quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Prefácio

"A guerra social e seus heróis" 

Por: Frederico Pernambucano de Mello



Não é de hoje que temos insistido no quanto são valiosos os estudos sobre temas policiais, feitos ou não por quem desenvolva ação profissional nesse campo de tanto fascínio mas de recompensas escassas quando exercido com critério. Afinal, todos são parte na questão da defesa social, do que decorre ser legítima a dedicação de paisanos capazes de penetrar no tema por todas as vias de abordagem, sejam estes cientistas sociais ou políticos, juristas ou deontólogos, profissionais de ciências físicas ou naturais, que de todos estes campos e de outros mais se nutre a administração da justiça criminal, tão relevante que se pode dizer dela o que Clemenceau, condutor máximo dos negócios da França na Primeira Guerra Mundial, disse da atividade militar: não dever ficar restrita a generais.

A criminalidade dos dias atuais vai da expressão mínima que se contém no fenômeno endêmico ou crônico - sujeito à compressão embora inextinguível, além de tolerado costumeiramente pelo geral da população - até aquilo que o general Prim chamou de guerra social, ao se debruçar sobre o quadro criminal de algumas porções da Espanha de 1870, sobretudo a Andaluzia. Naquele momento delicado do país peninsular, não se estava vivendo apenas um surto de epidemização do crime, brotado do aquecimento contingente do fenômeno endêmico, tradicional por sua antigüidade e alastramento, mas uma verdadeira pandemia. Uma guerra social, para usar o conceito de Prim, que guarda semelhança pela qualidade e pela intensidade com a figura militar da guerra total, por ser desta uma espécie de tradução doméstica, intranacional, não raro regional.

A Espanha de 1870, afogada em várias de suas províncias por uma guerra social que envolvia a todos, pobres ou ricos, precisou deter por um instante os negócios de estado mais amenos e se debruçar sobre o problema, a cata de homens e de idéias. Estas últimas, necessárias tanto quanto os primeiros, a depender - como há de se dar invariavelmente - da organização dos dados, da apuração dos elementos factuais levantados, da interpretação do teor de subsídios recolhidos da ação, em uma palavra: de estudos policiais.

Não foi através de outro caminho que veio a se impor a ação de D. Julián Zugasti y Sáenz, designado governador civil de Córdoba com poderes especiais à altura da circunstância sombria. E Zugasti se fez o homem providencial.

Ânimo e corpo de 33 anos, o apoio do poder público e a ambição de erguer alto o seu nome por toda a Espanha, eis a composição básica desse herói da causa da ordem pública, em quem a volúpia da ação encontrava rival apenas no desejo de conhecer a fundo as estruturas sócio-econômicas das áreas taladas, cuja iniqüidade as fazia converter - melhor se dirá perverter - em molas desgraçadamente azeitadas da circunstância criminógena que ali vem a deitar raízes de ferro.

Zugasti quer mais. Ouvidos abertos a confissões, vai aos poucos conhecendo a alma velhaca dos bandidos, espécie de caverna lancetada de luz por um outro gesto que uma nobreza marginal e toda própria faz surgir. Aprende que o bandido não é nada sem o protetor, via de regra, um sujeito bem posto socialmente; que qualquer fronteira é aliada do crime; que o terror cega e emudece a testemunha, paralisando a justiça; que a ausência latina de espírito coletivo mina o desejável esforço popular em busca da paz social; que a imprensa mal orientada, soprando na fogueira da vaidade, aquece o crime, sendo o bandido mais vaidoso que uma prima-donna de ópera, como sustentava Lombroso, da sua experiência profissional.

Tantas informações absorve o incansável Zugasti que apenas seis anos passados do início de sua atuação, daquele ano sangrento de estréia, 1870, em que sua equipe dá morte a 96 bandidos, vem a surpreender a Espanha com o lançamento da obra El bandolerismo: estudio social y memórias históricas, dez tomos de um saber preponderante mas não exclusivamente empírico, onde as constatações de fundo sociológico encontram abono em passagens da vida rocambolesca dos bandidos mais famosos, tudo isso se esbatendo contra o pano-de-fundo do mandonismo político em que se compraziam as oligarquias de expressão paroquial.

Tivemos aqui o nosso Zugasti. Um duro e eficiente Zugasti tropical, a cujo desassombro no campo da repressão ao crime Pernambuco deve mais do que tem sabido reconhecer. Era ainda bem jovem Eurico de Souza Leão quando o governador Estácio Coimbra foi buscá-lo para que chefiasse a então Repartição Central de Polícia, às voltas, no interior, com uma espécie de estado paralelo que Lampião implantara de Rio Branco, hoje Arcoverde, até os confins lindeiros com o Piauí, englobando as ribeiras do Ipanema, Moxotó, Pajeú, Navio e Brígida, para falar apenas das áreas pernambucanas de domínio do notório capitão-de-cangaço. Grupo de 120 homens armados a fuzil Mauser, todos bem trajados, montados e agindo ao comando de um corneteiro, assim estava Lampião no auge de sua carreira, naquela segunda metade de 1926.

Eurico, todo energia, reorganiza o serviço policial volante, incrementando a tendência surgida no governo anterior de alistar sertanejos para a campanha num meio onde o estranho comprovadamente não se saía bem. Ainda numa expressão de respeito à peculiaridade natural do semi-árido, autoriza o comando das volantes em Vila Bela, hoje Serra Talhada, a adquirir alpercatas-de-rabicho e outros utensílios da produção artesanal sertaneja, com estes equipando o nosso soldado volante. E não fica nisso. Convencido de que o acobertamento ao cangaço era enorme, envolvendo de coronéis a vaqueiros, passando por almocreves, tangerinos e mascates, move perseguição violenta a todos esses favoneadores do banditismo, sem exclusão de autoridades públicas suspeitas de prevaricação muitas vezes rendosa.

Chega a remover autoridades judiciárias, usando do seu prestígio junto ao governador. Incansável, determinado, obcecado com a missão toda espinhos que tinha nas mãos finas de dandy da oligarquia açucareira pernambucana, vai desferindo golpe sobre golpe no grande bandoleiro, que finda sem coiteiros, carente do mínimo em munição de boca e de briga, e com o grupo reduzido ao seu estado-maior de homens desesperados: Luís Pedro - lugar-tenente, de quem o chefe dizia valer por trinta bocas de fogo - Virgínio, Ezequiel, Mariano e Mergulhão. É esse grupelho batido e faminto, cabelos nos ombro, vestes dilaceradas, que chega ao beiço do São Francisco à altura de Petrolândia e se mete numa canoa no rumo de uma vida possível no sertão baiano de Glória, em fins de agosto de 1928. De apenas dois anos de campanha intensa necessitara Eurico para fazer desmoronar o império de Lampião, expulsando-o de Pernambuco.

Êxito tão assinalado não se há de creditar a causa única, é claro. Mas houve na campanha de Eurico uma providência inovadora, fruto de estudos sobre a matéria com que se achava a braços, a que ele próprio atribuía uma preponderância sobre todas as demais. É simples. Ao contrário do que imaginam os espíritos que se deixam cegar pelo brilho existente na face épica do cangaço, há nessa vida das armas impurezas bem pouco românticas. Lampião, um cangaceiro profissional dotado de talento administrativo singular, aceitava sociedade com coronéis do interior, chefes municipais de grande destaque em alguns casos, deles recebendo financiamentos para empreitadas de rapina. Dentro do melhor espírito negocial, os sócios beneficiavam-se com quinhões do apurado. Por outro lado, a fortuna de saque que passava pelas mãos do cangaceiro lhe permitia corromper meio mundo, sobretudo os mais necessitados.

Não estranha, portanto, que a rede de coiteiros de Lampião fosse enorme, além de plantada em todos os degraus da pirâmide social sertaneja. Vendo isso, o jovem chefe de polícia assestou suas baterias sobre os coiteiros de toda ordem, preferindo dar com um destes na Cadeia Nova - como o sertanejo chamava a velha Casa de Detenção do Recife - a ter notícia de bandido passado pelas armas, debaixo de cujo cangaço muitas vezes o que se encontrava era um rapazola sertanejo atraído para aquela vida pelo fascínio da aventura, aliado à falta completa de oportunidade de ascensão social e de realização humana condigna. Nisso seguia, sem o saber, os passos de seu antecessor ilustre. Zugasti fôra implacável contra os encubridores, alguns dos quais ligados à nobiliarquia do país.

Outro ponto de que Eurico teve a sensibilidade de cuidar foi o das vocações para o trabalho de polícia, prestigiando, além de nomes novos, o daqueles que já dispusessem de uma mística de sucesso junto aos companheiros de trabalho e, tanto que possível, junto à opinião pública. E é assim que seu caminho vem a se cruzar com o do então major da Força Pública do Estado, Theophanes Ferraz Torres, um pernambucano de Floresta que ainda no verdor dos 20 anos, como alferes, tivera a fortuna de aprisionar, ferido pelo fogo de sua volante em combate verificado num grotão do município de Taquaritinga, em fins de 1914, o mais famoso bandoleiro do país à época, o chefe de cangaço Antônio Silvino, imortalizado pela poesia de gesta dos mestres mais altos que o Nordeste produziu um dia, a exemplo de Francisco das Chagas Batista, Leandro Gomes de Barros e João Martins de Ataíde.

Meses antes, em Serra Talhada e em Triunfo, o quase menino Theophanes dera prova de seu valor entrando em combate desassombradamente com os cangaceiros - chefes de bando, ambos - José Cipriano e Manuel Soares. Alistado em 1912, já era herói ao se por a serviço de Eurico em fins de 1926, pois que vinha de uma série de comissões honrosas - e arriscadas - que se tinham sucedido em sua vida após o feito de 1914, inclusive a da tragédia de Garanhuns, em 1917.

Mas como em polícia valentia não é tudo, não houve proveito maior para ele que receber do jovem chefe instruções de como organizar a estatística criminal, aprimorando a confecção dos boletins, com o uso intensivo da fotografia, tudo confluindo para uma divulgação de êxitos imprescindível a que se levantassem as energias da opinião pública em favor da militância diuturna que a paz social exige sempre como condição para que não deserte de uma dada sociedade, notadamente quando premida por surto criminal violento, como se dava no sertão pernambucano no meado dos anos 20, tempo em que se dizia que, do Moxotó para o Pajeú, saindo no Navio, o pé de pau que não estivesse escondendo um cangaceiro era porque ali já se achava um soldado...

Como braço fardado do duro chefe de polícia do governo Estácio Coimbra, Theophanes divide com este as honras da introdução em Pernambuco da polícia científica e da moderna administração da defesa social, a ele cabendo, em boa parcela, a expulsão do rei do cangaço de nosso território, segundo vimos acima. E tanto assim é que ao fazer um raid de vitorioso por todo o sertão do Estado no final de janeiro de 1928, Eurico se faria acompanhar de Theophanes.

De um Theophanes tão credenciado por serviços que estava prestando ao perrepismo em ocaso na direção de governos sucessivos na República Velha, que a queda desta, em 1930, o arrasta ao xadrez na Casa de Detenção, para onde havia enviado tantos criminosos. Ao tacão do capitão revolucionário Muniz de Farias, agora o bandido era ele, Theophanes, que, da planície, colhe então a maior homenagem a que pode aspirar um policial reto e comedido: o reconhecimento dessas virtudes por aqueles a quem expugnou no cumprimento do dever.

Ao marchar de cabeça erguida para a cela que lhe tinha sido destinada, o famoso oficial colhe o respeito do cangaceiro Antônio Silvino, que ali se achava desde 1914, e dos demais presos, sobre os quais o condottiere das caatingas exercia liderança indiscutível. Do sossego da cela, Silvino dispusera de 16 anos para ajuizar da grandeza moral de seu captor, que o tivera nas mãos no mais arredado centro de caatinga que se possa imaginar, a se esvair em sangue, o pulmão varado de bala, e lhe poupara a vida. Contra a opinião raivosa de vários dos soldados da volante, e até mesmo a do sargento José Alvino de Queiroz, lhe poupara a vida. E o entregara, no Recife, ao governador do Estado, o general Dantas Barreto.

Ouvimos certa vez do filósofo espanhol D. Julián Marias, espécie de primeiro discípulo de Ortega y Gasset, que não gostava de curriculum vitae. Esses pretensos resumos de vida, dizia ele, sofrem a falsidade de neles caber apenas o que se fez, não o que se deixou de fazer. Não aquilo de que, num dado momento, às vezes extremo, nos abstivemos. E juntava: é aí que se esconde o valor humano, por vezes.

No caso de Theophanes, um herói da guerra social em Pernambuco, surda e prolongada nos anos 20 e 30 - como voltou a ser hoje, desgraçadamente - não nos interessa avaliar se foi maior pelas centenas de criminosos que retirou do convívio da sociedade ou pelas vidas dos vencidos que soube poupar, porque uma e outra dessas ações integram o perfil delicadíssimo da atividade policial. E nesta, arrostando incompreensões, Theophanes soube alçar-se ao patamar mais alto, sua legenda impondo-se a quantos em nosso Estado venham a integrar a trincheira mais avançada da defesa da sociedade.

Com a biografia intitulada Pernambuco no tempo do cangaço: um bravo militar, que escreveu sobre o avô ilustre, em anos de pesquisa de que fomos testemunha, Geraldo Ferraz credencia-se à gratidão de quantos se interessem pela nossa história, de modo especial pelo traço humano superior que esta tantas vezes encerra.

Prefácio para a obra "Pernambuco no Tempo do Cangaço - Theophanes Ferraz Torres, Um Bravo Militar (1894-1933)", de Geraldo Ferraz de Sá Torres Filho . 

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