Tudo ocorreu cerca de cinquenta anos depois do episódio do Arraial de Canudos, quando o beato cearense Antônio Conselheiro insurgiu-se contra a hierarquia católica e o autoritarismo da república então nascente, culminando com o massacre dos conselheiristas; e pouco tempo depois de outro massacre, o do Caldeirão da Santa Cruz, no Cariri, comunidade místico-religiosa liderada por outro beato, o Zé Lourenço. Eis que na confluência do Estado da Bahia com o Piauí, na localidade denominada Pau de Colher, no termo de Casa Nova, — originalmente São José do Riacho da Casa Nova — mais um cearense é o protagonista inicial de uma saga de insurreição e misticismoO rezador de apelido Quinzeiro soube da existência de algumas grandes fazendas no interior do Piauí, na citada área limítrofe com o Estado da Bahia. Tratava-se de três propriedades que pertenciam a Antônio Martins (Barra), Mariano Rodrigues de Sousa (Cágados) e Alexandre Oliveira (Caldeirão). Quem conta a história é o pesquisador Marcos Oliveira Damasceno, bisneto de Alexandre. Vale salientar que o interesse de Quinzeiro era econômico, posto que o Piauí era o maior exportador de gado vacum para o município de Rio Branco, atual Arcoverde, em Pernambuco.
Por razões estratégicas a localidade de Pau de Colher foi a escolhida para a empreitada. Ali o rezador fez logo amizade com moradores do lugar, entre os quais Sinhorinho, Ângelo Cabaço e José Lourenço. No início da construção do arraial os poucos moradores locais ajudaram na construção das casas de moradia, bem como de outras edificações. Concomitantemente, iniciaram-se as rezas e procissões que tinham o condão de irmanar cada vez mais aquela população ignara e naturalmente mística. Segundo alguns estudiosos do movimento, logo aqueles rígidos costumes adotados e os rituais e manifestações de religiosidade popular descambariam para o fanatismo.
Rigorismo para iniciados e compromisso de fidelidade ao líder
A comunidade de Pau de Colher cresceu com rapidez, apesar do rigor com os iniciados no movimento de clara conotação religiosa. As pessoas que desejassem aderir ao movimento tinham que raspar a cabeça, doar todos os seus bens ao mestre Quinzeiro, prometer fidelidade ao ritual e estar sempre à disposição das ordens do líder. O fanatismo exacerbou-se a tal ponto que, segundo consta, o assassinato do pecuarista chamado Zé da Barra foi praticado pelo irmão, em cumprimento de ordem dada pelo “mestre”. O motor do crime teria sido o fato de que o pecuarista não aceitou o convite para aderir ao movimento, ao contrário do seu irmão fratricida.
O fato é que o movimento ganhou muitos adeptos, alcançando uma dimensão que levou as autoridades a ficarem preocupadas, pois além do apelo religioso tinha claramente um apelo social. Tal chamamento foi ouvido além Casa Nova indo repercutir até no município piauiense de São Raimundo Nonato. Muitas pessoas das localidades de Cachoeirinha, Proeza e Minadouro aceitaram o convite e apenas uma minoria não se dobrou aos argumentos sócio-religiosos de Quinzeiro e seus adeptos, agora bem numerosos. Entre as lideranças locais inscritas no rol de seguidores do movimento citam-se Quinca e a esposa Hermenegilda; Zeferino e Zé Caboclo. Com eles, a maioria do povo. Entre os que resistiram ao convite estão Zé da Barra, Raimundo Carlos, Doquinha da Mata e Norberto. Vale ressaltar, de logo que, os que não aceitaram pertencer à irmandade do rezador, transformaram-se em colaboradores da polícia quando o arraial de Pau de Colher foi atacado.
Prosélitos armados de cacetes convidavam as pessoas a aderir ao movimento
A denominação “caceteiros” se deu em razão de que os militantes do movimento destinados a fazer o trabalho de proselitismo se apresentavam armados de cacetes, pedaços de pau. Armados de cacete é que eles enfrentaram as forças policiais e voluntários a serviço do Estado. No início da reação, claro. Posteriormente muniram-se com as armas de fogo conquistadas ao inimigo no campo de batalha.
Com o crescimento e ação desenvolta dos líderes de Pau de Colher as autoridades viram que algo deveria ser feito para barrar o movimento que se propunha ocupara extensas áreas de terra em propriedades privadas, mais precisamente localizadas no Estado do Piauí. Os caceteiros começaram a ameaçar a integridade de quem quer que se opusesse a seus desideratos e, segundo entenderam as autoridades locais na época, a ordem pública estava ameaçada. Portanto, urgia uma providência rigorosa para por abaixo os planos dos caceteiros, cujo contingente a cada dia mais aumentava. Algo teria que ser feito, mesmo porque corriam boatos de que o movimento planejava tirar do caminho cinco personalidades que não mais permitiriam o avanço dos adeptos de Quinzeiro.
Para avançar nas terras piauienses, o movimento teria que assassinar cinco homens influentes na região, os quais teriam condições de atrapalhar os planos de Quinzeiro. São eles: João Rodrigues Sousa (Janjão), que era subdelegado; João Rodrigues Damasceno, líder político, e os três fazendeiros: Antônio Martins, Mariano Rodrigues de Sousa e Alexandre Oliveira. Depois, conforme depoimentos de sobreviventes, se soube que o chefe do movimento, Quinzeiro, determinara que os fazendeiros deveriam ser capturados vivos e acorrentados pelo pescoço, conduzidos ao arraial, onde assinariam as escrituras das terras, transferindo-as para o movimento.
Com efeito, o primeiro a ser atacado foi Janjão, o subdelegado, por morar mais próximo, na localidade Olho D’Água. Depois seria a vez dos demais. Prevenido, o subdelegado contratou oito capangas, de modo que sabedor da guarnição de Janjão, Quinzeiro enviou sessenta jagunços armados com cacetes para matá-lo. Apesar de armados com rifles, os 8 homens eram insuficientes para derrotar um contingente oito vezes maior. O subdelegado resolveu bater em retirada, fugindo pelos fundos da casa levando consigo a esposa Marieta Oliveira e uma menina de 15 anos, que tinha o nome de Santa. Os três fugiram para a localidade de Riachinho a abrigar-se sob a casa do Sr. Júlio Dias, bem distante do local do assalto.
Os caceteiros mataram os oito homens e a casa foi queimada juntamente com uma bodega ali existente. Os objetos foram saqueados. O subdelegado pediu reforço à polícia de São Raimundo Nonato. Corria o mês de dezembro de 1937. Veio a Força Policial de São Raimundo Nonato, comandada pelo major Toinho. A “força policial” constava de dois soldados: Militão Martins e Carlos Santana. Segundo os relatos esses soldados valiam por uma centena de praças, segundo depoimento do próprio Janjão. Ao se aproximar do local, a volante policial foi surpreendida por uma multidão de pessoas. Ao avistar os caceteiros, o major Toinho logo recuou e correu do local, deixando algumas armas de fogo (rifles) no acampamento. Bom para os “caceteiros”, que as pegaram.
Multidão explode em violência na defesa dos caceteiros
Diante do revés, mais uma vez foi solicitado reforço de Casa Nova - BA. Essa volante era comandada pelo cabo Vieira. Essa volante chegou a entrar no arraial, aprisionando algumas pessoas e cercando os principais líderes. Todavia, de repente, uma multidão de cerca de três mil pessoas explodiu em violência e perpetrou um massacre contra a volante, morrendo inclusive o Major Toinho. As armas novamente ficaram para os “caceteiros”.
Depois desse episódio, os caceteiros só ganharam mais forças. E prepararam outra investida. Vendo a gravidade da situação, os Estados do Piauí e da Bahia pediram ajuda ao Estado do Pernambuco. Os que resistiam aos caceteiros nas fazendas da região de Pau de Colher estavam desorganizados e lhes faltava comunicação eficiente com as forças policiais. A esta altura, as notícias dando conta dos conflitos no arraial do Pau de Colher já havia chegado ao conhecimento do presidente Getúlio Vargas por intermédio do bispo Dom Inocêncio, de Juazeiro da Bahia. Atendendo aos apelos das autoridades da região, o presidente Vargas, no final de janeiro de 1938, autorizou o envio de contingente policial proveniente de Pernambuco.
Quando chegou ao local do arraial, guiada pelas próprias pessoas resistentes, a força pernambucana montou uma estratégia infalível: cercou toda a área do arraial. Eram cem soldados bem estruturados preparados para a invasão, o que efetivamente ocorreu. A batalha durou cerca de 24 horas e as baixas foram grandes de ambos os lados. Ao contrário do que ocorreu em Canudos, em Pau de Colher as crianças foram poupadas. No mais a ordem era matar quem se manifestasse em estado de insubordinação e rebeldia. Porém, dominado o adversário as forças do Estado permitiram que as mulheres saíssem da área conflituosa. Foram liberadas. Diz-se que a medida facilitou a fuga de Quinzeiro. O mentor de toda a sublevação teria conseguido empreender a fuga vestido de mulher.
No final da luta, quando restavam poucas pessoas, em meio à verdadeira carnificina, houve a rendição dos caceteiros. Muitos dos presos foram depois liberados. Eram apenas pessoas residentes no lugar, sem culpa naquele estado de coisas. Todavia, finalmente os líderes do movimento foram presos e no arraial foi tocado fogo.
As crianças órfãs e que não tinham nenhum parente que por elas se responsabilizassem foram levadas para Salvador e adotadas ou colocadas em conventos. Alguns jovens foram servir na Marinha, outros no Exército. Uma dessas crianças chegou a se tornar brigadeiro da Força Aérea Brasileira.
Pau de colher constitui, destarte, uma das guerras populares mais trágicas do interior do Nordeste. Porém, são necessárias mais aprofundadas pesquisas para que se aclare algumas lacunas que ainda persistem na história até aqui registrada.
Romaria anual reverencia os mortos inocentes
A Paróquia de São José Operário de Casa Nova/BA, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra-CPT, da Diocese de Juazeiro da Bahia, promove todos os anos uma romaria ao local dos enfrentamentos, com o objetivo de reverenciar a memória dos muitos inocentes que tombaram na batalha de Pau de Colher. No ano passado ocorreu VI Romaria de Pau de Colher, a 13 de dezembro. A romaria acontece há cerca de 60 km da sede do município. O tema trabalhado pelos organizadores e romeiros em 2009 foi “Com Fé e organização conquistamos nossos direitos e o lema: Terra, Água, Saúde e Energia!.
Cerca de quatro mil adeptos compunham a comunidade de Pau de Colher
Pau de Colher é uma localidade do município de Casa Nova - BA, aproximadamente 15 km da divisa com o Piauí, especificamente no limite com o município de Dom Inocêncio. Na época da “Guerra dos Caceteiros” ou de “Pau de Colher” (1938) pertencia ao território do município de São Raimundo Nonato-Piauí, ao tempo administrado pelo prefeito Francisco Antônio da Silva, o Bitozo Silva, um dos que não concordaram com a situação em que cerca de 4000 pessoas propugnavam obediência a uma legislação consuetudinária própria da comunidade de Pau de Colher, em clara desobediência às leis do país.
No fundo das águas
Cidade de Casa Nova (BA),
que em 1977 foi submersa pela barragem de Sobradinho
que em 1977 foi submersa pela barragem de Sobradinho
O município de Casa Nova originou-se na primeira metade do século XIX, em razão da produção de sal em seu território. O fundador teria sido um rico português conhecido apenas como Senhor Viana, de quem seria descendente o Conselheiro Luís Viana, um dos grandes do Império e o mais preeminente casanovense. O filho deste, Luís Viana Filho, foi igualmente ao pai, governador da Bahia. Foi também Senador da República e era escritor famoso, tendo ocupado uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Oficialmente o município foi criado por lei provincial de 1879, com área desmembrada do município de Remanso, que por sua vez já pertencera a Pilão Arcado. Seu nome original foi São José do Riacho de Casa Nova. Em 1976, o lago formado pela barragem de Sobradinho cobriu as cidades originais de Casa Nova, Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé. A mudança das cidades e das populações ribeirinhas por causa da barragem causou protestos e contribuiu para colocar no fundo das águas um pedaço da memória histórica do Brasil, especialmente do Nordeste.
Pesquei na essencial: Revista Nordeste 21 Edição nº 12, Ano I, Junho de 2010.
Excelente artigo. Pau de Colher é um dos temas palpitantes do Nordeste "messiânico" que ainda é desconhecido do grande público. E digo - a título de curiosidade - que a ofensiva pernambucana contou com participações de Optato Gueiros e Manuel Flor, ambos ligados à repressão ao cangaço. Parabéns pela postagem de altíssimo nível. Abraços
ResponderExcluirLeandro Cardoso Fernandes
Achei o artigo um tanto vago. Quais foram as fontes de pesquisa sobre o acontecido?
ResponderExcluirEnvolveu entrevista com os integrantes daquele movimento?
O fato do pesquisador ser bisneto de um dos envolvidos e inimigo do movimento de pau de colher não compromete a imparcialidade necessária a pesquisa?
Você disse que a lacunas nessa história: Quais seriam?
Sr Ciro
ResponderExcluirPara que seu comentário não seja em vão sugiro que redirecione sua crítica à redação da Revista Nordeste21, de onde ripamos a matéria, pois o autor sequer sabe da transcrição e repercussão da mesma aqui no Blog.
Obrigado pela visita e atenção.