Por: Leonardo Ferraz Gominho (*)
Os revoltosos
Manoel Quincas de Souza Ferraz residia na Mata dos Angicos, fazenda que construíra na ribeira do Mandantes e onde moraria até o ano de 1940, quando se mudaria para o Poço das Baraúnas. Esta última fazenda já era, então, embrionária. Ali, num certo dia de fevereiro de 1926, estava o proprietário, acompanhado do filho Bráulio, quando obteve notícias de que elementos da Coluna Prestes tinham invadido a fazenda de Totoinho Ferraz, no Poço Novo, a três quilômetros dali.
Os revoltosos, tudo indicava, marchavam na direção da Mata dos Angicos. Manoel necessitava permanecer no Poço das Baraúnas por algum tempo. Instruiu o filho: deveria ir à Mata dos Angicos avisar Mariinha.
Manoel Quincas e sua esposa Maria Gomes Ferraz.
E recomendou: deveria ocultar o cavalo atrás da roça e, a pé, aproximar-se cautelosamente da casa. Se os revoltosos não se encontrassem ali, avisaria sua mãe para não abandonar a casa. Explicou que os componentes da Coluna não eram celerados; tratava-se de gente civilizada, conduzida por idealistas. Deveria, entretanto, soltar e espantar todos os animais da fazenda. Mandou que escondesse os arreios de montaria pois a Coluna necessitava de cavalos e material de sela para continuar sua marcha. Mandou o filho seguir rápido. Logo iria estar com eles.
Bráulio foi encontrar a fazenda sem qualquer anormalidade. Sua mãe terminava de banhar o pequeno Humberto (filho de Benício Ferraz) quando recebeu o recado. Ainda que a notícia tenha sido dada sem alvoroço, Mariinha, incontinente, envolveu o neto numa toalha de banho e bradou aflita:
- Vamos embora, depressa! Os revoltosos vem aí!De nada valeram as recomendações do chefe da família. Mariinha, ao lado das filhas, partiu imediatamente para o Poço das Baraúnas; Preta - que adotara assim que casou - ajudava no que podia. Bráulio e o primo Elpídio Ferraz - outro que passou a morar com Manoel Quincas ainda adolescente, com cerca de 14 anos de idade - trataram de retirar da casa o que tinha de mais vulnerável: selas e arreios, malas com roupas, tudo foi escondido às pressas.
Com receio de que as mulheres, naquele alvoroço, viessem a se atirar nas águas do Mandantes, represadas pelo açude, Elpídio pediu para que Bráulio alcançasse a mãe e prevenisse quanto à imprudência. Ele, sozinho, completaria o trabalho iniciado.
Depois de espantados os animais, Elpídio presenciou a chegada dos elementos da Coluna. Entraram na casa e reviraram tudo. Levaram uma sela e uma corda de laçar, que ali haviam ficado. Espalharam pelo chão a correspondência de Manoel Quincas, quase toda relacionada com os negócios de compra e venda de bois.
Também jogaram no chão alguns exemplares de jornais. Entre eles, e dentro de um velho calçado que estava sob a cama do casal, havia algum dinheiro, colocado previamente pelo dono da casa. Ainda que tenham tocado nos jornais, nada encontraram; e do calçado velho, não fizeram o mínimo caso.
Assim que pôde, Manoel Quincas dirigiu-se para a Mata dos Angicos. Aproximou-se cautelosamente. Em dado momento, divisou um vulto agachado, tomando posição, procurando se ocultar. Logo concluiu que deveria ser um revolucionário que ainda estava no local e, ao avistá-lo, pretenderia prendê-lo. Apressou-se a gritar:
- Quem está aí?O susto foi ainda maior para o interpelado. Era Elpídio. Os revoltosos já tinham partido.
Cel Bráulio Ferraz
Aqueles dias eram de apreensão. Os revoltosos ameaçavam inclusive entrar em Floresta. O IPAC/PE, no seu Inventário do Patrimônio Cultural de Pernambuco, edição de 1987, abordando o Sertão do São Francisco, diz, à folha 113, que em “1926, um grupo da Coluna Prestes invadiu a igreja” do Rosário “para se abrigar por alguns dias”. Como outras coisas que diz, nada mais falso. Aqueles militares jamais entraram na cidade de Floresta, onde uma força civil organizada por Ildefonso Ferraz e sob a coordenação do Prefeito Manoel Serafim de Souza Ferraz (Duel) estava sempre a postos e pronta para a defesa. Se os revoltosos tivessem tentado entrar na cidade, poderiam arrazá-la. Felizmente não tentaram.
Cangaço - tempos difíceis
Naqueles anos, a falta de segurança era total. Além dos revoltosos, Lampião, atacando e roubando os fazendeiros, fazia com que os criadores e agricultores vivessem em constante sobressalto. Manoel Quincas chegou a receber bilhetes de Lampião, pedindo dinheiro.
As ações do cangaceiro não deixavam dúvidas sobre suas intenções e periculosidade. Ameaçava constantemente a família Ferraz. Os que tinham condições procuraram levar seus familiares para a cidade, onde a segurança e a possibilidade de defesa eram sempre maiores. Tomando conhecimento de que Virgulino estava nas redondezas, Manoel Quincas — sempre viajando, no seu comércio de gado — não fez diferente: retirou a família. Deixou ali apenas o sobrinho Elpídio e o filho Bráulio para darem água aos animais e realizarem tarefas indispensáveis. Em virtude do risco a que se expunham, os dois permaneceram ali armados e bem municiados. Duas mulheres já idosas, “sia” Firmina e “sia” Joana, faziam a comida dos jovens. A primeira era a mãe e a segunda a avó de Manoel Batinga, morador de Manoel Quincas no Poço das Baraúnas.
Num certo dia de agosto de 1928, Bráulio encontrava-se no chiqueiro, ordenhando as cabras, quando viu Miguel Yoyô (da fazenda Mandacaru, na margem esquerda do Mandantes) chegar montado num cavalo que estava coberto de suor. Viera avisar que Lampião fora visto nas Areias e se dirigia à região circunvizinha.
Pouco podia fazer. Elpídio tinha ido a Floresta. O gado, naquela seca, caindo de fraqueza, teria de ser controlado na descida para a fonte, percorrendo estreito corredor em rampa, cerca de 20 metros de extensão, que ia dar no bebedouro, a 40 palmos de profundidade. Armado de rifle e bem municiado, Bráulio permaneceu naquele corredor, emparedado pelas ribanceiras, mas exposto a todos os riscos.
Na tarde daquele dia, sentou-se na varanda da casa e passou a ler uma revista. De repente, erguendo os olhos, avistou um grupo armado que caminhava em sua direção. Levantou-se rápido, com o rifle na mão e o bornal de balas a tiracolo. Tomou posição na porta de entrada, abrigando-se tanto quanto possível das balas que, esperava, logo seriam deflagradas contra ele. O grupo era numeroso. Já se preparava para tentar uma fuga pelos fundos da casa quando, aliviado, reconheceu Manuel Neto à frente. Era a volante da Polícia, cujo uniforme se confundia com o dos cangaceiros.
Bráulio guardou o rifle e o bornal, saindo para receber a polícia. Manuel Neto, com o semblante trancado de sempre, cumprimentou o jovem e perguntou como se chamava a fazenda e quem era o proprietário. Informado, perguntou por notícias de Lampião.
Depois de satisfeito, disse que queria barrar a passagem do bandido, que pretendia passar para a Bahia. Adiantou que Lampião, perseguido insistentemente pelas volantes sob o comando geral do major Theóphanes perdera muitos dos seus elementos e o grupo se encontrava reduzido a cerca de 10 cangaceiros.
A seguir, pediu que lhe fosse indicado o caminho para a fazenda Poço Verde. Bráulio ofereceu-se para levá-lo até lá. O militar disse não ser necessário, mas o jovem insistiu e foi tomando o caminho, desarmado. Manuel Neto, então, determinou-lhe para ir buscar o rifle e o bornal, adiantando que notara, à chegada, que ele estava armado e municiado.
Nessa ocasião, Manuel Neto não conseguiu impedir a passagem de Lampião para a Bahia. A travessia se deu a 21 de agosto e o grupo se compunha de seis cangaceiros.
Capítulo de seu livro "Floresta uma Terra - um Povo", 1996, editora: Fiam.
Imagens: Genealogia Pernambucana
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