Cangaço a Vapor – Parte 1
Por Wilson Júnior
– Precisamos… sair… da cidade! – Boião arfava. A mão empapada de sangue sobre o talho na barriga fracassava em conter o sangramento, mas temia que ao retirá-la dali deixaria escapar suas tripas .
O sol do meio dia chicoteava, nem o chapéu e a casaca de couro eram capazes de proteger.
– Fui tolo. Como me deixei enganar, ainda mais por um plano tão simples? A febre do ouro nubla o olhar do homem.
– Não faça isso, meu Capitão. Não é hora de se culpar – Risonho olhou para o Capitão Severino dos Santos. Nunca o vira daquela forma, nem na guerra, o homem perdido. Ninguém parecia igual, nem seria igual dali para frente.
– Te alui homem. O bando ainda tá vivo em nós quatro. Não por muito tempo, se tu não te recompor – as palavras de Cheirosa acertaram o Capitão como um tapa.
O homem se levantou, limpou o misto de suor e sangue da testa com as costas da mão e olhou para a esposa numa gratidão silenciosa.
– Risonho, me ajuda com o Boião. Cheirosa, você vai na frente dando cobertura. O desabamento vai nos dar algum tempo, os Encouraçados não podem nos seguir nessas vielas. – Qualquer vestígio de dúvida desaparecera do olhar do Capitão, sendo substituída por uma determinação afiada como a lâmina da peixeira que carregava no cós da calça.
Os gritos podiam ser ouvidos por todo lado, sargentos e capitães dando ordens. Tiros pipocavam, e desmoronamentos lançavam lufadas de poeira que passavam dos telhados das casas e casebres. Coronel Romualdo botaria aquela cidade abaixo se preciso fosse para capturar Capitão Severino.
O bando se deslocava pelas vielas tentando manter um equilíbrio entre a pressa e a cautela. Carregar Boião por si só já era tarefa dura, mas os canhões em suas costas e os vários quilos de explosivos tornavam tudo mais difícil, ainda mais com os pistões de sustentação danificados. Cheirosa ia na frente servindo de batedora, parando de esquina em esquina, a carabina de repetição empunhada.
As portas e janelas das casas estavam todas fechadas, o que era uma sorte, já que havia menos chance de alguém denunciar a posição do grupo. Cheirosa caminhou apressada, olhou num cruzamento e fez sinal para que os três homens avançassem. Boião tropeçou batendo um dos canhões na parede de barro de uma casa, derrubando um pedaço e abrindo um buraco que expôs o interior escuro ao sol. Dentro, um pai e uma mãe abraçavam seu filho.
– Misericórdia Capitão! – clamou o pai de corpo magrelo e olhos chorosos.
Sem responder, Severino meteu a mão na sinta e puxou uma sacola de onde ressoou um barulho metálico. Arremessou-a para dentro da casa, fazendo a família se encolher a ainda mais.
– Uma compensação pela avaria e pelo silêncio – disse, e partiu sem esperar para ver a felicidade nós olhos da família ao encontrar dobrões de ouro dentro da pequena sacola.
Avançaram pelas ruelas, sabendo que o cerco se fechava. Apertaram o passo, mas a pressão da marcha foi demais para Boião, que tropeçou novamente, quase levando os dois homens ao chão consigo.
– Cheirosa, pare! – gritou Severino. A mulher estacou pouco antes de uma esquina e olhou para o marido irritada, temendo que grito tivesse entregado a posição.
– Não dá mais pra mim não, Capitão.
– Não diga isso homem, falta pouco…
– Pouco para quê, Senhor? Saindo da cidade é uma ruma de chão até o acampamento, não vou conseguir – disse o gigante, com a secura de quem enxerga o fim. – Já aceitei.
– Aqui! – O grito ecoou pelo cruzamento. Severino levantou a cabeça e viu o dono da voz, um soldado que segurava com as duas mãos a carabina de Cheirosa. – Aqui! Eles tão aqui! – gritou o sujeito pela segunda vez, puxando a arma das mãos da mulher.
A cangaceira soltou a arma, o soldado tropeçou para trás erguendo a carabina sobre a cabeça num movimento exagerado pela falta de resistência por parte de Cheirosa. Num bote de cascavel, a peixeira de Cheirosa deslizou pela garganta do homem, que caiu vazando sangue sem entender o que havia acontecido. A mulher olhou para o lado e viu ao longe a maré de homens vindo em sua direção. Um segundo depois a parede de barro explodiu em vários pontos, alvejada pelos dos soldados. O barro cobriu seu cabelo e rosto e fez uma pequena nuvem de poeira.
– Temos que ir! – Cheirosa já estava limpando a areia e se agachando para recuperar sua arma.
– Quero uma dose – pediu Boião.
Severino puxou a pena garrafa de cachaça da cintura levando em direção do gigante caído.
– Né pinga não, meu Capitão, quero o Soro.
O homem olhou para a barriga de seu soldado. O sangue cascateava de suas vísceras à mostra.
– Você morre, homem. Vai piorar o sangramento.
– Eu só preciso de… alguns segundos… para cobrir vocês.
Severino quis argumentar, mas sabia que seria em vão. Viu no olhar do moribundo que não haveria palavras para demovê-lo.
– Risonho, vá ajudar Cheirosa na cobertura, eu cuido de Boião – o Capitão tirou a seringa de vidro de dentro de uma embalagem de couro. – Seu coração não vai aguentar muito tempo depois
– Eu não preciso de muito tempo – Boião respondeu exibindo um sorriso equino.
Severino preparou a injeção, penetrando o braço de Boião. Antes de injetar o líquido amarelo, entregou-lhe uma tira de couro grossa.
– Morda isso.
Sem questionar, o cangaceiro colocou na boca e travou a mandíbula. Já vira o efeito do Soro antes, não era bonito.
No instante em que a primeira gota do líquido entrou em sua veia, seu braço começou a tremer, em seguida o corpo inteiro. Era como se óleo fervente tivesse sido despejado em seu interior. O Capitão aproveitou para colocar pólvora no buraco em sua barriga e selar a ferida no fogo, aproveitando as dores do soro para disfarçar a menor. O sangramento não parou, mas pelo menos, não jorraria por efeito da droga.
Severino ouviu os ossos de sua mão estalarem devido a força de Boião, que agora se dividia entre urrar e apertar os dentes até o sangue sair das gengivas.
– Vai passar, aguente mais um pouco!
As veias do gigante estavam saltadas, ele babava sangue, seus olhos revirados, cada músculo no seu corpo retesado.
Então, parou.
***
Semanas antes…
– É chegada a hora, meu bando! – anunciou Severino, com um sorriso largo no rosto.
– Hora de quê, homem? Deixa de ser amostrado!
– Ah, meu caro Risonho, a hora que estamos há dez anos esperando! – o Capitão fez uma pausa dramática, gostava de um teatro.
– Fala logo, Capitão! – gritou um.
– Bora logo, homi, deixa de firula – instigou outro.
– Ouro! – respondeu Severino, deixando a palavra arrebatar os homens. – Nosso ouro!
Essas palavras faziam os olhos de qualquer homem brilhar. Ouro resolvia todos os problemas, ouro é poder, pensava Severino.
– Meu Deus, Capitão, deixe de suspense que meu coração é frágil – disse Boião.
– O Brasil finalmente liberou o ouro da República do Equador, a indenização pela derrota na guerra.
– E você acha que nós vamos ganhar algo desse ouro? – perguntou Cascavel.
– Ganhar? Desde quando alguém nos dá algo? A gente vai roubar! Melhor ainda, vamos confiscar, por que na verdade esse ouro é nosso.
– Nosso? – perguntaram.
– Ora, meu bando, quem ganhou aquela guerra? Quem tava na linha de frente? Quem voltou para casa depois e não recebeu nada do governo depois de entregar tudo, sangue, suor, lágrimas, irmãos e irmãs?
– Nós! – gritou o bando em conjunto. Vivas e urras se espalharam entre os homens.
Há dez anos, Severino abdicou de uma posição confortável no governo quando soube que seus homens não receberiam as terras prometidas como compensação aos soldados. A bela República do Equador já começou sendo pouco diferente do Brasil, negligenciando o sertanejo, aqueles que lutaram e ganharam a guerra.
– Com esse ouro, o sonho de meu padrinho Frei Raimundo Eremita pode se tornar realidade. Vamos fazer nosso próprio país, um lugar onde a terra será de todos, como foi um dia o Éden. Os homens serão iguais e cada trabalhador vai ter um pedaço de terra.
Severino pôde ver o impacto das palavras. Apesar dos mais de dez anos desses homens no cangaço e na guerra, no fim são apenas camponeses. A maioria só queria um pedaço de terra, que perderam pela ganância dos que governam.
– Como isso vai ser feito? – perguntou Cheirosa, furtando os soldados do mundo idílico.
– O ouro vai sair de trem do Rio de Janeiro para Recife. Atacaremos em Caruaru, onde é menos policiado.
– Essa quantidade de ouro vai tá bem guardado, soldados tanto do Brasil quanto da República.
– Mas temos o efeito surpresa a nosso favor. É atacar, tomar o trem e desviar para um caminho do nosso interesse. Temos aliados em Juazeiro do Norte. E com a quantidade de ouro não vai ser difícil comprar algumas pessoas.
– É arriscado – disse Cheirosa.
– Quando a aposta é alta, sempre há risco. O que me dizem homens? Ouro?
– Ouro!!! – gritaram todos.
***
Por um momento, o corpo de Boião relaxou. Severino temeu que tivesse sido demais para o amigo já fragilizado. Num átimo, ele abriu os olhos, suas pupilas dilatadas como as de um gato no escuro. Num salto o homem estava de pé, os pistões rangendo e soltando vapor suficiente para engolfá-los numa nuvem.
– Corram! – gritou o cangaceiro gigante, seus olhos vermelhos, suas veias saltadas.
– Calma, homem? – perguntou Severino.
– Pega o Capitão e vá. Eu vou cobrir para vocês!
– Não… – tentou responder Severino, mas foi empurrado de lado por Boião, que se adiantou em entrar no corredor de onde vinham os inimigos.
– Vem, não perde tempo, aceita! – gritou Cheirosa para Severino, aparvalhado pela ação de seu soldado.
Eles correram na direção oposta a Boião. O guerreiro ocupava quase a ruela toda, impedindo os soldados de fazer mira; em compensação, era difícil errar qualquer disparo nele. Os soldados atiravam no estreito corredor, acertando o gigante em várias partes, mas como um touro bravo ele continuava em frente. Boião atirava de volta, derrubando vários soldados com a potência de sua carabina modificada. Um homem normal cairia ao usar a espingarda do gigante, que soltava rajadas deixando para trás fumaça e vapor. Ele só queria chegar um pouco mais perto, mostrar a potência do equipamento de suas costas sobre aqueles filhos de uma égua. Sentia o calor da caldeira às costas, o equipamento que deveria ajudar a carregar os explosivos tornando-os mais leves estava danificado e adicionava peso.
O guerreiro se aproximava, porém por trás dos soldados surgiu um Encouraçado, seu corpo enorme e desengonçado derrubando paredes das casas, o piloto inexperiente tentando fazer mira em Boião, balançando as alavancas forçando as caldeiras do monstro que cuspia vapor para o céu. Mesmo com o soro, o cangaceiro sabia que um ataque daquele exoesqueleto gigante o pararia.
Boião parou e mexeu no seu equipamento numa corrida contra o tempo. O gigante de metal travou a mira e disparou.
O soldado olhou para trás, viu que o resto do bando se afastava, apertou o botão e sentiu seu corpo ser varado pelos disparos do blindado. Não houve dor, só uma dormência. Ele ouviu o riso dos soldados, então os pistões às suas costas começaram apitar.
A caldeira soltou uma rajada de vapor violenta que lançou o corpo de Boião como uma bala pelos últimos metros. O gigante aterrissou no meio dos soldados e teve o prazer de sorrir uma última vez ao ver suas caras de pavor.
Severino, Cheirosa e Risonho sentiram o impacto da explosão. A bola de fumaça, fogo e vapor subiu tão alto que podia ser vista de longe. Mas não podiam parar: a morte de Boião comprou algum tempo, e eles não a desperdiçariam.
Pescado em Escambau
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