A saga do libanês Benjamim Abrahão para filmar o rei do cangaço e a repercussão nas páginas do “Diário de Pernambuco”
Por Rostand Medeiros
Comemorando Dois anos de Lampião Aceso, Rostand Medeiros nos contempla com mais este resultado de suas andanças no rastro dos cangaceiros.
Desta vez com menor transpiração e muita inspiração. Em viagem até Recife, precisamente ao Instituto Histórico e Geográfico (absorvendo e espirrando os preciosos ácaros residentes no Diário de Pernambuco) entre outros jornais daquele estado, encontrou uma matéria, ou como diriam os jornalistas um furo de reportagem da época: As narrativas de Benjamim Abraão sobre o seu encontro com o rei do cangaço. Uma matéria “estibada” de detalhes além de disponibilizar as fotografias dos arquivos consultados presente do nosso blog para os fiéis rastejadores e visitantes.
Acompanhe na íntegra como se fosse manchete do dia o comportamento dos cangaceiros assimilado pelo mascate libanês. A descrição detalhada dos materiais utilizados para colher as imagens históricas que incomodaram o alto escalão do poder nacional. E os fatos desde sua chegada ao nordeste até os principais indícios sobre seu assassinato.!
Bom proveito!
Nesta clássica foto vemos Benjamin Abrahão, o armado Lampião e a sua Maria Bonita
ostentando uma profusão de correntes de ouro.
Este instantâneo foi conseguido em uma das visitas de Abrahão ao “Rei do Cangaço”.
ostentando uma profusão de correntes de ouro.
Este instantâneo foi conseguido em uma das visitas de Abrahão ao “Rei do Cangaço”.
Foto do acervo da Aba Film, reproduzida a partir do livro “Cangaceiros”, de Élise Jasmin, página 42, 1ª edição.
No início da vida bandida de Virgulino Ferreira da Silva, o famoso cangaceiro Lampião, as suas ações, os seus feitos de armas, eram basicamente conhecidos pelos sertanejos através dos cantadores, dos emboladores, das conversas dos mascates nos dias de feira.
Estes meios de divulgação tradicionais, mesmo de forma lenta, ajudaram cada vez mais a criar na população do sertão o temor e, igualmente, contribuíram na propagação do mito ao redor da figura verdadeira.
Durante certo tempo muitos sertanejos não tiveram ideia da aparência e de outros aspectos ligados à figura de Lampião. Logo surgiu na imprensa uma boa quantidade de fotografias do chefe cangaceiro e este fazia questão de se deixar reproduzir diante das câmeras. Ele não tinha a aversão que o grande cangaceiro Antônio Silvino, preso em 1914, nutria pelas lentes fotográficas. Pelo contrário, gostava tanto que até cartões com a sua foto estampada foram um dia produzidos.
Na proporção em que cresciam as suas ações e a fama do seu bando nos sertões nordestinos, a sua figura ultrapassava limites regionais e as pessoas de todas as partes passaram a ouvir falar no conhecido “Rei do Cangaço”. Mas para o público dos grandes centros terem a oportunidade de visualizarem a figura de Lampião e seu bando, em uma película cinematográfica, no interior de uma confortável sala de projeção, era algo mais complicado.
Desde que o cinema chegou ao Brasil, em 8 de julho de 1896, com a inauguração de um “omniographo” na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, o seu desenvolvimento era cada vez mais intenso. Novas salas de exibição eram inauguradas pelo país afora, onde o público consumidor desejava através das imagens, tanto o entretenimento, quanto o conhecimento dos aspectos do imenso país.
Para uma pessoa de iniciativa e coragem, a ideia de filmar Lampião e seu bando poderia gerar muita fama e dinheiro.
Somente através da iniciativa de um emigrante libanês, foi possível imagens do famoso cangaceiro e do seu bando, sendo este o único registro cinematográfico desta controversa figura.
M HOMEM SEM FRONTEIRAS
Benjamin Abrahão em fotografia realizada em um estúdio pernambucano.
A partir do livro “Lampião o mito”, autoria de Roberto Tapioca, 9ª edição, página 50.
A partir do livro “Lampião o mito”, autoria de Roberto Tapioca, 9ª edição, página 50.
Segundo o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello (in “Guerreiros do sol, 2ª edição”, págs. 313 a 317), seu nome completo era Benjamin Abrahão Calil Botto, sendo originário do Líbano. Sua terra natal era Zahle, uma cidade situada na parte central deste país, no chamado Vale do Bekaa, próxima a cadeia de montanhas do Monte Líbano, em uma área extremamente fértil para agricultura e onde até hoje predomina uma população cristã.
Para alguns estudiosos ele teria vindo para o Brasil em 1910 e para outros ele aqui chegou em 1915. A razão de sua saída seria a ideia de buscar novas paragens para progredir na vida e deixar uma região então dominada pelo Império Turco Otomano desde 1517. Outra teoria aponta que a vinda de Abrahão seria uma fuga da convocação do exército que ocupava sua terra, para combater na Primeira Guerra Mundial.
Nesta época a nação libanesa ainda não havia sido oficialmente criada e os imigrantes que deixavam esta região e se dirigiam para o Brasil, eram normalmente conhecidos como “Turcos” ou “Sírios”. Apenas em 1926 foi oficialmente criada à República do Líbano, por interesses dos franceses.
Foto atual da cidade de Zahle, Líbano. Com uma população em torno de 100.000 habitantes, é a terceira maior cidade deste país, sendo bastante conhecida pela qualidade do vinho aí produzido.
Coleção do autor.
Quis o destino que Benjamin Abrahão viesse para Recife, onde conseguiu um emprego de vendedor. Depois, impulsionado pelo espírito aventureiro e senso de oportunidade, foi até a cidade de Juazeiro, no interior do Ceará, onde conheceu o mítico e venerado líder religioso Padre Cícero Romão Batista.
Após os primeiros contatos com o homem considerado santo pelos romeiros que afluíam de todos os lugares do Nordeste, o libanês passou a ser conhecido na cidade como jornalista, secretário particular, fotógrafo e acompanhante do “Padim Ciço”. Existe a versão que o libanês de fala enrolada conquistou o coração do severo clérigo quando mentiu descaradamente ao afirmar ter nascido em Belém, a cidade natal de Jesus Cristo.
Para estas duas interessantes figuras este encontro foi extremamente positivo. Para o eterno cura dos desvalidos do Cariri, a figura de um secretário estrangeiro, nascido na terra de Jesus, certamente trazia respeitabilidade junto a elite local e chamava a atenção dos milhares de romeiros que vinham atrás de suas bênçãos. Já Benjamim sabia que o Padre Cícero era um líder prestigiado, sendo um porto seguro em um país desconhecido, em meio a uma Juazeiro em franco crescimento.
Era bem melhor o calor de Juazeiro, do que vestir um uniforme turco e levar um tiro dos ingleses na península de Gallipoli.
Tudo indica que o imigrante se deu muito bem nas terras do “Padim Ciço” e se entrosou perfeitamente com a sociedade local. Segundo o jornal “Diário de Pernambuco”, edição de 27 de dezembro de 1936, ao apresentar o “Sírio” Abrahão, o periódico informava que o imigrante teria fundado um jornal chamado “O Cariri”.
Acervo do professor Renato Cassimiro
publicado no www.cariricangaco.com
O FILME DO PADRE CÍCERO E O ENCONTRO COM LAMPIÃO
O libanês esperto se encontrava em Juazeiro, quando no dia 4 de março de 1926 chega à urbe sagrada o famoso cangaceiro Lampião e todo o seu séquito. O bandoleiro das caatingas vem a “cidade santa” para se juntar aos membros de uma força militar denominada “Batalhão Patriótico”, com a intenção de combater uma coluna de revoltosos comandados por Luís Carlos Prestes, Isidoro Dias Lopes, Siqueira Campos e outros oficiais rebelados do Exército Brasileiro contra o governo de Arthur Bernardes, então Presidente da República.
Lampião recebe uniformes, armas novas, se encontra com Padre Cícero, concede entrevistas e se deixa fotografar. Segundo o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello (op. cit.), a figura que coordena o assédio ao “Rei do Cangaço” não é outro se não o próprio Benjamim Abrahão. Afirma o pesquisador que a partir deste encontro surgiu uma amizade entre o libanês e o cangaceiro, bem como o germe da ideia de ser realizada uma película mostrando a vida de Lampião.
Assim o jornal recifense “A Província”, edição de 3 de junho de 1926, analisou a exibição do filme “Joaseiro do Padre Cícero”, ocorrida no dia anterior, no prestigiado Cinema São José.
Coleção do autor.
Apesar do autor de “Guerreiros do sol” haver entrevistado Lauro Cabral de Oliveira, uma das pessoas que esteve com Lampião naquela ocasião para realizar entrevistas e fotografá-lo, que teve seu acesso ao cangaceiro garantido por Abrahão, acreditamos que a ideia surgiu na cabeça do libanês algum tempo antes.
Em 1925 foi produzido “Joaseiro do Padre Cícero”, um filme que buscava contar a vida e o trabalho do Padre Cícero Romão Batista. Rodado em película de 35 milímetros, a um custo de 40 contos de réis, esta obra tinha o objetivo de criar uma propaganda positiva em relação à ação política e social do padre, além de mostrar o desenvolvimento da cidade de Juazeiro. Nesta época o Padre Cícero sofria na imprensa dos grandes centros do Brasil uma feroz enxurrada de críticas e comentários negativos sobre a sua figura, a sua trajetória política e a mistificação que se criava em torno de sua pessoa.
A direção do filme coube ao cearense Adhemar Bezerra de Albuquerque e sua primeira exibição ocorreu no mesmo ano de sua produção. O local escolhido foi o Cinema Moderno, em Fortaleza, um empreendimento que foi inaugurado em 1921 e ficava na Praça do Ferreira.
Fachada do Cinema Moderno, em Fortaleza.
A partir do livro “Ah, Fortaleza!”, vários autores, 1ª edição, página 143.
Depois de seu lançamento, a película foi apresentada em várias capitais brasileiras, chamando a atenção da crítica e do público. Certamente um dos que se impressionou com o sucesso da obra foi Benjamim Abrahão.
Provavelmente o diretor Adhemar Bezerra de Albuquerque, seguramente um dos principais pioneiros e expoentes do cinema cearense, que produziu muitos documentários em 35 milímetros, deve ter criado laços de amizade com o libanês durante a produção deste filme e certamente o imigrante participou de alguma maneira da concretização desta produção.
A BUSCA POR LAMPIÃO
Ao longo dos anos o libanês continuou com o seu trabalho ao lado do Padre Cícero, mas em julho de 1934, aos 90 anos o seu patrão e protetor faleceu. É provável que sem maiores perspectivas ressurja na cabeça do libanês a ideia de mostrar ao mundo o cangaceiro Lampião, entrevistá-lo e conseguir assim se tornar o primeiro homem a filmar o “Grande Rei do Sertão”.
No ano seguinte Abrahão busca na capital cearense um empreendedor que o ajude nesta empreitada. Este apoio surge na pessoa do velho conhecido Ademar Albuquerque, agora proprietário da empresa Aba-Film, que tinha apenas um ano de funcionamento. Ademar percebe que o libanês é suficientemente arrojado (ou maluco) para procurar Lampião no “Oco do Mundo” e se ele não morresse tentando, a distribuição deste documentário poderia render um bom dinheiro. Percebemos que não é de hoje que a figura de Lampião alavanca negócios.
O proprietário da Aba-Film lhe cedeu uma câmera, que segundo Frederico Pernambucano de Mello (op. cit.), seria de 35 milímetros, da marca Ica. Rolos de filmagem da empresa Gevaert-Belgium, um tripé e uma câmera fotográfica desenvolvida pela empresa alemã de produtos óticos Carl Zeiss, até hoje uma conceituada marca no meio fotográfico.
Relato de seus encontros com o bando de Lampião no jornal “Diário de Pernambuco”,
edição de 27 de dezembro de 1936.
Coleção do autor.
edição de 27 de dezembro de 1936.
Coleção do autor.
Benjamim estava munido com máquinas de conhecida qualidade e portabilidade, que certamente lhe trariam um ótimo resultado visual. Evidentemente que o imigrante libanês não seria tão louco a ponto de comentar quem o ajudou nesta empreitada. Mas seria praticamente impossível ele chegar próximo a Lampião sem a ajuda dos grandes coronéis do interior de Pernambuco.
Ele teria buscado o apoio de Audálio Tenório de Albuquerque, então o todo poderoso comandante da cidade de Águas Belas e de outros coronéis da região próxima ao rio São Francisco. Esta hipótese se baseia na informação transmitida por Frederico Pernambucano de Mello, que nos seus últimos anos da vida de Lampião, teria sido o coronel Audálio Tenório uma pessoa com forte aproximação com este chefe cangaceiro. (Mello, op. cit., pág. 325).
De toda maneira Benjamim Abrahão conseguiu seu intento. No jornal Diário de Pernambuco, nas edições de 27 de dezembro de 1936 e 12 de janeiro de 1937, Abrahão relatou detalhes dos seus encontros com Lampião e seu bando.
Em narrativa franca e aberta, o libanês demonstra ao seu entrevistador, com certo orgulho, que a sua empreitada havia durado mais de um ano, precisamente 18 meses. Informava que havia passado pelos estados da Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Bahia. Ele entrou no sertão com uma roupa de “brim azulão” e suas máquinas a tiracolo. Afirmou que passou “fome e sede”, mas trouxe “um punhado de notas suficiente para seu livro de impressões”. Aparentemente estas impressões estariam contidas em seus diários.
O contato inicial de Abrahão com o bando de Lampião, segundo suas afirmações para o Diário de Pernambuco, foi num dia bastante quente e os primeiros com quem ele esteve foram os cangaceiros Mergulhão e Juriti.
Segundo o relato de Abrahão ao jornal Diário de Pernambuco, os dois primeiros cangaceiros que ele encontrou foram Jurity (esq.) e *Mergulhão (a dir.).
Mas o encontro teve certa tensão, pois os dois guerreiros das caatingas chegaram totalmente equipados. Ao visualizarem o estranho apontaram seus fuzis e gritaram “-Não se mexa cabra. Vai morrer” e colocaram balas nas agulhas de suas armas. Foi um momento “angustioso” para o documentarista, mas logo o ambiente serenou. Abrahão afirmou ao jornalista que lhe entrevistava que “se impressionou”, pois os dois cangaceiros já sabiam quem ele era e qual era seu objetivo.
É provável que nada disso tenha ocorrido. O Mais lógico foi que Abrahão deve ter sido guiado por uma pessoa de confiança dos coronéis da região, onde os cangaceiros já tinham conhecimento de sua chegada e que tudo estava previamente acertado.
Tanto é que sobre estes primeiros momentos junto a estes cangaceiros, Abrahão chega ao ponto de transmitir uma opinião jocosa sobre um dos seus acompanhantes armados. Este era Juriti, que ele considerou
“-Um sujeito de boa aparência, tem os cabelos bons, é metido à almofadinha e gosta de luxar”.Afirmou que teve de caminhar três quilômetros com os dois homens armados. Eles primeiramente entraram em entendimento com uma sentinela posicionado em local estratégico. Daí Mergulhão se embrenhou nos matos e desapareceu. Voltou algum tempo depois afirmando que Lampião queria vê-lo.
AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES DE UM ESTRANHO MUNDO
Quando chegou ao local onde estava o bando, após passarem por uma área de caatinga bastante fechada, todos os cangaceiros estavam de pé, menos Lampião que se encontrava encostado em um tronco, lhe observando com olhos que o libanês classificou como “indagadores”. Era hora do almoço e todos comiam carne de bode com farofa.
O capitão Virgulino veio até ele, lhe ofereceu comida e um copo com conhaque, demonstrando boas maneiras no tratamento ao estranho de fala enrolada. Lampião afirmou
“- Não sei como você veio bater aqui com vida, bicho véio. Só mesmo obra de Mergulhão que é muito camarada”.Abrahão não informou ao jornalista o que achou da tirada do chefe cangaceiro. Logo se dispôs a montar o tripé com uma das suas máquinas para dar início à sessão de captação de imagens.
Nisto Lampião gritou “-Para, para”.
Ele queria ver de perto o maquinário. Queria se certificar que daquele mecanismo estranho não poderia sair uma bala. Satisfeito nas suas dúvidas, o chefe liberou o libanês para trabalhar tranquilamente.
Ele continuou captando imagens, mas em pouco tempo Lampião mandou parar a sessão afirmando
“- Basta. O resto fica para outra vez”.Abrahão retrucou com Lampião, afirmando que tinha lutado muito por este momento e que queria continuar. Ao que o chefe responde taxativamente
“-Quem anda comigo tem de ter paciência”.Insatisfeito com a resposta, o imigrante voltou à carga “-E onde poderia (Lampião) ser encontrado na próxima vez?”.
“-Sou homem que não tem pouso certo. Hoje estou aqui, amanhã posso estar na Bahia, em Sergipe ou Pernambuco.”Seja pelo fato de Abrahão ter se sentido a vontade com o “Rei do Cangaço”, ou porque era uma figura completamente maluca, mais uma vez ele continuou retrucando com Lampião. Para sua sorte este nada falou.
Depois, segundo sua narrativa, levaria quatro meses para ocorrer um segundo encontro com o bando. Por sorte este momento foi muito mais duradouro, calmo e positivo. Segundo Abrahão o local do esconderijo ficava “do outro lado do São Francisco”, a “36 léguas”. Ele só não disse de onde.
Afirmou que era um domingo, sendo este “um grande dia, pois ninguém trabalhava e se reza de manhã e no começo da noite”.
Para o imigrante os cangaceiros são muito religiosos e sobre o momento da oração ele fez interessantes observações. Um dos membros do grupo colocou um quadro do Sagrado Coração de Jesus em um tronco de árvore e Lampião, com um livro de orações, comanda a ladainha. Todos estão ajoelhados, contritos, alguns com rosários, ouvindo atentamente o chefe declamar em voz alta a prédica de um velho “adoremos”, que todos repetiam em coro.
Para o observador Abrahão “as mulheres, neste dia, vestem-se melhor, enfeitam-se mesmo”. Para ele é como se elas fossem a uma missa em alguma paróquia. O imigrante apontava que aquelas mulheres, mesmo vivendo escondidas no meio do mato, em meio às correrias e violências, pareciam querer manter de alguma maneira os mesmos hábitos da vida “civil”.
Durante o almoço todos os cangaceiros comem em grupos, uns em pé e outros sentados. Lampião, talvez por precaução, degusta a alimentação no meio de todos. Abrahão repetiu varias vezes ao repórter o quanto Lampião era desconfiado, sempre planejando mudanças de seus esconderijos.
FILMANDO OUTROS GRUPOS DE CANGACEIROS E PRESENCIANDO O COMBATE DE PIRANHAS
Abrahão afirma textualmente que filmou e fotografou os grupos dos chefes Corisco, Luís Pedro, Português, Zé Sereno, Mané Moreno, Pancada, Canário e Gato. Praticamente ele teve a oportunidade de filmar todo o movimento de cangaceiros que gravitavam ao redor de Lampião. Apenas os instantâneos chegaram até os nossos dias.
Em relação ao chefe cangaceiro Gato, Abrahão afirma que estava no combate ocorrido em Piranhas, dois meses antes da entrevista ao Diário de Pernambuco e que viu este cangaceiro ferido.
Segundo a sua narrativa, ele se encontrava a cerca de meia légua (três quilômetros) de Piranhas, atravessando o Rio São Francisco, quando se deu o tiroteio e logo seguiu em direção à refrega. Afirmou que “era uma oportunidade que não poderia deixar passar”.
O primeiro combate entre os cangaceiros e os policiais ocorreu a cerca de 4 ou 5 léguas de distância da cidade, “no meio da caatinga bruta”.
A tropa volante era comandada pelo tenente João Bezerra e neste combate foi ferida e capturada a companheira de Gato, conhecida como Inacinha. Este buscou apoio de Corisco e de outros cangaceiros que circulavam na região, para invadirem a cidade de Piranhas e tentaram resgatar a cangaceira ferida. Era por volta meio dia quando um grupo de 26 cangaceiros tentou realizar o ataque, mas a cidade recebeu seus “visitantes” com forte fuzilaria.
No momento em que Abrahão encontrou os cangaceiros estes já se retiravam de Piranhas. Afirma que viu o chefe Gato ainda ferido, deitado em um “sofá”. Comenta (certamente com exagero) que quando tentou entrar na cidade os defensores lhe tomaram como um cangaceiro e mandaram bala.
Segundo o pesquisador paraibano Bismarck Martins de Oliveira (in “O cangaceirismo no Nordeste”, 2ª edição, págs. 228 e 229) o nome verdadeiro do cangaceiro Gato era Josias Vieira e era natural de Santana do Ipanema, Alagoas. Ele teria entrado no cangaço em 1922, tendo participado de inúmeras ações importantes ao lado de Lampião, era tido como um cangaceiro de extrema violência e periculosidade acentuada. Fez parte do bando de Corisco, mas depois decidiu montar seu próprio grupo.
Já o pesquisador baiano Oleone Coelho Fontes (in “Lampião na Bahia”, 4 edição, pág. 329) informa que o combate se deu no dia 28 de outubro de 1936, que Gato chamou Corisco para tentaram entrar na cidade, mas a intenção era sequestrar a mulher de João Bezerra, Cira Britto Bezerra, filha do prefeito da cidade, a fim de vingar-se da captura da sua companheira.
Gato e Inacinha, fotografados por Abrahão. Acervo AbaFilm, Fortaleza.
Reproduzida a partir do livro “Cangaceiros”, de Élise Jasmin, página 90, 1ª edição.
Quanto à questão do “sofá”, realmente imaginava que naquele lugar, naquele tempo, naquelas condições de combate, um cangaceiro ferido seria normalmente transportado em uma rede. Mas como eles ainda combateram no perímetro da cidade de Piranhas e eu não tenho muito conhecimento sobre o mobiliário do sertão nordestino da década de 30 do século passado, deixo a questão em aberto.
SENHORA DE BARAÇO E CUTELO
DOS SERTÕES NORDESTINOS
Em relação à companheira de Lampião, de quem Abrahão em nenhum momento da reportagem declamou o nome com o qual ela seria imortalizada, ele praticamente se restringe a informar que a mesma, por razão de uma promessa, não trabalhava entre o sábado e a segunda feira. Mas Abrahão não diz qual seria este “trabalho” e a chamava de “Maria Oliveira”, ou “Maria do Capitão”. Mas aparentemente são os jornalistas da redação do Diário de Pernambuco que se impressionam com a morena baiana.
Na edição do dia 17 de fevereiro de 1937, uma quarta-feira, como sempre na primeira página e com amplo destaque, a jovem sertaneja aparece sentada ao lado de dois cachorros que pertenciam a Lampião, um dos quais se chamava “Ligeiro”, em uma pose que foi classificada como “cinematográfica de uma Greta Garbo”. Dizia que ela era a única pessoa com “ascendência moral sobre Lampião” e que chamava a atenção até mesmo pela simplicidade.
Para os jornalistas Abrahão descreveu que a companheira de Virgulino estava “com os cabelos alisados a banha cheirosa, meias de algodão, sapatos tresé e seu vestido azul claro de linho”. Estando correta a descrição do imigrante libanês sobre a vestimenta de “Maria do Capitão”, no meio daquela caatinga cheias de espinhos, esta fina indumentária servia apenas para rezar e bater fotografias.
Chama atenção a descrição da utilidade das mulheres do bando nos combates. Abrahão informou que elas “Abrem nas caatingas cerradas os caminhos que possam fugir os cangaceiros, ante a eminencia de se verem cercados”.
Se a pose de “Maria do Capitão” na foto era simples, como o leitor deste artigo pode observar, a manchete chamava bastante atenção.
Maria Bonita e os cachorros do bando de Lampião na primeira página do “Diário de Pernambuco”, edição de 17 de fevereiro de 1936. Para Abrahão ela não trabalhava entre os sábados e as segundas.
Coleção do autor.
Os jornalistas passaram a comparar a companheira de Lampião com a francesa Jeanne-Antoinette Poisson, a Marquesa de Pompadour, ou como ficou mais conhecida Madame de Pompadour. Esta foi uma burguesa, nascida em Paris em 1721, que usou a sedução para conquistar um lugar entre os mais nobres e se tornar a principal amante do rei da França daquela época, Luís XV. Mas além de ser bela, sedutora e encantadora, era extremamente inteligente e se tornou decisiva na política francesa. Logo através de sua influência, conseguia audiências a embaixadores, tomava decisões sobre todas as questões ligadas à concessão de favores, de forma tão absoluta quanto qualquer monarca.
A comparação entre a cortesã francesa e a cangaceira brasileira surgiu provavelmente após Abrahão comentar e ser publicado que “os asseclas de Lampião lhe rendem as mais servis homenagens, tudo fazendo para não cair no desagrado dessa Madame Pompadour do cangaço, senhora de baraço e cutelo dos sertões nordestinos”.
Não pudemos comprovar com exatidão, mas certamente esta é a uma das primeiras grandes reportagens sobre uma jovem sertaneja chamada Maria Gomes de Oliveira. Baiana nascida em 1901, no sítio Malhada da Caiçara, que um dia encantou o “Rei dos Cangaceiros” e seria conhecida em toda parte como Maria Bonita.
A VOLTA A “CIVILIZAÇÃO” E O SANGRENTO FIM DE ABRAHÃO
Relato de seus encontros com o bando de Lampião no jornal “Diário de Pernambuco”,
edição de 12 de fevereiro de 1937. Coleção do autor.
edição de 12 de fevereiro de 1937. Coleção do autor.
Abrahão volta ao Recife e novas matérias são publicadas no Diário de Pernambuco, sempre com muito destaque e na primeira página. Elas informavam detalhes do encontro de Abrahão com os cangaceiros e que a sociedade pernambucana em breve teria a oportunidade de assistir nos cinemas da capital o “film” sobre Lampião. Benjamim Abrahão aproveitava sua notoriedade.
Sobre o tamanho do rolo de filme e sua duração, não conseguimos apurar corretamente, pois o tamanho foi crescendo e diminuindo. Dependia do lugar, provavelmente do gosto dos editores, ou através de informações equivocadas de Benjamim Abrahão. Segundo o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello (in “Guerreiros do sol, 2ª edição”, págs. 339), em dezembro de 1936 o libanês teria entregue a Ademar Albuquerque cerca de “quinhentos metros de filme”, mas em abril do ano seguinte os jornais cearenses noticiavam que havia “mais de mil metros”. Em Recife a película esticou mais ainda.
No Diário de Pernambuco, na edição de 12 de fevereiro de 1937, Abrahão afirmava que o filme tinha “2.000 metros”, que seria exibido no Rio de Janeiro e anunciava que além do filme, seria publicado um livro “com a maior e mais completa reportagem sobre Lampião”.
Mas foi a mesma atenção dispensada pela imprensa que gradativamente foi lhe criando problemas. Os jornais mostravam com destaque a façanha de um simples imigrante libanês, que havia conseguido encontrar Lampião, filmá-lo tranquilamente com o seu bando, enquanto que as forças de segurança nunca davam cabo dos cangaceiros.
No Rio de Janeiro, então capital do país, a revista “O Cruzeiro”, um dos principais veículos da imprensa brasileira da época, estampou no exemplar de 6 de março de 1937 uma manchete com cinco fotos do bando. De forma crítica afirmava que “onde os policiais falharam, Abrahão havia triunfado”.
No dia 2 de julho de 1938, no mesmo Cinema Moderno que apresentou a película sobre o padre Cícero, ocorreu à única exibição conhecida do filme de Benjamin Abrahão. A fita cinematográfica foi assistida por autoridades que se revoltaram diante do destaque dado a Lampião e seus acompanhantes. Logo os membros do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o órgão de censura do chamado Estado Novo, como ficou conhecida a ditadura comandada por Getúlio Vargas e implantada no ano anterior, apreenderam o filme.
Benjamin Abrahão tentou reverter, sem sucesso, a situação. Ele fica em uma posição difícil e parte para o interior em busca de apoio.
Em 9 de maio de 1938, na então vila de Pau Ferro (atual município pernambucano de Itaíba), a cerca de 45 quilômetros de Águas Belas, Abrahão foi morto com 42 facadas por um homem que seria deficiente físico e que trabalhava como sapateiro. A razão foi uma vingança ocorrida pelo fato do libanês ter mantido relações com a mulher deste sapateiro.
Entretanto, segundo as edições do Diário de Pernambuco de 10 e 19 de maio de 1938, ao comentar sobre a morte de Benjamin Abrahão, trazem algumas informações interessantes.
Foi divulgado que o inquérito realizado pelo delegado do 2º Distrito Policial de Águas Belas, concluiu que o assassino do imigrante libanês se chamava José Rodrigues Lins, conhecido como Zé de Ritinha ou Zé de Rita e que teria sido ajudado por uma mulher chamada Alayde Rodrigues de Siqueira. Mas as reportagens não especificavam maiores detalhes do ocorrido e nem o grau de participação desta mulher.
Para muitos pesquisadores a verdadeira razão da morte de Abrahão teria sido as insistentes cobranças que ele fazia aos coronéis da região, sobre uma pretensa ajuda financeira prometida para a realização do filme. Aparentemente, diante das recusas, ele possivelmente teria feito algum tipo de ameaça e encontrou a morte.
Certamente que em meio a um momento político onde o poder do Estado Novo estava muito forte e centralizado, onde as velhas lideranças do sertão já não possuíam a mesma desenvoltura nos círculos do poder, onde a desconfiança e o temor de perda de prestígio e de força política eram evidentes, a figura de um imigrante que sabia de muita coisa, impertinentemente exigindo dinheiro, deveria ser uma fonte de preocupação.
Seja qual for a verdadeira razão, percebemos que faltou a Benjamin Abrahão, mesmo depois de estar vivendo a cerca de vinte anos no Nordeste, uma maior percepção em relação as suas atitudes e o que elas poderiam gerar.
Rostand Medeiros é Pesquisador
rostandmedeiros@gmail.com
*A foto foi cedida pelo colaborador Ivanildo Silveira devido à qualidade da sugerida pelo autor. Salientamos que existe uma controvérsia quanto ao outro cangaceiro que estava em companhia de Juriti: Que este tenha sido o "sabonete" e não Mergulhão. A foto que compõe o livro "Cangaceiros" de Élise Jasmin, está identificada como: Juriti e cangaceiro "desconhecido". Esse cangaceiro desconhecido, também não seria "Mergulhão"??? O escritor Antonio Amaury disse a Ivanildo que tratava-se do “Quinta-feira”.
Att Kiko Monteiro.
Meu amigo Rostand, faça-nos um imenso favor, coloque todos os seus conhecimentos em livro que, com certeza, será brilhante. Um grande abraço. Valeu!
ResponderExcluirAderbal Nogueira
quero desde ja parabenisar ao pesquisador rostand pela exelente postagem pois e muito bom ter pessoas como vc que cuida da nassa cultura. cangaço hoje me dia e um grande tema
ResponderExcluirASSINA capitão vanderli
Escritor Rostand Medeiros:
ResponderExcluirÉ lógico que eu como um principiante estudante do cangaço não tenho conhecimento suficiente para discutir algo que os senhores pesquisadores conhecem de muitos e muitos anos. Mas eu fazendo uma comparação desta foto que o senhor apresenta em seu excelente texto, com a foto do cangaceiro Quinta Feira, onde ele aparece juntamente com: “Vila Nova, lá nos fundos, um cangaceiro desconhecido, Luiz Pedro, Amoroso, Lampião, Cacheado, Maria Bonita, Juriti, outro cangaceiro desconhecido e no final, o Quinta Feira, foto do repórter Benjamim Abraão em 1936,...”, não acho que seja Quinta Feira. Como já foi descartada a possibilidade de ser Sabonete, e realmente acredito que não é, pois ele era mais franzino e este é mais taludo, a foto apresentada mais me parece ser o cangaceiro Mergulhão. Diz o senhor: “O contato inicial de Abrahão com o bando de Lampião, segundo suas afirmações para o Diário de Pernambuco, foi num dia bastante quente e os primeiros com quem ele esteve foram os cangaceiros Mergulhão e Juriti”. Eu acredito que ao encontrá-los fez logo uma foto com os dois, e ao afirmar ter tido o primeiro contato com Juriti e Mergulhão, com certeza foi devido à foto, pois acho que quando Abrahão chegou ao coito, estava super nervoso e não daria para saber os cangaceiros que ele tivera os primeiros contatos, e se não fosse a foto, com certeza não saberia no dia seguinte, já que os cangaceiros eram muito parecidos, devidos as suas roupas e equipamentos que eles carregavam. O escritor Antonio Amaury, que realmente é um grande conhecedor do cangaço, mas ele não imagine que eu esteja querendo discordar coisas que eu ainda não tenho conhecimento. É apenas a minha opinião em relação à foto apresentada, que ela mais parece o cangaceiro Mergulhão.
Desejo aos confrades do Cariri Cangaço e todos os seus familiares: “Um Feliz Natal e Próspero Ano Novo”.
José Mendes Pereira - Mossoró-Rn.
Só tentando entender uma afirmação desta narrativa: Se em 9 de maio de 1938, na então vila de Pau Ferro (atual município pernambucano de Itaíba), Abrahão foi morto com 42 facadas, como o mesmo pôde tentar reverter, sem sucesso, a situação que se instalou no dia 2 de julho de 1938 se ele já estava morto?
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