Por Mariana Pimenta
O cangaço, Lampião e os cangaceiros
Conheci demais Lampião, meu colega. Ele era um homem alto e muito bom. Nunca viajei com ele, mas nós se encontrava no mato junto, dias e dias. Agora, Virgínio, cunhado dele, que foi casado com a irmã dele que morreu,carregou essa aí da casa do pai dela. Ele morreu e eu tomei conta dela e dos cangaceiros tudo.
Lampião era bom com toda ocasião, com toda cangaceirada ele era muito bom. O povo fala que Lampião era mau, quando ele era uma pessoa linda. Olhe, nem cangaceiro dele, ele privava de sair, tinha muito cangaceiro. Olhe, tinha Luís Pedro, que era compadre e cangaceiro dele, Corisco, Moita Braba, Gato Brabo, Azulão, Pancada. Esses cangaceiros tudo foram de Lampião e foram tudo morto antes de eu sair de lá. Em Alagoas, Pernambuco e Ceará não ficou nenhum cangaceiro, os últimos que saíram foram eu e ela. Acabaram os cangaceiros tudo.
Entrava para o cangaço muito recruta, rapaz coiteiro que era judiado pela polícia, muitos não eram coiteiros e apanhavam da polícia demais. Então, esse pessoal, aqueles rapazes fi lhos de coiteiros, era a razão que tinha muito cangaceiro. Porque a polícia pegava os pais de família e fazia a maior judiação. Pegava os fi lhos e judiava. Muitos para não morrer e não apanhar entravam no grupe.
Quando eu entrei no cangaço tinha o grupe de Lampião, tinha Corisco, que andava sozinho mais Dadá, depois ele arranjou Azulão. Moita Braba andava com Lili, sozinhos. Ele era um homem muito horroroso de feio e a mulher era muito bonita. Eu desconfio que Moita Braba andava sozinho recantado pro canto por causa da mulher. Ela era bonita e tinha muito cangaceiro novo, apesar de que a vida do cangaceiro era apertada. O cangaceiro que tivesse comunicação com uma qualquer daquelas mulheres era morto, a mulher e o cangaceiro. A lei era essa. Então, qualquer cangaceiro viajava com a mulher de outro cangaceiro, mas tinha que ter o máximo de respeito, se caísse em certas situações ia morto os dois.
Olhe, eu tive uma discussão com Corisco porque ele queria matar Maria, esposa de Pancada, e Azulão, cangaceiro dele. Corisco só tinha Azulão. A perseguição estava uma coisa fora do comum. Eu chamei a atenção dele:
“Corisco, você é um cangaceiro mais velho do que eu. Eu te peço desculpas não vou fazer uma pergunta para você, porque eu soube que você vai matar Maria e Azulão. Eu vou lhe pedir para não matar nem Maria nem Azulão. Você pense, a perseguição está fora do comum. O que é de coiteiro já está descoberto, pode mandar Maria embora. Você mata Azulão, você fica sozinho. Se você tomar um tiroteio e sair baleado, não tem um cangaceiro que atire para tirar você”. “Eu vou matar, mato e mato”.
Me engrossei com ele. “Não aceito não, não aceito mesmo”.
Por um tempo ele disse: “Olhe Moreno, eu vou ouvir o seu conselho”.Ele me ouviu o conselho. Juntou Corisco, Caboclo Português, Pancada e Luís Pedro, eles cinco e Dadá, Neném e Cristina, mulher de Caboclo Português. Eu sei que saltaram esses cangaceiros com as mulheres para o outro lado do rio. Logo que saltaram, no mesmo mês, mataram Lampião. O grupe de Lampião saltou o rio e Corisco não ficou com Lampião, Corisco conhecia a Bahia toda e ficou sozinho andando mais Dadá. Lampião e mais dez pessoas de seu grupe morreram, no mês de julho de 1938, em um combate com a polícia alagoana, na fazenda Angico, em Poço Redondo, estado de Sergipe. Depois fi zeram um tiroteio, balearam
Corisco e Dada, em julho de 1940. Pegaram Dadá. Corisco morreu.
Graças a Deus eu nunca fui ofendido. Só recebi um tiro na correia do bornal que furou o bornal e assou o ombro aqui, só fez tingir o ombro. Foi o ferimento que eu fi z em tiroteio. Eu assisti muito tiroteio, muito mesmo, de ter dia que eu assistia dois tiroteios. A comida a gente fazia quando o tempo estava bom. Quando o tempo não estava bom, comia rapadura, carne assada. E mesmo aquela carne para assar tinha horas de saber assar de modo do cheiro da carne não ir longe, para polícia não pegar.
As roupas, no cangaço mesmo que fazia. No cangaço fazia bornal muito bem feito mesmo. O chapéu de couro é um chapéu muito bem feito, que fica bem quebradinho, com as correias de lado aqui, uma correia na testa, uma correia do outro lado e outra correia por detrás. O chapéu compra feito, que lá tem muito chapéu feito para vender. Durvinha mesmo fazia bornal e blusa para cangaceiro muito bem feito. Ela pintava na máquina as cartelazinhas de couro, fi cava tudo florado, muito bonito. No cangaço tinha máquina de costura, quando o tempo estava bom, fazia roupa, bornal, tudo. A máquina fi cava guardada em um ponto no mato. Quando era para fazer roupa, reunia aqueles cangaceiros tudo num canto só, ficava tudo junto ali, dez, oito dias, fazendo roupa. O que precisava fazia, bornal, perneira. Todos os cangaceiros usavam perneiras.
No cangaço ninguém trabalha. No início os cangaceiros assaltavam muito.O próprio Lampião, um pouco antes de eu entrar, deixou de assaltar e pedia dinheiro. Mandava carta para os fazendeiros e pedia dinheiro. Como ele já era um cangaceiro afamado que todo o mundo tinha medo, porque ele fez muita extravagância, ele pedia dinheiro para o fazendeiro. Se o fazendeiro mandava polícia para ele, ele fazia de todo jeito para pegar aquele fazendeiro. Se pegasse, tinha que dar o dinheiro dobrado ou morria. Ou então queimava a fazenda. O pessoal tomou medo dele queimar a fazenda, então Lampião pedia dinheiro e o povo mandava. Ele mudou o sistema de ficar roubando. Pedia o dinheiro e o povo mandava e passava a ser amigo dele.
Direito de cangaceiros é tiro.
Feliz aquele que sai no público, conforme várias vezes a gente saía de viagem nas estradas. Certa vez, com fi nado Virgínio, nós passamos em um pé de serra, num arraial. Passemos e não mexemos com ninguém. Quando nós subimos a ladeira, atiraram em nós lá de baixo. Eu e fi nado Virgínio respondemos os tiros para baixo, plá-plá. Finado Virgínio disse:
“Moreno, não vamos gastar bala não, nós passamos lá e não houve reação de tiro, agora de longe eles atiram em nós. Não vamos gastar bala nessa distância não”.Mas é porque ele estava perto de morrer, nós passamos em uma casa, depois da casa, uma emboscada e ele morreu.
Certa vez apareceu um retratista lá no bando. Eu era novato. Foi um retratista e um dentista. Durvinha colocou dente, finado Virgínio, Jacaré e Chumbinho. Muito cangaceiro colocou dente, mas eu não quis não. Nunca gostei de luxo. Também não tirei retrato, porque quando eu era menino, que eu estive na escola, o mestre Viana, na hora do recreio, pegou uma máquina e falou assim: “Olhe, meninos, façam uma linha e cada um pegue na mão do outro”. Nós pegamos um na mão do outro e na máquina. Ele ligou e os meninos tomaram um choque e ficaram tudo agarrado. Ele falou assim: “Agora vocês correm e vão brincar”. E os meninos puxaram para ir brincar, mas estava tudo agarrado. Quando foi o dia de tirar retrato, eu lembrei disso. Chamei fi nado Virgínio e contei o que tinha acontecido.
“Quem sabe esse homem veio tirar retrato que é para ligar vocês e pegar os cangaceiros? Eu vou ficar de pronta solução de fora, se vocês ligarem, eu atiro nele e na máquina”.Eu não peguei nome no povo, igual Corisco, que tinha um nome medonho, Diabo Louro. Eu peguei nome no cangaço, porque nos cangaceiros eu era dos primeiros homens. Era bom de tiro. Quando tinha tiroteio, eles viram minha disposição como era, então tomei nome com os cangaceiros. Todo mundo respeitava Moreno, mas eu não fazia maldade com ninguém não. Eu era muito bom é no tiroteio.
“Eu fui um cangaceiro das quebradas do sertão, junto com Luís Pedro e Virgínio, cunhado de Lampião. O meu tiro era certeiro no ponto do mosquetão”.Eu nunca pensei, nem depois de anos, conforme foi descoberto 65 anos depois de ter abandonado o cangaço, em ter uma liberdade pública igual eu tenho hoje. Porque graças ao meu bom Deus, eu tenho uma liberdade
pública em todo o território brasileiro. Eu, para obter essa liberdade, junto com ela. Nós vivemos quase 70 anos ocultamente. Foi a razão que eu me registrei, porque eu nunca fui registrado, vim me registrar em Minas. Então, quando cheguei em Minas, eu falei com ela: “Olha, a partir de hoje, você se
chama Jovina Maria da Conceição, guarde isso na idéia, que é o seu nome. E o meu é José Antônio Souto”.
Vai um dia o prefeito de Augusto de Lima me procura e pergunta se sei ler. Digo: “Gastão, assino meu nome muito mal, o que eu aprendi um pouquinho foi depois de homem”. Ele pediu para eu escrever uns nomes. Eu escrevi. Bateu no meu ombro e disse: “Zé, você vai ser eleitor”.Digo: “Graças a Deus”. Mandou tirar retrato 3x4 e chegou o título. Eu nunca perdi uma eleição. Com isso, eu que não tinha registro nenhum, ele nos registrou, nós casamos e ficamos registrados, pegamos documentos. Trabalhei muitos anos sem documento, só naquele serviço duro que não exigia documento.
O segredo descoberto
Era dia 28 de outubro de 2005, dia de São Judas Tadeu, quando Neli Maria da Conceição, já cansada de perguntar aos pais sobre o paradeiro de Inácio, resolveu enfrentar o santo. “São Judas Tadeu, eu quero ver se você é poderoso assim mesmo, igual todo mundo está falando. Eu quero achar o meu irmão e quero achá-lo com vida”. Inácio é o seu irmão mais velho que, em 1940, os pais entregaram a um padre chamado Frederico, em Tacaratu, Sertão de Pernambuco.
Foi com essa mesma determinação que ela ligou para o serviço de informações da lista telefônica e pediu o contato da casa paroquial e do cartório da pequena cidade. Na primeira tentativa, uma mulher, que se identificou como Sandra, atendeu ao telefone da casa paroquial. Neli não conseguia controlar as lágrimas que escorriam de seus olhos quando Sandra lhe disse que ali havia vivido, sim, um padre Frederico.
Sandra não sabia muito sobre esse padre, mas conhecia uma pessoa que podia ajudar Neli a encontrar informações sobre o irmão. Essa pessoa era Murilo, um estudante que conhece bem a história de Tacaratu e as pessoas que ali viveram. Sandra garantiu que passaria o telefone de Neli para o jovem que ligaria o mais rápido possível. Passaram-se 15 minutos até o telefone tocar. Era Murilo. Neli apenas se identificou e ele falou:
“Bom dia, Neli. Devo lhe dizer que o seu irmão é vivo, mora no Rio de Janeiro, é casado, tem dois filhos e trabalha Como Policial Militar.Na casa de cultura de Tacaratu, Murilo conseguiu o contato de um amigo de Inácio. A casa de cultura mantém contato com Inácio, pois, anualmente, ele é homenageado na festa de Nossa Senhora da Saúde, padroeira da cidade, que acontece entre 24 de janeiro e 2 de fevereiro. Em 2005, ele recebeu uma ligação fora de hora de um amigo que lhe perguntou: “Inácio, você sempre disse que não tinha irmãos. Então, que história é essa de uma mulher que ligou para Tacaratu dizendo ser sua irmã?” Inácio ficou emocionado com a história, afinal, foi abandonado pelos pais com menos de um mês de vida e nunca mais teve notícias deles. Encontrou a família da mãe, na cidade de Paulo Afonso, na Bahia, mas por lá davam seus pais como mortos.
Passaram-se cinco dias. Era dia 2 de novembro de 2005 e toda a família Souto estava reunida para comemorar o aniversário de 96 anos do senhor José Antônio Souto. De repente, o telefone tocou. Um homem pediu para falar com Neli, identificou-se como um amigo muito próximo de Inácio e perguntou o nome dos pais da moça. Ela, prontamente, falou: “José Antônio Souto e Jovina Maria da Conceição”. O homem, triste, explicou que não são os mesmos nomes dos pais de seu amigo Inácio, criado pelo padre
Frederico em Tacaratu. Porém ele insistiu e perguntou os nomes dos tios de Neli.
Ela cresceu sem conhecer seus familiares e sempre perguntava para a mãe sobre seus tios que tinham fi cado no sertão da Bahia. Suas bonecas de sabugo de milhos tinham os nomes de Rosinha, Ilda, Manolo e Santa, nomes dos irmãos de sua mãe. Rapidamente ela falou o nome de seus tios e o homem confirmou como sendo aqueles também os de Inácio. Então, ele pediu para falar com a mãe dela. Neli colocou Dona Jovina no telefone. O homem perguntou à senhora se ela tinha outro nome quando morou no nordeste, e ela respondeu: “Durvalina Gomes de Sá”. O homem então disse que ele é Inácio, seu filho, e se emociona, pois, com 65 anos de idade, reencontra seus pais vivos.
Esse dia 2 de novembro mudou a história daquela família. Zé Antônio e Jovina finalmente revelaram a seus fi lhos seus nomes verdadeiros - Antônio Inácio da Silva e Durvalina Gomes de Sá - e o motivo de tanto segredo.
Eles foram cangaceiros do grupo de Lampião e vieram para Minas Gerais fugindo da perseguição das volantes (grupos de policiais), em 2 de fevereiro de 1941, aproveitando a agitação da festa de Tacaratu para abandonar as armas e roupas do cangaço e fugir. O cangaço tinha acabado.
Em 2006 eles reencontraram seus familiares, conheceram sobrinhos, primos e foram recebidos com honras nas cidades de onde saíram. Também são personagens de um documentário “Lampião, o governador do Sertão”, que está sendo gravado pelo diretor cearense Wolney Oliveira.
Foto: Leonardo Lara
Fonte: www.escritoriodehistorias.com.br
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>
Atualizando: Durvinha faleceu no dia 28 de Junho de 2008 vítima de um A.V.C. e Moreno completou no ultimo dia 1º de novembro "seu centésimo ano de vida".
Para saber mais?
Leiam: Moreno e Durvinha, " Sangue, amor e fuga no cangaço.
Livro de João de Sousa Lima, Editora Fonte viva, 2007.
Contato:
Rua Canadá, 194, Caminho dos Lagos
cep 48605-280
Paulo Afonso/BA
(75) 3281-2482 / 3281-1137 / 8807-4138
email: joaoarquivo44@bol.com.br
Abraços
Kiko Monteiro
Emocionante! História fantástica de reencontro!
ResponderExcluirpor varias vezes vi as imagens antigas dos cangaceiros, mas nunca iria imaginar que ainda haveria alguem vivo, pertencente aquele grupo. he mesmo muito interessante!
ResponderExcluirparabens.
Penso que o cangaço deveria ser matéria nas escolas de todo Brasil. É uma história muito rica e fascinante, tanto do lado dos cangaceiros quanto do lado dos policiais que perseguiam lampião e seu bando
ResponderExcluirÓtima história!
ResponderExcluirExcelente idéia em deixar a narrativa como foi dita, sem correções!!!
Dá mais intensidade ao texto como um todo, ele te transporta para o momento da entrevista!!!.
Parabéns.