Por Tânia Maria de Sousa Cardoso
A chamada literatura popular vem sendo cada vez mais estudada no âmbito acadêmico. Testemunha disso é o número de obras versando sobre o tema que a cada ano é lançado no mercado editorial. Da mesma forma, também a quantidade sempre crescente de trabalhos em torno da temática nos congressos literários e lingüísticos confirma a afirmação de que a literatura popular tornou-se um promissor objeto de estudo científico.
Muitas universidades, seguindo essa tendência de crescimento do interesse pela literatura popular, vêm criando linhas de pesquisa voltadas para a reflexão, discussão e equacionamento de questões relacionadas com o tema. Com isso, autores e obras até pouco tempo marginalizados pelas instituições de ensino superior, convertem-se em alvo da perquirição científica. É bem este o caso de Patativa do Assaré, cuja morte recente somente acirrou o interesse dos pesquisadores por conhecer a genialidade de um autor que em nada deixou a dever a muitos dos nomes já consagrados no meio acadêmico.
É nessa perspectiva que situamos o caso da literatura de cordel, uma modalidade narrativa até pouco tempo definida apenas a partir de marcas gerais, e em geral desabonadoras, como a má qualidade da impressão, o pouco caso com a "correção" lingüística, a presença marcante da oralidade, o fato de ser tradicionalmente vendida em feiras e o tipo de consumidor, em geral pessoas de baixo nível escolar, cuja linha de interesses estabelece a temática característica dos folhetos - casos, em geral jocosos que beiram, não raro, o escatológico.
A mudança no que tange à recepção do cordel é ressaltada pelo professor Joseph Luyten em sua apresentação à seleção de poemas de Rodolfo Coelho Cavalcante (2000, p. 05), incluída no projeto denominado de Biblioteca do Cordel, da editora Hedra:
A literatura popular em verso passou por diversas fases de incompreensão e vicissitudes no passado. Ao contrário de outros países, como o México e a Argentina, onde esse tipo de produção literária é normalmente aceita e incluída nos estudos oficiais de literatura - por isso poemas como "La Cucaracha" são cantados no mundo inteiro e o herói do cordel argentino, Martin Fierro, se tornou símbolo da nacionalidade platina -, as vertentes brasileiras passaram por um longo período de desconhecimento e desprezo, devido a problemas históricos locais, como a introdução tardia da imprensa no Brasil (o último país das Américas a dispor de uma imprensa), e a excessiva imitação de modelos estrangeiros pela intelectualidade.
A "descoberta" do cordel pelo meio acadêmico, julgamos, decorre da percepção dos intelectuais acerca da força que essa modalidade literária detém na representação do imaginário de nosso povo, cristalizando sua maneira de pensar e de reagir ante os fenômenos sociais.
Dessa forma, trata-se o cordel de uma literatura viva, intimamente ligada com a cosmovisão popular, do que decorre sua condição de chave para o entendimento da própria identidade nacional: mais do que narrar histórias, os cordelistas deixam pistas para o mapeamento da "alma" de nosso povo, aqui entendida como a "entidade a que se atribuem, por necessidade de um princípio de unificação, as características essenciais à vida (do nível orgânico às manifestações mais diferenciadas da sensibilidade) e ao pensamento" (Ferreira, 1986, p. 88).
De fato, a análise da estrutura profunda da literatura de cordel descortina para o pesquisador despido de preconceito uma maneira própria, peculiar, de dar equação aos problemas do mundo, que muitas vezes se traduz em uma reação, no nível ficcional, ao descaso ou opressão das autoridades para com os menos favorecidos.
Como em um labirinto, as "respostas" que esse tipo de literatura dá aos problemas do mundo seguem em ziguezague, não raro revelando as contradições da mente popular, pouco afeita ao refinamento intelectual da elaboração científica, mas que tem como maior trunfo a autenticidade e a espontaneidade perdidas pelo racionalismo rançoso das academias.
Como forma de pensar "alternativa", a literatura popular constrói seus heróis segundo uma lógica intimamente colada às vicissitudes do povo, muitas vezes legitimando uma condição ou um conjunto de práticas que, aos olhos dos que não vivenciaram as mesmas experiências do povo. Daí a transformação, por exemplo, de vilões em heróis.
Os feitos de João Grilo e de Pedro Malazarte são emblemáticos dessa questão, considerando que muitas de suas desonestidades e até mesmo de seus atos violentos são plenamente justificados no interior das obras de cunho marcadamente popular, que apóiam o proceder dos referidos (anti-)heróis a partir da opressão e da miséria experimentada por ambos, o que permitiria interpretar seus atos como o restabelecimento da justiça, um ato de desespero e/ou uma questão de sobrevivência.
É nesse contexto que se insere a questão de Lampião, o qual, circunscrito no rol do banditismo, muitas vezes parece ser facilmente abonado pelos cordelistas, que o promovem a condição de verdadeiro herói popular. Como entender essa reviravolta conceitual, principalmente distante dos centros em que o fenômeno do cangaço se originou? Como não se chocar diante da afirmação da crueldade de um bandido capaz de cometer atos de violência quase impensável à luz da razão?
A dificuldade em entender esse fenômeno muitas vezes terminou por impor uma explicação preconceituosa, atribuindo a uma pretensa propensão atávica do nordestino à violência, como afirma Albuquerque Jr. (1999, p.61), ao discutir os equívocos dos intelectuais do sul (e mesmo do norte) do país em suas interpretações do Nordeste:
O banditismo ou o cangaço é também outro tema que, eleito pelo "discurso do Norte" para atestar as conseqüências penosas das secas e da falta de investimentos do Estado na região, de sua não modemização, adquire uma conotação pejorativa que vai marcar o nortista ou o nordestino com o estigma da violência, da selvageria. Aliás, esse medo do nortista e, especialmente, do homem de cor negra emerge com a constante insubordinação dos escravos, importados do Norte para o Sul. Submetidos a um ritmo de trabalho mais intenso e relações sociais mais despersonalizadas, esses escravos tendem a se amotinar, notadamente num período em que a consciência do eminente fim da escravidão crescia até mesmo entre a massa escrava. A fama do "negro mau" vindo do Norte está presente nos discursos que abolicionistas ou antiabolicionistas fazem na Assembléia Provincial de São Paulo e marcam a imagem do "homem do Norte", desde o século anterior.
O cangaço só vem reforçar essa imagem do nortista como homem violento e do Norte como uma terra sem lei, submetido ao terror dos "bandidos e facínoras", além da violência de suas "oligarquias". A descrição das façanhas dos bandidos, colhida principalmente entre amedrontadas populações urbanas daquela área, possui quase sempre a mesma estrutura: descrevem o que "os facínoras fizeram ao saquear as diversas localidades, matando gente e animais, incendiando propriedades, desordenando famílias numa série inenarrável de crimes dos mais pavorosos e hediondos".
As narrativas sobre o cangaço são um dos raros momentos em que o Norte tem espaço na imprensa do Sul, assim como quando ocorria repressão a movimentos messiânicos, secas ou lutas fratricidas entre parentelas. Estas narrativas servem para marcar a própria diferença em relação ao "Sul" e veicular um discurso "civilizatório", "moralizante", racionalista, em que se remetem as questões do social para o reino da natureza ou da moral. O "Norte" é o exemplo do que o "Sul" não deveria ser. É o modelo contra o qual se elabora "a imagem civilizada do Sul".
Esses equívocos, embora sejam injustificáveis, podem ser facilmente compreendidos admitindo-se que a realidade não é captada de forma única, tendo em vista que há entre nós e a realidade "filtros ideológicos". É isso que se pode depreender a partir da afirmação de Bosi (1993, p. 13) de que "o ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência". Ou seja, o próprio olhar já é uma interpretação, posto que o olhar é como que programado a partir de nossas vivências com o mundo à nossa volta.
Portanto, para compreender o fenômeno do cangaço, e mais propriamente a conversão de bandidos como Lampião em heróis, requer do pesquisador um mergulho na alma, no imaginário do povo, dado serem as imagens que o compõem construções baseadas nas informações obtidas pelas experiências visuais anteriores. Nós produzimos imagens porque as informações envolvidas em nosso pensamento são sempre de natureza perceptiva. Imagens não são coisas concretas mas são criadas como parte do ato de pensar. Assim a imagem que temos de um objeto não é o próprio objeto, mas uma faceta do que nós sabemos sobre esse objeto externo. (Laplantine e Trindade, 1997, p. 10)
Mas, afinal, o que moveria o "povo do Nordeste" a ver o cangaceiro como herói, o que, em certa medida, imporia o apagamento, suspensão ou transferência a uma espécie de zona "neutra" do pensamento, na qual o julgamento ficaria adormecido ou fragilmente ativo, das notícias dos crimes hediondos praticados por esses fora-da-lei?
A análise das respostas de diferentes autores para a atribuição de um valor positivo à figura do cangaceiro permite-nos afirmar a presença de uma raiz de contestação, de negação ao que está estabelecido. O cangaço torna-se, assim, elemento de resistência, ainda que marcada pela ausência de reflexão mais profunda e refinada da parte dos que a ele aderem ou manifestam simpatia: nega-se a partir de um sentimento difuso de injustiça, de descaso, de falta de perspectivas, ou mesmo de indistinção, de incapacidade em reconhecer quem é verdadeiramente o mocinho ou o vilão em uma situação em que o terror e a opressão constituem os únicos meios de administração dos conflitos, seja da parte dos poderes legalmente constituídos, seja por parte dos que se põe à margem da lei.
Dessa forma, experiências visuais pretéritas foram as responsáveis pela mitificação de um Jesuíno Brilhante e de um Antônio Silvino, enquanto personagens como Lampião e Corisco, pelas atrocidades inenarráveis, ocupam posições ambíguas neste processo de construção coletivo.
É nesse contexto que a literatura de cordel se apresenta como um importante veículo de expressão e como um articulador da comunicação do sertão esquecido e inculto, como se observa nas entrelinhas da afirmação de Batista (1977, p. 17), para quem;
Se a memória popular vai conservando e transmitindo velhas narrativas e acontecimentos recentes esta transmissão está sempre marcada pelo espírito desta sociedade. E não é por outra razão que a memória popular vai conservando os fatos narrados, transmitidos com as adaptações de cada narrador aquilo que foi ouvido. E quando se trata de alfabetizado, a transmissão se torna ainda mais fácil, porque oriunda da própria leitura dos folhetos.
Essa função do cordel, a bem da verdade, já foi muito mais destacada, quando a sociedade inculta, carente de toda infra-estrutura básica, tinha nessa forma de literatura quase que o exclusivismo na tarefa de levar notícias para o povo, que se encarregava de disseminá-las em alpendres, durante as famosas retretas regionais em que se encontravam para conversas etc. Nessa época, o cangaço, por ser um assunto próximo, despertava o interesse dos espectadores, fazendo com que o caráter informacional dessa literatura tivesse sua efetivação.
A despeito disso, mesmo em tempos de televisão e Internet a literatura de cordel continua sendo porta-voz do falar e do pensar do povo, retratadas em suas marcas principais: o traço forte da oralidade, presente nas falas das personagens populares (sertanejos, brejeiros, etc.), e a ideologia presente nas formas como esses personagens atuam e sobrevivem no interior das narrativas.
Por todas essas razões é que o presente trabalho, que se configura em nossa Monografia de Especialização em Literatura Brasileira, curso realizado pelo Departamento de Letras Estrangeiras da Faculdade de Letras e Artes da Universidade do Estado do Rio Grande Norte, pretende afirmar o papel da literatura de cordel enquanto instrumento de expressão da contestação das classes populares. Para tanto, nos valemos da análise de dois cordéis: A Chegada de Lampião no Céu, de Rodolfo Coelho Cavalcante, e A Chegada de Lampião no Inferno, escrito por José Pacheco da Rocha.
A opção pelos referidos cordéis deveu-se, inicialmente, por gravitarem em torno da temática do Cangaço, tendo como foco a figura do Lampião. Dessa forma, abre-se o espaço para pensarmos um fenômeno característico do Nordeste, que embora pontuado no tempo, ainda reverbera enquanto elemento simbólico da cultura nordestina. Por outro lado, a contradição dos títulos dos cordéis escolhidos como objeto de investigação permite-nos tanto analisar as contradições e coerências do discurso que ora afirma, ora nega o estatuto do cangaceiro como herói popular, quanto demonstrar que, no nível da estrutura profunda, ambos os textos se equivalem, reafirmando o desejo popular de contestar a lógica do status quo.
Para desenvolvermos nossas argumentações, dois conceitos foram particularmente importantes: a noção de banditismo social, à qual Hosbsbawn recorre em sua obra Bandidos (1976) e a concepção da literatura de cordel enquanto revanche poética, trabalhado por Martine Kunz em seu Cordel: a voz do verso (2001).
Em termos metodológicos, nossa pesquisa se apóia em uma perspectiva comparativista, considerando o contínuo confronto entre os cordéis de Rodolfo Coelho e José Pacheco, bem como através do diálogo entre o discurso literário e o sociológico.
Para atingirmos nossos objetivos, o corpo do presente trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro, apresentamos uma panorâmica histórica acerca do cangaço, momento em que discorremos sobre fatos marcantes da vida de Virgulino Ferreira, o Lampião. No segundo capítulo, passamos a tratar da importância de questões inerentes à estrutura do cordel, ressaltando ainda sua importância como elemento importante no processo de construção do herói épico-popular.
Por fim, desenvolvemos ao longo do terceiro capítulo a análise contrastiva entre os cordéis A Chegada de Lampião no Céu e A Chegada de Lampião no Inferno, demonstrando que Rodolfo Coelho e José Pacheco, embora se afastando em algum momento na abordagem sobre a figura do Lampião, aproximam-se no nível da estrutura profunda, traduzindo em suas obras tanto o desejo da população mais carente de contestar o descaso e/ou opressão das autoridades para com o povo, quanto de criar no nível da ficção uma saída para as dificuldades impostas pelas condições naturais quase sempre inóspitas e a falta de perspectivas da região.
A autora
(*) Tânia Maria de Sousa Cardoso, Pedagoga/Supervisão Escolar, formada pela atual Universidade Federal de Campina Grande/UFCG, Centro de Formação de Professores/CFP, Campus de Cajazeiras - PB. Especialista em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Professora da Rede Municipal de Ensino de Mossoró/RN.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Espiou? Pois vamos palestrar