Bastidores de um dos melhores documentários sobre o Rei do Cangaço
Uma medida da liberdade que tínhamos no Globo Repórter foi a experiência de mistura de linguagens proposta, em 1975, por O último dia de Lampião. O projeto, que considero um dos meus melhores trabalhos para a TV, partiu de uma vasta, mas dispersiva pesquisa de Amaury Araújo sobre o fenômeno do cangaço.
Cineasta Maurice Capovilla |
Escolhido o episódio da morte do mito, ocorreu-me a ideia de não apenas fazer um documentário baseado na pesquisa e nos depoimentos, mas usar tudo isso como base para uma dramatização dos conflitos daquele dia fatídico. Ainda em São Paulo, encontrei Zé Sereno e sua mulher, Sila. Zé Sereno era o segundo ou terceiro homem na hierarquia do bando, detentor da inteira confiança de Lampião. Entrevistei-o no leito de um hospital. Sila, que era a costureira do bando e havia convivido intimamente com Maria Bonita, não só deu testemunho como também foi contratada para fazer os figurinos do filme. Sila mandou um bilhete para Dadá, a companheira de Corisco, na Bahia, pedindo que ela nos ajudasse com os chapéus, alpercatas e apetrechos de couro, sua especialidade.
Sila |
A reconstituição deveria ser o mais fiel possível aos acontecimentos. Cruzamos depoimentos para confirmar cada informação. Não apenas entre os cangaceiros, mas até do lado da volante. O único dado assumidamente imaginário é a hesitação do Tenente João Bezerra da Silva, chefe da volante, em matar Lampião.
Eu não tinha depoimento direto a respeito disso, apesar de a pesquisa do Amaury apontá-lo como o coiteiro-mor, vendedor de armas para o próprio Lampião. E ainda havia uma estranha coincidência: ambos teriam nascido no mesmo dia e na mesma hora. Aquela perseguição tinha algo de romanesco – parecia escrita, em vez de acontecida. Com Fernando Peixoto, fui criando o roteiro da reconstituição segundo um cronograma, hora a hora, dos dados reais que apurávamos nas entrevistas.
"Mané" Felix |
Joca Bernardo |
O telegrafista que comunicou a presença de Lampião. |
Para o elenco, privilegiamos a semelhança física. Emanuel Cavalcanti era o ator perfeito para o papel de Zé Sereno. Bezerra foi interpretado com convicção por um capitão da PM que era primo do personagem real. Heládio Brito, meu ator-talismã nessa época, fez o sargento Aniceto. Lampião, o próprio, não recebeu maior destaque por ser um mito difícil de representar.
Tive receio de pôr em sua boca palavras que comprometessem a plausibilidade. Preferi mostrá-lo sempre de longe, de costas ou de banda, deixando um distanciamento proposital. Achei que isso ajudava na proposta documental do filme. A reunião de relatos e confissões permitiu-nos compreender e mostrar algumas motivações ocultas da opção pelo cangaço. Havia casos de vingança pessoal, ressentimentos e interesses diversos alimentando tanto o grupo de Lampião, como os macacos. Um dos soldados, por exemplo,era parente de sangue de José de Neném, o primeiro marido de Maria Bonita, e certamente estava na volante não somente por mero profissionalismo, mas até em busca de vendeta.
Durval Rosa |
Ex soldado Abdon |
Ancorar a reconstituição histórica em dados comprovados não deve ser uma limitação para o cineasta.
Muito pelo contrário, é o que lhe garante a liberdade de experimentar sem o risco de trair seu objeto. Reconstituir, por exemplo, o momento da morte solitária de Getúlio Vargas seria um despropósito. Ninguém sabe sequer como ele empunhou o revólver. Nesses casos, é melhor partir para a dramatização livre, sem qualquer apoio documental. Não aconselho ninguém a reconstituir a devoração do Bispo Sardinha pelos índios caetés...
• O último dia de Lampião (16 mm, Cor, 48 min)
Direção: Maurice Capovilla - Produção: Blimp Film para o Globo Repórter - Supervisão: Carlos Augusto de Oliveira - Roteiro e texto: Capovilla, Fernando Peixoto - Fotografia: Walter Carvalho Corrêa - Montagem: Laércio Silva - Som: Mario Masetti - Produção executiva: Quindó - Pesquisa: Amaury C. Araújo, C. Alberto R. Salles - Guarda roupa: Sila e Dadá - Música: Zé Ferreira, Oliveira Francisco - Narração: Sergio Chapelin - Elenco: Emmanuel Cavalcanti (Sereno), Salma Buzzar (Sila), Eduardo Montagnari (Lampião), Edileuza Conceição (Maria Bonita), Heládio Brito (Aniceto), Luiz Bezerra (Bezerra), Otávio Salles
1ª Fotografia - Acervo pessoal de Maurice Capovilla
Demais imagens do documentário foram inseridas por nós, para ilustrar o artigo.
Autor Carlos Alberto Mattos.
São Paulo, 2006.
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
Coleção Aplauso Cinema Brasil
Pescado em Aplauso
SIMPLESMENTE NOTA 10. VALEU KIKO. ADERBAL NOGUEIRA
ResponderExcluirParabéns pela matéria!
ResponderExcluirFiquei muito curioso para ver o programa. Procurei no youtube e não encontrei. Alguém pode disponibilizar?
Grande abraço.
Obrigado messier Aderbal.
ResponderExcluirRenato a intenção era postar junto com vídeos do Yutube. Já postamos MEMÓRIA DO CANGAÇO e um dos mais difíceis que é A MUSA DO CANGAÇO, mas realmente por enquanto não há ocorrencias deste para poder compartilhar com os amigos.
Abraçando!
Consegui uma cópia do documentário com um professor da universidade. Me pergunto se a Globo retiraria do ar trechos do doc postados no youtube, por questão de direitos de imagens...
ResponderExcluirQualquer coisa: m.socram@hotmail.com
Marcos
Olá Marcos.
ResponderExcluirNão sei até onde vão as restrições do YouTube. Sei que ultimamente eles estão fazendo análise completa de cada proposta. Temos alguns vídeos provindos de outras emissoras que ainda estão ativos. Esse Doc seria ótimo. Seria muito bem vindo.
Tente!
Abraçando.