falar de
cara a cara era outra coisa, olhar nos olhos dos pais matutos e dizer
que seu filho não existia era outra coisa mais dura de enfrentar.
Trazia consigo bastante dinheiro e muitas armas, frutos do seu trabalho como seringueiro.
A
fama de “rico” logo chegou aos ouvidos de muita gente, inclusive de
grupos de cangaceiros, que naquela época perambulavam entre o Brejo e o
Cariri Paraibano como: Antonio Silvino, João de Banda, Nêgo Zé Luiz de
Queimadas, João Pichaco e tantos outros desocupados.
Um
dia lhe contaram que Antônio Silvino e João de Banda vinham tomar o
dinheiro e as armas que possuía. Mudou-se da propriedade onde vivia e
foi pra bandas de Pocinhos numa fazenda chamada Amaro. Enterrou as
referidas armas e escondeu o dinheiro suado que havia conseguindo na
luta do ouro branco e contra a malária (impaludismo), no Norte do País,
na cidade de Sena Madureira no Acre. Dormia de dia e vigiava de noite,
uma bela noite chegou Silvino com sua tropa, cutucaram tudo, reviraram
todos os caixotes da casa fizeram ameaças a uns moradores velhos,
mataram de tiros várias galinhas e nada de dinheiro e armas.
O danado do bicho também era sabido e jurou que Antônio Silvino não tomaria seus anos de trabalho.
Mudou-se
para outra propriedade de nome Algodão perto de Soledade PB; a velha
raposa logo descobriu o seu paradeiro e foi bater lá, mas o cabra dizia
que “seguro morreu de velho e prevenido ainda estava vivo”, procurou
ainda mais se esconder e despistar os cabras que viviam envenenados por
dinheiro e armas.
Cada
vez mais os cangaceiros ficavam com raiva, por não achar o que não era
dele e desta vez, Antonio Silvino, fez o que não era seu costume. Inácio
havia ido a fazenda Arara providenciar um enxoval de um sobrinho que
havia nascido deixando um menino tomando conta da casa.
Antonio
Silvino emboscou-se com sua tropa atrás de umas pedras, esperando uma
oportunidade; nisso viu o menino botar a cabeça fora de casa e aí pegou o
molecote, vendo mais uma vez que havia dado o bote perdido, com raiva,
deu uns riscos de punhal nos couros do pequeno vigia para que servissem
de recado, matando dessa vez umas vacas que estavam no curral atrás da
casa.
Inácio
fugiu novamente, desta vez foi se embrenhar no lugar chamado Lajedo
Vermelho, onde moravam outros parentes, perto da cidade de Soledade.
Dizendo sempre que o que era dele ninguém botava a mão. Dessa vez quase
que os cabras o pegavam, escapou por um triz. Aprendeu a lição e parou
de se gabar e contar lorotas sobre quem era e o que tinha.
Nesse
ínterim havia conhecido uma moça de nome Mônica do Município de Santa
Luzia, formosa e rica, namorou, noivaram e casaram. Nunca mais Antônio
Silvino teve notícias dele. Comprou duas fazendas: Canoa e Poço Salgado,
juntamente com seu cunhado (Anysio) e com o dinheiro que tinha guardado
montaram uma desencaroçadeira (bolandeira) e prensa de algodão,
comprava e vendia gado, negociava com peles de animais num pequeno
curtume que tinha na fazenda, possuía caminhões e um automóvel
tornando-se um dos mais importantes chefes político e poderoso do lugar.
(Ribinha). Antônio Silvino levou a breca, mas não pegou o seu dinheiro
nem suas armas.
Muito
tempo depois, voltava da feira, montado numa burra branca e pequena,
mas que voavam pelas estradas pedregosas da região, enquanto seus filhos
e meu tio vinham no caminhão com as mercadorias negociadas na feira,
quando - já velho – subiu os degraus da casa e sua esposa abriu a porta
contente e satisfeita, se surpreendeu com um cabra, que já o vinha
seguindo, o atacando pelas costas, dando-lhe uma gravata com um punhal
na mão, era um monstro de forte, dominando-o totalmente, a esposa tentou
socorrê-lo, mas o satanás plantou-lhe um pontapé que a deixou
desmaiada, nisso entra meu tio com seus dois primos e vendo aquela cena
horrível, pegou uma trave de miolo de Aroeira que estava atrás da porta,
danou na nuca do assaltante derrubando-o, o bicho ainda ficou ciscando
no chão e imediatamente os outros tiraram suas facas e fizeram o resto
do serviço. Mas, como era dia claro, engancharam o negrão pela gola da
camisa no armador e esperaram que anoitecesse, para no silêncio e no
escuro da madrugada, sem que ninguém visse, pudessem carregá-lo numa
rede e jogá-lo num serrote que havia distante dali uma meia légua, num
lugar quase inacessível.
Conto
essa história dos meus parentes, hoje, porque já se passaram mais de
cem anos e os personagens já não existem mais e nunca souberam quem era o
bandido que tentou roubar o velho e cansado Brejeiro Inácio.
Túmulo de Antonio Silvino no Cemitério Monte Santo em Campina Grande PB, reformado por iniciativa própria de Sulamita de Souza Buriti (Foto).