Por Jack François de Witte (Foto)
Caros companheiros de estrada, pois é exatamente disto que se trata. Eu poderia ter dito "Caros amigos, caros participantes deste seminário, caros colegas, etc." Mas é a ideia de estrada, de caminhada, no sentido próprio e figurado, que me vem em primeiro lugar ao espírito. Andanças do pensamento, da razão, por trilhas sinuosas e escondidas, à procura de uma verdade histórica ou então o percorrido por Benjamin Abrahão, que levou um tempo imenso e teve que superar uma infinidade de obstáculos unicamente com o intuito de se aproximar e em seguida filmar Lampeão, Maria Bonita e o grupo deles em seu esconderijo. Caminhos de cangaceiros, andarilhos infatigáveis, percorrendo sem se esgotar o Sertão através de sua incontáveis veredas de terra e de pedras, farejados pela morte, num dia caçadores noutro caça, navegando pela caatinga como um barco desgorvernado.
A vida quis que eu nascesse na França. Não se escolhe o lugar de nascimento, não é verdade ? Assim eu tive uma educação calcada no espírito de Descartes, filósofo e matemático, que nos incitava a "Nunca aceitar uma coisa como verdadeira sem que eu evidentemente a soubesse como tal." eu não tinha nascido quando Lampeão morreu e desse modo nunca fui testemunha direta de qualquer acontecimento que lhe diz respeito. A dúvida intelectual, consequentemente, sempre esteve presente quando me dediquei às minhas pesquisas jornalísticas e bibliográficas relativas à vida dele. Essa desconfiança é reforçada pela minha experiência pessoal: a cada vez que tive a oportunidade de ler na imprensa um artigo sobre um ocorrido do qual eu tinha sido testemunha ou mesmo participante, observei erros mais ou menos importantes.
Acontece a mesma coisa com os depoimentos dos que viveram esta saga cheia de "ruídos e de furor": Quanto mais o tempo passa entre um acontecimento e a sua narração por um ator ou uma testemunha direta, mais a informação recolhida está sujeita à caução: às falhas da memória, à necessidade, consciente ou não, de se valorizar, de impor seu ponto de vista. A ideia preconcebida e a subjetividade da pessoa que entrevista, se misturam formando um labirinto no qual o espírito mais lúcido se perde ! Existe no meio disto tudo um núcleo de verdade, uma pepita, mas não se pode saber de antemão se o historiador, o pesquisador, vir a encontrá-la ! Seriam vocês capazes de descrever as suas férias do ano passado, não esquecendo nada de significativo O diabo está nos detalhes...
Eu escrevi este livro, digo isso francamente, antes de tudo para me dar prazer a mim mesmo. Eu não pretendia convencer ninguém, somente a mim mesmo. Contar a história, uma história - de um homem que nasceu, cresceu, amou e foi morto, assassinado seria mais justo, no Sertão, a partir de informações que eu podia obter e daquilo que pude ver com meus próprios olhos. Tudo isto em função da minha cultura. A objetividade não existe, a sinceridade, sim. E para compartilhar com o maior número de pessoas - depois de Canudos, que tinha transtornado a jovem República brasileira, - a epopeia, as peregrinações deste homem - o mais célebre dos cangaceiros -, e de todos que acreditaram nele.
Assim que eu me aposentei, e animado pelo estado de espírito que acabo de descrever para vocês, me pus ao trabalho. Antes de tudo eu precisava reunir a maior quantidade de informação possível, de preferência confiável, sobre o assunto. Eu vim varias vezes ao Brasil. Frequentei os sebos, acionei as minhas relações e consegui compor uma biblioteca de uns quarenta livros que eu "devorei" (engraçada, esta expressão), com o marcador (de texto) ou um lápis na mão.
Para que vocês entendam, a primeira obra que eu li foi a sutil tese de doutorado, em francês, da socióloga Patricia Sampaio Silva, "Sur les traces de Virgolino, un bandit nommé Lampião" (Nas pegadas de Virgolino, um bandido chamado Lampião), a qual me fez tocar de perto a complexidade das relações humanas no Sertão, onde o racional se mistura constantemente com o misticismo. Para um engenheiro de formação e de profissão, a mensagem não era superficial !
Passei varias semanas na Biblioteca Nacional do Rio, fazendo pesquisa com microfilmes, ajudado por minha esposa, os artigos dos jornais da época relatando os fatos e feitos de Lampeão bem como dos outros atores que faziam a história do Cangaço. A História oficial, com um grande H, de certa forma. Fotocopiei (com a amável ajuda da administração, faço questão de sublinhar..), centenas de recortes editados pela imprensa, que eu traduzi me esforçando para respeitar o tom enfático e o seu estilo afetado, formal, etc. Desci no terreno: lá onde Lampeão nasceu, lá onde ele viveu, lá onde ele travou batalhas importantes, lá onde ele morreu, em Angico. As descrições, mil vezes repetidas, de seus combates com os volantes e o exército regular tomavam forma diante de meus olhos.
Seguiu-se uma fase de compilação, de triagem desta informação superabundante, muitas vezes contraditórias nas datas e nos fatos, às vezes lisonjeiras demais diante de uma improvável verdade, às vezes facciosas, preconceituosas, segundo todas as evidências. Quando se quer convencer demais...
Chegou a hora da escrita. Respeitar os princípios que eu já expus: a dúvida, a pluralidade de opiniões ."Segundo se é poderoso ou miserável", as narrações de um mesmo fato se diferenciam. Quantas vezes eu li, cobrindo um período de vinte anos, artigos dos jornais anunciando a morte ou o fim provável de Lampeão e de seus sicários ! Certo, este fenômeno não é novo nem especifico ao Brasil nem à época ! Mas ele complica a procura da verdade - desculpem, de uma verdade -, para aquele que pretende contar a História. Desse modo, cada capítulo é dividido em dois: a primeira parte é um recorte de artigo editado pelos jornais da época o qual introduz um fato preciso narrado em seguida na "primeira pessoa" (puramente uma escolha literaria) na segunda parte do capitulo. Dois enfoques diferentes assim, de uma mesma história. Os regionalismos que permeiam o texto, intraduzíveis em francês, são pontuados por uma definição sucinta em pé de página para facilitar a compreensão dos leitores não familiarizados com Nordeste e, segundo as sua importância, são mais bem explicitados em léxico no fim do livro.
Este livro já foi escrito, publicado na França (1), traduzido - e bem traduzido ! - em português brasileiro pelo meu amigo Luiz Frigoletto, mas não ainda publicado aqui. Todavia, é pensado para os leitores brasileiros, e notadamente os Sertanejos, a quem ele era destinado prioritariamente ! Mas o que importa: eu vivi quatro anos apaixonantes.
Desde pequeno me interessei pela Revolução Francesa e os bandoleiros. Mesmo antes de saber ler, eu folheava incansavelmente um livro enorme contendo magníficos desenhos sobre os mais famosos bandoleiros da França, os fora-da-lei. Este meu interesse por Lampeão é bem natural, genético, de uma certa forma ! Quem nunca sonhou, um dia, ainda que furtivamente, bloqueado no seu carro em um engarrafamento, quase sufocado nas horas do "rush" em pleno metrô, suando engravatado pelo seu terno, vítima gritante de uma injustiça da administração ou da discriminação de seu superior hierárquico, tudo abandonar, despir-se de seus badulaques, se tornar justiceiro, partir para bem longe, reencontrar a natureza e os grandes espaços, se sentir livre e responsável por si mesmo ?
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NOTA CARIRI CANGAÇO: Fui apresentado ao pesquisador e escritor francês Jack de Witte pela querida amiga Luitgarde Barros, por longo tempo amiudamos uma salutar correspondencia, via email; atravessando o Atlântico; hoje temos o prazer de trazer um pouco mais deste francês apaixonado pelo cangaço e pelo nordeste e apresentá-lo aos muitos amigos da família Cariri Cangaço. Em março Jack estará desembarcando no Rio de Janeiro e virá direto para o Crato, quando passará uma semana como nosso hóspede, de sobra, ainda vamos, juntos, participar do Seminário Centenário de Maria Bonita em Paulo Afonso, Piranhas e Canindé. Seja bem vindo Jack, entre e se abanque ,a casa é sua!
Gostei!
ResponderExcluirLaura (Portugal)