sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Análise: Cordéis de José Pacheco

"A Chegada de Lampião no Inferno" e Rodolfo Coelho "A Chegada de Lampião no Céu" 

Por Tânia Maria de Sousa Cardoso

Distantes, talvez, em suas biografias, José Pacheco e Rodolfo Coelho se irmanavam em relação ao talento inquestionável dos dois, o que fazia com que o leitor esquecesse algumas das diferenças mais marcantes, tal como o fato da linguagem de Rodolfo ser mais elevada, menos propensa às feições ortográficas da linguagem mais popular de Pacheco.

O talento dos autores, que os projetou como dois dos maiores nomes da literatura de cordel, pode ser claramente observada nos dois folhetos selecionados por nós para análise: A Chegada de Lampião no Céu, de Rodolfo, e A Chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco 3.

A publicação de A Chegada de Lampião no Inferno teve grande repercussão, alcançando um alto número de exemplares vendidos. Ilustrado com xilogravuras, o folheto foi lançado pela Editora Prelúdio, de São Paulo, com capa em cores. É um dos cordéis presentes na Antologia da Literatura de Cordel organizada por Sebastião Nunes Batista (1977), demonstrando a grandeza do cordelista, que influenciou vários outros poetas, dentre os quais estão Severino Gonçalves e o próprio Rodolfo Coelho Cavalcante, cuja versão da chegada do rei do cangaço no Inferno, tema freqüente na literatura popular, também tornou-se um best seller nordestino.

Em A Chegada de Lampião no Céu, Rodolfo Cavalcante descreve o momento que Lampião, depois de fugir do Inferno, onde assassinara um e atirara no próprio Lúcifer, força sua entrada no Céu, ameaçando, inclusive, de lançar mão do rifle que trazia consigo. No Céu, Lampião exige uma audiência com Padre Cícero, Maria e Jesus. Em seguida, é instaurado uma espécie de tribunal, no qual Maria, mãe de Jesus, defende o cangaceiro das acusações de Ferrabrás, enviado de Lúcifer. Depois da peleja entre promotoria e defesa, Lampião é sentenciado a passar um período no Purgatório para “alcançar a salvação”.


Já em A Chegada de Lampião no Inferno, José Pacheco narra o momento em que Lampião, impedido de entrar no Inferno, ameaça fazer um escarcéu. Em resposta, o diabo reúne um exército de demônios para enfrentar Lampião. O saldo da briga é terrível: além de vários dos homens de Satanás mortos, Lampião provoca um incêndio no mercado local e no armazém de algodão, o que leva o diabo a lamentar o prejuízo. Por fim, impedido de entrar no Céu e no Inferno, Lampião toma caminho ignorado, embora o narrador imagine que talvez tenha o cangaceiro voltado para o sertão, tal como a alma penada de Pilão Deitado, homem de Lampião que teria morrido em trincheira e que contara ao narrador a história descrita no folheto.

Em uma visada ligeira das duas obras, o leitor é atraído de imediato para a contradição dos títulos, o que pretensamente denunciaria uma diferença ideológica no sentido dos autores avaliarem a figura de Lampião: enquanto um põe o cangaceiro no Céu, lugar de absolvição, outro o insere no Inferno, lugar de dores, de castigo e de perdição.

Por outro lado, uma apreciação mais profunda das duas obras, logo evidencia as muitas aproximações entre os cordéis. Observa-se, por exemplo, que a fama de Lampião, mesmo no outro mundo, continua intocada, inquestionável nos dois folhetos. Daí que a simples menção de seu nome provoca temor, o que afirma a grandeza de seus feitos na terra. É por isso que tanto São Pedro no folheto de Rodolfo quanto o diabo no cordel de Pacheco manifestam um claro desconforto ao conhecer a identidade do cangaceiro:

São Pedro desconfiado
Perguntou ao valentão
Quem é você meu amigo
Que anda com este rojão?
Virgulino respondeu:
- Se não sabe quem sou eu
Vou dizer: Sou Lampeão.

São Pedro se estremeceu
Quase que perdeu o tino
Sabendo que Lampeão
Era um terrível assassino
Respondeu balbuciando
O senhor...está...falando
Com...São Pedro...Virgulino!

(A Chegada de Lampião no Céu, estrofes II e III)

Lampeão é um bandido
Ladrão da honestidade
Só vem desmoralizar
A minha propriedade
E eu [o diabo] não vou procurar
Sarna para me coçar
Sem haver necessidade

(A Chegada de Lampião no Inferno, estrofe XII)

Por fim, percebe-se nos dois cordéis uma clara metamorfose no Céu e no Inferno, que perdem as características sobrenaturais, convertendo-se em espaços terrenos, o que permite que Lampião aja como procedia nos sertões nordestinos, onde punia com violência desmedida os fazendeiros que lhe negassem pousada. Por isso, o cangaceiro não hesita em ameaçar o porteiro do Inferno e agir de forma atrevida para com São Pedro ao lhe negarem entrada naqueles lugares:

Lampeão foi no inferno
Ao depois no céu chegou
São Pedro estava na porta
Lampeão então falou:
- Meu velho não tenha medo
Me diga quem é São Pedro.
E logo o rifle puxou


Lampeão disse está bem
Procure que quero ver
Se acaso não tem aí
O meu nome pode crer
Quero saber o motivo
Pois não sou filho adotivo
Pra que fizeram-me nascer?

(A Chegada de Lampião no Céu, estrofes I e VI)

Lampião disse: - Vá logo
Quem conversa perde hora
Vá depressa e volte já
Eu quero pouca demora
Se não me derem ingresso
Eu viro tudo as avessas
Toco fogo e vou embora

(A Chegada de Lampião no Inferno, estrofe IX)

O Inferno, na verdade, mais parece uma repartição pública, no qual o diabo, como chefe, se aboleta no gabinete central.

O vigia disse assim
- Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas, conforme o que eu disser
Eu levo o senhor pra dentro

(A Chegada de Lampião no Inferno, estrofe VIII)

O Céu de Rodolfo, por sua vez, é como o descrito no livro bíblico de Jó, ao qual o diabo tem livre acesso:

E disse[ Lampião]: Ó Mãe Amantíssima
Dá-me a minha salvação
Chegou nisto o maioral [o diabo]
Com catinga de alcatrão
Dizendo não pode ser
Agora só quero ver
Se é salvo Lampeão

(A Chegada de Lampião no Céu, estrofe XIX)

Num dia em que os filhos de Deus [os anjos] vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles ( ... ). E perguntou o Senhor a Satanás : Observaste a meu servo Jó ? porque ninguém há na Terra semelhante a ele ( ... ). Então respondeu Satanás: porventura Jó debalde teme a Deus? Acaso não cercaste com sebe a ele, a sua casa e a tudo quanto tem ? ( ... ). Estende, porém, a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face. Disse o senhor a Satanás : Eis que tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a mão. E Satanás saiu da presença do Senhor (Bíblia Sagrada: Livro de Jó, capítulo 1, versículos 6 e de 8 a 12 ).

Essa representação, a propósito, é também utilizada por Goethe em sua obra Fausto, ao descrever no “Prólogo no céu” a visita de Mefistófeles (o diabo, a representação do Mal) ao Altíssimo (Deus, o Bem Supremo), resultando em uma “aposta” entre ambos acerca da fidelidade do Doutor Fausto, protagonista da história, aos propósitos divinos, numa clara retomada ao episódio que antecede ao drama de Jó, patriarca bíblico:

MEFISTÓFELES

Já que, Senhor, de novo te aproximas,
Para indagar se estamos bem ou mal,
E habitualmente ouvir-me e ver-me estimas,
Também me Vês, agora, entre o pessoal
[ entre os anjos ]

( ... ).

O ALTÍSSIMO

Nada mais que dizer-me tens ?
Só por queixar-te sempre vens ?
Nada, na Terra, achas direito enfim ?


( ... )

Do Fausto sabes ?

( ... ).

MEFISTÓFELES

De forma estranha ele vos serve, Mestre !

( ... )

O ALTÍSSIMO

Se em confusão [ Fausto ] me serve agora,
Daqui em breve o levarei à luz.
Quando verdeja o arbusto, o cultor não ignora.
Que no futuro fruto e flor produz.


MEFISTÓFELES

Que apostais ? perdereis o camarada;
Se o permitirdes, tenho em mira.
Levá-lo pela minha estrada !


( ... ).

O ALTÍSSIMO

Também nisso eu te dou poderes plenos;

( ... )

( Fecha-se o céu, os arcanjos se dispersam ).

A partir de todas essas aproximações entre os cordéis de Pacheco e de Rodolfo é que se pode perceber o caráter de revanche poética, de contestação popular às condições de vida das camadas mais sofridas, subjacente às duas narrativas.

Observemos, por exemplo, que embora deslocada para os lugares do além-morte, é a vida terrena, o dia-a-dia de dores a matéria-prima dos dois cordelistas. Isso se evidencia, entre outras evidências, a partir da forma como Pacheco descreve o Inferno, atribuindo ao reino de Lúcifer as mesmas características do sertão nordestino, ou, mais propriamente, do Polígono das Secas, região do semi-árido nordestino conhecida como caatinga, uma área com cerca de 700.000 km de extensão marcada pelos longos períodos de estiagem:

Reclamava Satanás
- Horror maior não precisa
Os anos ruins de safra
E mais agora essa pisa
Se não houver bom inverno
Tão cedo aqui no inferno
Ninguém compra uma camisa

(A Chegada de Lampião no Inferno, estrofe XXIX)

Nesse Inferno-aqui-e-agora, Lampião peleja com um diabo “humanizado”, pois, totalmente despido de suas feições e atitudes sobrenaturais, o “senhor das trevas” comporta-se como um ser humano comum, o que explica sua surpresa, entre cômica e inacreditável, de somente pessoas de má índole baterem às portas do Inferno:

O vigia foi e disse
A Satanás no salão:
- Saiba Vossa Senhoria
Aí chegou Lampião
Dizendo que quer entrar
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso ou não

- Não senhor, Satanás disse
Vá dizer que vá embora
Só me chega gente ruim
Eu ando muito caipora
Estou até com vontade
De botar mais da metade
Dos que tenho aqui pra fora

Lampeão é um bandido
Ladrão da honestidade
Só vem desmoralizar
A minha propriedade
E eu não vou procurar
Sarna para me coçar
Sem haver necessidade

(A Chegada de Lampião no Inferno, estrofes X e XI)

A transformação do diabo em um ser humano comum evidencia o deslocamento da luta para outra arena. O que ocorre aqui é a repetição do mecanismo épico, no qual o herói (e o vilão) se transmuda no coletivo, encarnando os interesses e valores do povo. Tal como o boi fujão, descrito no capítulo anterior, Lampião torna-se figura emblemática, concentrando em sua personalidade ambígua o desejo de subversão popular. Sua luta com o diabo representa a luta do povo contra os poderes terrenos, seja patrão ou governo, ou contra as vicissitudes trazidas com as secas, as condições climáticas adversas.

É por isso que, nos cordéis de Pacheco e Rodolfo em análise, Lampião age apoiado em uma justificação tácita do povo. Regendo-se pela lógica de pensamento e reação popular, Lampião age da mesma forma que agiria o sertanejo submetido às condições de extrema penúria e sofrimento. Lampião só ataca porque foi atacado, é o que defende o povo inculto. Isso fica claro nos argumentos aos quais o cangaceiro recorre para livrar-se da punição eterna:

Chegando no gabinete
Do glorioso Jesus
Lampeão foi escoltado
Disse o Varão da Cruz
Quem és tu filho perdido
Não estás arrependido
Mesmo no Reino da Luz?.

Disse o bravo Virgulino
Senhor não fui culpado
Me tornei um cangaceiro
Porque me vi obrigado
Assassinaram meu pai
Minha mãe quase que vai
Inclusive eu coitado.

(A Chegada de Lampião no Céu, estrofe XIII)

Como se percebe, Lampião em seu favor, lembra o episódio da morte do pai pelos posseiros da fazenda família. Isso equivale, na lógica do sertanejo, a uma justificativa que não deixa margem para questionamentos, haja vista apoiar-se na vingança, na retribuição à moda da lei do talião do “dente por dente, olho por olho”. O povo, em geral, defende essa vingança, transmudada em “justiça”. É por essa razão que ambos os cordelistas, porta-vozes do pensar do povo, se não absolvem de todo, também não deixam de aliviar a punição de Lampião.

De fato, em ambas as histórias Lampião não é castigado propriamente, já que sua pena não passa por uma permanência duradoura no Inferno: enquanto no cordel de Rodolfo, o fim de Lampião é o Purgatório, em Pacheco o destino de Lampião, embora incerto, parece ser um retorno ao sertão:

Disse Jesus: Minha Mãe
Vou lhe dar a permissão
Pode expulsar Ferrabrás
Porém tem que Lampeão
Arrepender-se notório
Ir até o " purgatório"
Alcançar a salvação.

(A Chegada de Lampião no Céu, estrofe XXX)

Leitores vou terminar
Tratando de Lampeão
Muito embora que eu não posso
Vos dar a resolução
No inferno não ficou
No céu também não chegou
Por certo está no sertão.

(A Chegada de Lampião no Inferno, estrofe XXX)

Entretanto, a minimização da pena não implica na eliminação total do castigo. É que os cordelistas não podem pôr de lado os crimes sabidos, as crueldades do cangaceiro aqui na terra. Com isso, reafirma-se o caráter ambíguo desse herói popular, consagrada pela vida do pavor que despertava, e não da admiração e da nobreza de seus gestos.

Portanto, o movimento retórico que confunde os lugares da outra vida com a terra, operado através da reinvenção do Céu e Inferno pelos cordelistas é destacado por Kunz (2001, p. 62), ao procurar afirmar o papel da literatura de cordel como um instrumento de contestação, assim explicado pela autora:

À realidade opressora do " aqui e agora" denunciada nos folhetos, o poeta opõe um tipo de combate dado no modo imaginário e cujas armas são a utopia, o mito, a lenda, o milagre... Pela exploração do imaginário e da memória coletivos, ele procura, através da escrita, a livre circulação do ser dentro de si mesmo, fora de si e além da morte. Do mecanismo compensatório à afirmação da força reivindicativa, entre a miséria efetiva, vivida, e o poder de intervenção irreal, ergue-se o poeta e sua palavra. As reimpressões sucessivas de alguns clássicos da literatura de cordel testemunham o sucesso dessa fonte de inspiração: Viagem a São Saruê, de Manoel Camilo dos Santos, A Chegada de Lampião no Inferno de José Pacheco, ou o Romance do Pavão Misterioso, de José Camelo de Melo Resende.

A partir dessas considerações, a autora, referindo-se ao cordel A Chegada de Lampião no Céu, sintetiza as intenções de Rodolfo Cavalcante subjacentes ao texto:

(...) a reivindicação simbólica efetua-se em dois níveis: de um lado, a morte não é tratada como o fim da vida, mas como a imagem inversa da vida. Aos homens que não têm poder real sobre suas próprias vidas, o poeta propõe um poder irreal sobre a morte. A morte lhes pertence.

Por outro lado, o cangaço, fenômeno social decorrido da miséria cotidiana, torna-se o símbolo da opressão e da injustiça sofridas pelas populações do Nordeste. O bandido vira herói mítico, sua epopéia é exemplar: só, embora o grupo fosse um elemento característico do cangaço, o cangaceiro, arquétipo do herói invencível, desafia a morte, afugenta o diabo, obtém promessas de absolvição. Ele propõe de modo individual e fictício, uma forma de combatividade prestigiosa, imagem inversa do sonho de ascensão social que não devia alcançar êxito.

Da História à lenda, da vida à pós-vida, do poder carismático do líder à invencibilidade mítica: o sonho supera a mentira, a mitificação ultrapassa a mistificação.

Como se pode perceber pelas palavras de Kunz, a conversão de Deus e do Diabo em uma espécie de “executivos eficientes de uma agência de viagens” e da morte em “um visto temporário”, fazem parte da mesma ação que transforma Lampião em um “herói incansável e invencível que é inúmeras vezes mandado para o céu ou para o inferno, mas sempre volta”.

É assim que em A Chegada de Lampião ao Céu e em A Chegada de Lampião ao Inferno, Rodolfo Coelho Cavalcante e José Pacheco da Rocha descortinam aos olhos de seu leitor, por meio de um lógica de subversão, o desejo de, negando a realidade que é opressora, afirmar toda a potencialidade reivindicatória do cordel, lançando mão da ficção como um meio genuíno e eficaz de libertação e afirmação da identidade e da dignidade espoliada pelo descaso e pela violência.

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(*) Tânia Maria de Sousa Cardoso, Pedagoga/Supervisão Escolar, formada pela atual Universidade Federal de Campina Grande/UFCG, Centro de Formação de Professores/CFP, Campus de Cajazeiras – PB. Especialista em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Professora da Rede Municipal de Ensino de Mossoró/RN.

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