Mídia e cangaço
Lampião sob o olho da imprensa
Por Alberto Dines
Prefácio de O Outro Olho de Lampião – a imprensa e o cangaceiro, de Artur Aymoré, 192 pp., Jacintha Editores, Piracicaba, 2010; R$ 38,00.
Qual a função do jornalista na sociedade democrática, fixar-se no que acaba de acontecer ou ir além para dar sentido ao que aconteceu?
O gaúcho Hipólito da Costa, o pai do jornalismo de língua portuguesa, já oferecia há 200 anos uma visão mais ampla do papel do jornal e do jornalista ao atribuir aos redatores das "folhas públicas" outras funções além de servir de "primeiro despertador" da sociedade. Munidos de uma crítica sã, escreveu Hipólito, devem representar os fatos do momento, as reflexões sobre o passado e as sólidas conjecturas sobre o futuro.
Sete décadas depois de morto, o pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1897-1938), é menos conhecido pelas novas gerações do que a canção Mulher Rendeira, tema da trilha sonora do longa-metragem de Lima Barreto que conquistou Cannes em 1953.
Requisitos históricos
Lampião foi cangaceiro ao longo de 18 dos seus 41 anos de vida. Ocupou as primeiras páginas da imprensa brasileira e internacional, foi filmado, fotografado, entrevistado, tornou-se uma lenda, mito, representação, figura folclórica, caso de estudo e desapareceu, soterrado por nosso descaso com o passado e devoção à banalidade.
O jornalista Artur Aymoré foi buscá-lo nas páginas da imprensa brasileira ao longo de meio século, desde 1922. Percorreu as coleções dos principais jornais do Nordeste e do eixo Rio-São Paulo e deste périplo de quatro anos trouxe de volta não apenas as façanhas do Lampião e do seu bando, mas a imagem que a imprensa construiu a seu respeito.
Reportagem sobre as reportagens, flagrante dos flagrantes, jornalismo e crítica ao jornalismo, dissertação de mestrado que preenche os requisitos preconizados por Hipólito da Costa no Ano I da nossa imprensa. [São Paulo, fevereiro de 2009]
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[do release da editora]
No livro O Outro Olho de Lampião – a imprensa e o cangaceiro, o jornalista Artur Aymoré faz a interpretação da cobertura que a imprensa, do Brasil e do exterior, fez nos últimos 50 anos, da atuação de Lampião, o protagonista da mais épica e longa – quase 20 anos – de todas as revoltas sangrentas já surgidas no país. "A manipulação dos fatos, principalmente no primeiro período da pesquisa (1922-1950) e a ficção da mídia, permitiram projetá-lo como um dos maiores mitos do Brasil moderno. Um herói trágico", diz o jornalista. Na pesquisa da cobertura jornalística foram analisadas mais de 580 matérias veiculadas nos jornais brasileiros de 1922 a 1950 e de 1950 a 1972, que serviram de base à dissertação do autor para obtenção de mestrado na ECA/USP.
O ensaio aponta que a figura de Lampião foi transformada em duas versões simultâneas: de um lado, pela manipulação da mídia – que o transforma num personagem fabuloso e satanizado. De outro, a do sertanejo rebelde, destemido, forte e livre, que enfrenta o tirano coronel rural, o latifundiário, como é visto pelo camponês faminto.
Ao contrário dos heróis do "grande cinema" e dos épicos literários (o caubói e o samurai), que se situam na luta entre a lei e o bandido (os fora-da-lei), Lampião combate a (des)ordem estabelecida, instaurando o caos permanente na lei e posicionando-se sempre ao lado do povo. Místico, rústico e justiceiro, o cangaceiro forma, ao lado do caubói e do samurai, a trindade dos grandes heróis. Os três se identificam, mas também se distanciam entre si: o caubói leva o revólver invencível; o samurai, a espada da honra e lealdade; e o cangaceiro, a pexera e a carabina da revolta e vingança.
Imaginação e histeria
A pesquisa consumiu cinco anos e foram analisadas todas as matérias publicadas nos dois períodos considerados nos jornais Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, de Pernambuco; nos baianos A Tarde e Diário de Notícias; nos fluminenses e cariocas Gazeta de Notícias, Noite Ilustrada, Correio da Manhã, O Globo e Jornal do Brasil; nos paulistas O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo; e nas revistas O Cruzeiro, Manchete e Fatos & Fotos, editadas no Rio de Janeiro.
No Nordeste, um facínora. No Sudeste, um dos resultados das condições sociais injustas. Durante mais de cinco décadas, esse antagonismo marcou a cobertura da mídia em relação a Lampião. A marca equivocada da imprensa nordestina se deu por influência direta dos coronéis, visto serem muitos deles proprietários de jornais ou sobre eles exerciam forte domínio político e econômico. Já no Sudeste, principalmente nos artigos interpretativos ou nas coberturas cotidianas, o cangaceiro era encarado como um grito de revolta contra o coronelismo.
Os periódicos nordestinos usavam e abusavam de adjetivos como facínora, bandido, famigerado e perverso ao se referirem a Lampião. Muitas das notícias publicadas baseavam-se em relatos que os leitores, num exercício de imaginação e histeria, escreviam e mandavam às redações, quando não o faziam pessoalmente.
Açude: Observatório da Imprensa
Outras informações
O jornalista Artur Aymoré mergulhou nos arquivos dos mais influentes jornais e revistas do Nordeste e do eixo Rio-São Paulo para analisar a cobertura e a leitura que a imprensa realizou, em 50 anos, da mais longa e épica de todas as revoltas sangrentas já surgidas no Brasil.
Considerado bandido pela imprensa brasileira no período, Lampião lutava por justiça social e contra um regime de opressão. Acabou lançando-se numa dimensão mítica, personificando o herói trágico. Nas quase duas décadas que durou sua luta, viu-se incansavelmente combatido e caçado pela Polícia Militar de sete Estados, tropas de elite do Exército e milícias mercenárias de latifundiários. A abordagem jornalística contribuiu para projetá-lo como o mais importante mito do Brasil moderno, em cujo processo construíram-se marcas em que a forma imaginária ultrapassou a história.
Com o arrebatamento que todo bom texto jornalístico oferece ao leitor, este ensaio mostra que, tanto durante a trajetória em vida quanto após a morte de Lampião, a leitura e interpretação da revolta do líder cangaceiro foram expressas de modo ambíguo, explicitamente manipuladas e excessivamente ficcionais. A imprensa utilizou-se de discurso monossêmico e autoritário, fantasiando a realidade e, muitas vezes, deturpando-a.
Açude: Jacintha Editores
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